A implementação da Lei de Cotas Raciais que protegeu os interesses da branquitude e negou direitos à população negra
À medida que os estudos sobre a Lei de Cotas Raciais começaram a ser publicados, uma grande frustração foi se consolidando: as vagas reservadas não haviam sido alcançadas pelas pessoas negras
O novo padrão civilizatório não virá sem a real e verdadeira integração do povo negro à sociedade de bem-estar social. Não uma integração subalterna, como acontece no Brasil: somos a maioria entre os desempregados, entre os analfabetos, entre as vítimas da letalidade policial, entre os encarcerados e nos trabalhos de baixa remuneração, por exemplo.
O movimento negro brasileiro, com a ajuda de antirracistas, tem avançado em direção à construção da justiça social. Mesmo que lentamente e de efetividade das políticas não aferida, temos avançado num conjunto de legislações que tentam enfrentar a chaga do racismo brasileiro. Dentre as iniciativas de ações afirmativas está a lei que impõe cotas raciais na contratação de pessoas para o serviço público, a Lei nº 12.990/2014.
Políticas de ações afirmativas são instrumentos utilizados para corrigir o acesso a recursos que as pessoas negras têm dificuldades de acessar, principalmente no mercado de trabalho. Em carreiras de maior prestígio, a participação negra é diminuta. A finalidade de política de ações afirmativas é romper com esse círculo vicioso de desigualação permanente.
A Lei nº 12.990/2014, que permite reserva de vagas às pessoas negras nos concursos públicos, de forma a garantir um mínimo de diversidade, foi formulada com essa finalidade: reduzir as desigualdades de acesso aos cargos públicos na esfera federal. Sua chegada foi geradora de muitas expectativas frente ao enfrentamento do racismo estrutural e institucional.
Os comandos da Lei nº 12.990/2014 são simples e precisos: reserva de 20% das vagas dispostas nos editais; a aplicação da regra se dá com base nos cargos efetivos; os cargos efetivos são constituídos por lei (como expresso no art. 3º da Lei nº 8.112/1990); todas as pessoas negras interessadas em concorrer pela reserva de vagas, que assim possam fazer a partir da autodeclaração no ato da inscrição no certame. São dispositivos de fácil cognição.
A dificuldade que determinados setores da sociedade brasileira têm de compreender como a falta de oportunidade afeta a igualdade acabou levando a proposição legislativa à suprema corte. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) ingressou no Supremo Tribunal Federal (STF) com uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 41), arguindo sobre a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014.
A ADC 41 foi julgada no dia 08 de junho de 2017, com voto favorável de todos os membros da corte. No voto do relator, Ministro do STF Luís Roberto Barroso, foi expresso o apreço da corte à necessidade da premência de enfrentar o debate sobre a igualdade material:
“No tocante à igualdade material, nem é preciso me alongar, esse racismo estrutural gerou uma desigualdade material profunda, e, portanto, qualquer política redistributiva precisará indiscutivelmente cuidar de dar vantagens competitivas aos negros. Há uma frase feliz de Martin Luther King também nesta matéria que diz: ‘é óbvio que se um homem entra na linha de partida de uma corrida trezentos anos depois de outro, o primeiro teria que fazer uma façanha incrível para recuperar o atraso’. Logo, para possibilitar a recuperação do atraso existem as políticas de ações afirmativas”.
Todas as evidências suportam a existência da desigualdade racial e não cabe uma alternativa às instituições implementadoras que não seja perseguir o objetivo da norma, enegrecer o serviço público federal, promovendo justiça social. No entanto, à medida que os estudos sobre a Lei de Cotas Raciais começaram a ser publicados, uma grande frustração foi se consolidando com amplo material probatório. As vagas reservadas não haviam sido alcançadas pelas pessoas negras.
Em 2021, o Governo Federal, através do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, publicou um relatório que apontava que no setor que mais realiza concursos públicos, o educacional, onde estão as instituições de ensino superior, a eficácia foi de 0,53%. Ou seja, a cada 1.000 pessoas negras beneficiárias da norma, apenas 5 tomaram posse. Passados 6 anos de implementação da lei, o resultado era o prenúncio do tamanho do racismo institucional. Diante dessa informação, não encontramos registro de que o governo e nem as instituições de accountability tomaram medida para corrigir o problema.
Apesar do esforço do Estado brasileiro, da propositura legislativa do Governo Federal em 2013, da aprovação do projeto de Lei de Cotas pelo Congresso Nacional em 2014 e do posicionamento do STF frente à ADC 41 em 2017, as instituições que tinham a responsabilidade de implementar a norma montaram um muro de contenção às políticas de ações afirmativas raciais. Principalmente as instituições de ensino, as universidades e os institutos federais. De onde se esperava luz, veio a escuridão.
Chegamos ao final do tempo de vigência da Lei nº 12.990/2014. No dia 09 de junho de 2024, a norma completou uma década, em um cenário devastador de fraudes. A previsibilidade das fraudes foi apontada no voto do Ministro Luís Roberto Barroso, no julgamento da ADC 41, em 2017:
“[…] a política também pode ser fraudada pela própria Administração Pública, caso a política seja implementada de modo a restringir o seu alcance, ou a desvirtuar seus objetivos”. O alerta não foi suficiente nem para chamar atenção dos órgãos de accountability.
O relatório do Observatório Opará, em parceria com o Movimento Negro Unificado (MNU), intitulado “A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes”, realizou a análise de aproximadamente 10.000 editais de concursos públicos (para contratações permanentes) e processos seletivos simplificados (para contratações temporárias), o que permitiu a catalogação de 6 modalidades de burla à lei de cotas raciais. A lei impõe a aplicação da regra da reserva de vagas às pessoas negras quando houver um mínimo de 3 vagas para um mesmo cargo. Todo o esforço intelectual das instituições foi feito para evitar esse quantitativo ou ainda não assegurar o direito de todos os potenciais beneficiários da norma.
Foram periciados editais de 61 instituições (de um universo de 247), sendo 56 instituições de ensino federal e 5 outras instituições. Identificamos a abertura de 46.309 vagas disponibilizadas em concursos públicos e processos seletivos simplificados. Por conta dessas fraudes, 3,5 bilhões de reais deixaram de ser destinados à comunidade negra. Considerando um total de 247 instituições que deveriam implementar a norma, o prejuízo, provavelmente, passa dos 10 bilhões de reais.
Todos os dados da perícia realizada estão disponíveis no site do Observatório Opará. O conjunto de manobras realizadas para impedir o acesso ao direito firmado na Lei nº 12.990/2014 causou um grande prejuízo à imagem do Estado brasileiro. Mais uma vez, ele não foi capaz de proteger o grupo mais vulnerável à efetiva integração à sociedade. Até quando entenderemos apenas como um fracasso das instituições?
A divulgação do relatório em março de 2024, em meio à discussão do Projeto de Lei (PL nº 1.958/2021), que buscava a continuidade da política, revelou o tamanho do desafio. O Ministério da Igualdade Racial (MIR) e o Ministério da Gestão, Inovação e Orçamento (MGI), principais articuladores da proposta, não apresentaram, apesar da previsão legal, um balanço dos 10 anos de implementação. Não trouxeram ao escrutínio da sociedade elementos probatórios para justificar a necessidade de continuidade da política. A natureza de uma política de ação afirmativa é romper o círculo de exclusão do destinatário da política. Era razoável pensar que, em 10 anos, tempo de vigência da norma, os resultados não seriam suficientes. Porém, quais foram os resultados?
O relatório “A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes” demonstrou que o problema não foi de ineficiência; houve boicote deliberado das instituições. Passados 10 anos, nenhuma instituição percebeu que não haver contratado pessoas negras ultrapassa a razoabilidade da culpa, negligência, imperícia e ineficácia. Estamos falando de gestores públicos que têm o dever constitucional de respeitar as normas e garantir máxima eficácia a elas. O não ingresso de pessoas negras não foi notado. A invisibilização fez parte do boicote à norma, um elemento indispensável ao sucesso da fraude.
Todos os editais que não asseguraram direitos durante a vigência da norma são nulos. A não implementação da Lei nº 12.990/2014 é um vício insanável. É óbvio que as instituições se sentirão desconfortáveis, inclusive as jurídicas, de decretar nulos os editais, demitir todos os contratados e começar tudo de novo. Certamente, as instituições esperam compreensão da população negra. A compreensão que não tiveram em cumprir a lei e perseguir a justiça social.
É óbvio que a população negra não vai propor uma desarrumação completa das instituições governamentais. Não somos, como os que negaram o ingresso da população negra, portadores do caos. Um caos que a branquitude não sente, pois não lhe afeta. Agora, resta um mínimo de dignidade às instituições, reparar cada uma das vagas retiradas da população negra.
A Universidade Federal de Pelotas (UFPel) foi a primeira instituição no Brasil a enfrentar com justiça esse tema. Diante dos problemas de não implementação da norma, decidiu corrigir seu erro. A instituição vai reparar todas as vagas que não foram destinadas à população negra. Submetida intenção à Advocacia Geral da União (AGU), o parecer [Parecer nº 00001/2024/CFEDU/SUBCONSU/PGF/AGU] conclui o pedido nos seguintes termos: “Pelo exposto, entende-se possível a oferta de vagas reservadas para negros nos concursos públicos seguintes realizados pela Universidade Federal de Pelotas em percentual superior a 20% (vinte por cento), desde que não aplicação dessa política no âmbito da referida Universidade, isso enquanto vigente a política pública em questão.
Estamos do outro lado do balcão, temos que suportar ler, no parecer da AGU, “equivocada aplicação”. O mesmo Estado que patrocinou a escravidão, hoje se esquiva de usar palavras duras que expressem com exatidão o que aconteceu. É óbvio que não queremos uma caça às bruxas, mas a reparação não é mais uma opção, é um dever do Estado brasileiro. Esperamos grandezas das universidades e institutos federais e dos outros órgãos públicos federais, que patrocinaram a grave retirada de direitos da população negra.
Edmilson Santos dos Santos é professor doutor da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Integrante do Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará).
Ana Luisa Araujo de Oliveira é professora doutora da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Integrante do Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará).
Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará).