A importância de lutar pela esperança mesmo em tempos de autoritarismo bizarro
A esperança no ano novo torna-se uma forma de reconhecer a natureza incompleta do presente e abre a possibilidade de “esperançar” por um outro futuro
O alvorecer do ano novo repousa não apenas em narrativas do passado, mas também oferece um tempo para visões renovadas; trata-se do nascimento de novas possibilidades, da necessária ponderação e revisão dos erros, de um renovado sentido de luta contra os inimigos, que são mentirosos compulsivos, e as terríveis condições que os sustentam. Se é verdade que a terceira década do século XXI pode assumir um novo significado – como tempo de luta coletiva contra as desigualdades sociais, culturais, econômicas, de gênero, de raça, de classe etc. –, também é verdade que as forças antidemocráticas continuam brotando e perniciosamente se multiplicando como ervas daninhas perigosas e nocivas.
Por outro lado, a esperança no ano novo torna-se uma forma de reconhecer a natureza incompleta do presente e abre a possibilidade de “esperançar” por um outro futuro. Essa utopia que chamamos esperança é como uma luz que nos guia num túnel escuro, sempre em direção ao futuro. E isso nos oferece a oportunidade de repensar a vida, a dignidade humana e a igualdade social. Reivindicar a história como um local de luta, resistência e coragem cívica. Produzir uma nova linguagem para recuperar o senso de agência, participação cívica individual e coletiva, com consciência crítica e a coragem de não se isentar diante do criminoso aumento da desigualdade social no mundo todo. As desigualdades aumentam no Canadá e no Brasil, mas no caso deste último, as desigualdades se multiplicam em fome, desemprego e crise de vulnerabilidade social com aumento da pobreza, agravamento da exclusão social e múltiplas formas de violências.
Não bastasse tudo isso, a participação cívica e o contrato social também estão sob forte ataque. A intenção neoliberal explícita é destruir os serviços públicos e recortar os direitos sociais à educação, saúde, assistência e previdência social. Lutar por um mundo melhor parece desanimador em uma sociedade onde a patologia da ganância e do egoísmo dificultam assumir qualquer compromisso com a luta por justiça social. A liberdade desmoronou parcialmente em um niilismo moral que cria uma linha reta da política à catástrofe e ao apocalipse. O analfabetismo cívico está agora envolto em um falso apelo à liberdade. Caos, incerteza, solidão e medo definem o momento histórico atual. Em muitos casos, o desamparo leva à desesperança e ao fundamentalismo religioso. Em uma cultura de consumismo, sensacionalismo, imediatismo, meritocracia e performatividade sustentada por uma ignorância cívica intencionalmente fabricada, as paixões políticas e morais substituem a pura raiva, raiva e emoção por uma defesa ponderada da verdade, do contrato social, da cultura cívica, uma cultura de diálogo, de democracia.
Os tempos desafiadores em que vivemos operam como antítese da esperança ao difundir a ideologia do individualismo regressivo, do consumismo, da desregulamentação e do anti-intelectualismo ao mesmo tempo em que reproduz um modelo de fascismo neoliberal que esvazia a política de suas possibilidades democráticas. Vivemos em uma época em que a esperança radical enfrenta o desafio de vários fundamentalismos enraizados em formas de repressão econômica, religiosa e educacional, que caracterizam uma forma brutal de capitalismo em sua expressão neoliberal. Acentuado por uma crescente desigualdade, incerteza, medo e desconfiança do bem público, o fascismo neoliberal esconde sua crueldade e as relações de poder criminosas que formam as redes populares que o sustentam. O discurso populista autoritário satura a cultura com narrativas alienantes que reproduzem a noção fatal de que “não tem alternativa”. Ao fazê-lo, aprofundou o abismo de medos e o conflito social. Talvez a melhor palavra para definir essa política de extrema direita seja o termo bizarro.
Diante do autoritarismo, precisamos de uma linguagem alternativa que compreenda plenamente a crise política, econômica e social que os países governados pela extrema direita no mundo enfrentam. Uma linguagem nova para o ano novo, linguagem de esperança, que veja a política de forma mais abrangente, que conecte os pontos entre as diversas questões que dificultam muito a participação cívica e a construção de estratégias empoderadoras para fortalecer os movimentos sociais. O ambiente político está dominado por uma máquina propagandística massiva de fake news financiada por grupos de direita e alimentada em grande parte por financiamento (publicitário) em plataformas de mídia social que desconstroem a promessa de esperança e se fundamenta na coação e no medo. Os elementos políticos e educacionais fundamentais que unem a verdade – e a busca por igualdade social – à ação por meio de lutas coletivas são um poderoso aparato pedagógico contra a miragem, que tenta apagar a história, tanto quanto a distorce. Essa ignorância, planejada e fabricada, uma expressão contemporânea da alienação moderna, a ignorância agora desfila como notícia, espetáculo; e assim, sabota a própria democracia.
A política tornou-se uma forma de “ethicídio” – negação do compromisso social; criminalização da participação política, disseminação de retóricas discursivas conservadoras e reformas econômicas que recortam direitos sociais. E também existem governos que já não apenas atacam o pacto de bem-estar social, mas que incorporam uma prática fascista, enraizada no discurso de extrema direita e fundamentado na ideologia racista de supremacia branca. Em uma época de cinismo escrachado, normalização da violência e aprofundamento do desespero coletivo, pensar no novo ano precisa ser mais do que um discurso de aspirações tradicionais. Pelo contrário, é um momento crítico crucial para examinar os horrores de um presente que se aproxima muito rapidamente ao fascismo e fazer a crítica construindo uma nova linguagem, outra visão de futuro e motivações coletivas renovadoras para abraçar um futuro que imagine a plenitude da igualdade social e da democracia.
Embora seja verdade que enfrentamos o novo ano em um momento em que as fraturas sociais e as divisões econômicas alimentam um tsunami de medo, raiva, falsidades, teorias da conspiração e, em alguns países, uma política autoritária ligada à violência, precisamos reunir coragem para rejeitar a normalização de tais eventos. Como tal, nunca podemos deixar a esperança se transformar na patologia do cinismo ou até mesmo em algo pior. Esperemos que o novo ano nos ofereça tempo para construir uma linguagem visionária como condição para repensar as possibilidades que podem surgir no futuro, uma que ofereça a promessa de uma democracia radical. É claro que existem resistências, e é daí que se reanimam as lutas! São inúmeros exemplos de coragem cívica entre jovens, como o movimento negro, o movimento LGBTQIA+, educadores, profissionais de saúde, assistentes sociais e diversos outros trabalhadores que lutam contra as injustiças sociais e o racismo sistêmico enquanto cuidam dos doentes, assistem as vítimas da pobreza e ensinam a liberdade e a democracia como alternativa ao fanatismo e ao ódio. Esses corajosos agentes sociais oferecem uma nova possibilidade de se refazer a história e um sentido do tempo presente como embrião do que poderia ser um futuro diferente, nascido da participação popular, da imaginação social e da coragem cívica.
O novo ano deve nos impulsionar a recuperar as virtudes da dignidade, compaixão e justiça. A esperança serve exatamente para nos lembrar dessa necessidade de voltar a sonhar novamente, de se imaginar o inimaginável, pensar de outra forma, radical, para agir de outra forma, revolucionária. Vamos fazer de 2022 um ano para responder, derrotar as correntes fascistas que varrem Estados Unidos, Brasil, Europa, Turquia, Egito e diversos outros países. Vamos fazer com que seja um momento que reúna os movimentos fraturados da esquerda para construir um movimento de massa e um programa político que fale com a agenda de prioridades do povo, e não contra ele. Vamos reunir educadores, profissionais de saúde, assistentes sociais, artistas e todos os intelectuais públicos dispostos a lutar contra os elos que unem fascismo e neoliberalismo.
Esperemos que o novo ano nos ofereça tempo para construir uma linguagem visionária como condição para repensar as possibilidades que podem surgir no futuro, uma visão de mundo que ofereça a promessa de uma democracia participativa. Valores humanos fundamentais como liberdade, solidariedade e igualdade precisam voltar a pulsar novamente na cultura, nos movimentos sociais e nas conversas entre a gente. Precisamos de um melhor trabalho de base que desenvolva raízes mais profundas e renove a mediação necessária para a ação estratégica coletiva. Não podemos deixar a esperança radical desaparecer no abismo do medo e do autoritarismo. E menos ainda, quando esse autoritarismo assume formas fascistas bizarras.
Precisamos lutar contra as formas criminosas e genocidas de negacionismo científico que agravou a crise de Covid-19. Precisamos jogar fora as noções desmobilizadoras que transformam a liberdade em uma noção tóxica de egoísmo e a esperança em um cinismo paralisante. A política não é só um local de crueldade e corrupção. Mas também é a chance de recuperar as virtudes da dignidade, compaixão e justiça. O ano novo deve estar enraizado em sonhos que rejeitam uma visão do futuro como simplesmente uma continuação do presente. Lutar pela oportunidade de sonhar novamente, de imaginar o inimaginável; pensar de outra forma para agir de outra forma. O novo ano deve oferecer a oportunidade de repensar a vida, a dignidade humana e a igualdade social numa renovação de nossa democracia. A América Latina conhece muito bem diversas formas de sempre reinventar-se. Hora de sair do casulo e alegrar 2022 voando livres como borboletas. Eu esperanço, tu esperanças e nós esperançamos… Essa é a importância de lutar pela vitória da esperança e encerrar definitivamente essa mal sucedida e bizarra aventura autoritária. Vamos defender, com participação cívica, os direitos sociais e a própria a democracia.
Henry Armand Giroux é doutor em Ciências Sociais e professor da McMaster University, no Canadá (Chair for Scholarship in the Public Interest/The Paulo Freire Distinguished Scholar in Critical Pedagogy).
Gustavo de Oliveira Figueiredo é doutor em Ciências Humanas, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e professor visitante no Departamento de Estudos Culturais da McMaster University.