A indústria do medo
Não se trata de inocentar essa pequena face do crime. Mas, precisamente, de definir suas feições. Porque uma das melhores formas de diabolizar alguém é privá-lo de um rosto. Os bons filmes de terror fazem isso com perfeição. Sentimos medo daquilo que não vemos – ou que apenas entrevemos, na fugacidade do instante e à meia-luz. Iluminar essa figura na penumbra, fixar essa imagem fugidia é o primeiro passo para desmontar seu hipnótico poder de sugestão.
O medo paralisa a vida de milhões de pessoas e movimenta os interesses de minorias poderosas. O time de George W. Bush beneficiou-se com a reeleição e os polpudos negócios proporcionados pela Guerra do Iraque graças a uma habilidosa orquestração do medo. Com o decisivo apoio das grandes corporações da mídia e do entretenimento, não foi difícil amestrar vontades previamente amaciadas pelo fast-food e a televisão. Bastou injetar-lhes doses regulares de medo, facilitadas pelos arroubos retóricos dos chefes terroristas. A fórmula é surpreendentemente simples: invente um inimigo e bata reiteradas vezes na mesma tecla. Com os adequados meios de amplificação e propagação, em pouco tempo, muitos estarão convencidos de que todos os gatos são pardos. A receita foi testada pela Inquisição, por Hitler e pelo obscuro senador de Wisconsin Joseph McCarthy. Funciona.
No âmbito doméstico, o medo faz de todo pobre o potencial inimigo e confina os ricos (ou os que gostariam de sê-lo) em um mundo exclusivo de condomínios fortificados, carros blindados, câmeras de televisão, rastreamentos por GPS e escoltas particulares. O traficante é o nosso terrorista e qualquer pivete parado no semáforo pode ser uma ponta do crime organizado. Seria interesse identificar quem se beneficia, direta ou indiretamente, com a paranóia e contabilizar os lucros da proveitosa indústria do medo. Esta pode ser uma boa pauta para reportagens futuras. Por ora, o artigo “A face miúda da droga”, publicado na presente edição, trata de desconstruir a imagem midiatizada do narcotraficante, demonstrando que não só de Fernandinhos Beira-Mar vive a infração. E que, se existem sim as grandes redes do tráfico com ramificações nas altas esferas do poder, existe também uma pulverizada coleção de pequenos bandidos, trafegando nas fronteiras entre o lícito e o ilícito, e colada às modestas demandas de suas comunidades de origem.
Não se trata de inocentar essa pequena face do crime. Mas, precisamente, de definir suas feições. Porque uma das melhores formas de diabolizar alguém é privá-lo de um rosto. Os bons filmes de terror fazem isso com perfeição. Sentimos medo daquilo que não vemos – ou que apenas entrevemos, na fugacidade do instante e à meia-luz. Iluminar essa figura na penumbra, fixar essa imagem fugidia é o primeiro passo para desmontar seu hipnótico poder de sugestão.
Outro medo a ser exorcizado – remanescente da campanha do senador McCarthy e da Marcha da Família dos conspiradores de 64 – é o fantasma do esquerdista sempre pronto para assaltar o poder e revogar as regras do jogo democrático. O conjunto de artigos que compõem o dossiê desta edição (“A batalha do voto”) mostra exatamente o contrário. Nunca como agora as formas da democracia liberal foram tão aceitas pelas correntes ditas de esquerda. E é por meio delas que as oligarquias tradicionais estão sendo deslocadas do poder. No que isso vai dar é ainda cedo para dizer. Pode ser que, superada a verborragia característica da herança política latino-americana, os esquerdistas de hoje se transformem em eficientes gestores da economia capitalista, tão cooptáveis e prestativos quanto seus antecessores. Pode ser que, na contramão do influxo neoliberal, as pressões da cidadania organizada e dos movimentos sociais consigam promover aquilo que alguns analistas designam como “democratização da democracia”.
Seja qual for sua motivação imediata, o medo é uma patologia sistêmica enraizada em estratos profundos da psique. A indústria do medo explora essa doença com a mesma impiedade e avidez com que o narcotráfico explora a dependência do usuário à droga. É esse tolhimento da liberdade que precisamos combater se quisermos reconquistar nosso direito de viver a plenitude do potencial humano.
*José Tadeu Arantes é jornalista, foi editor de Le Monde Diplomatique Brasil entre agosto de 2007 e agosto de 2008.