A Infância de Máximo Górki
É interessante notar a maestria do autor em elaborar ficcionalmente e em detalhes as suas memórias daqueles anos, sem deixar de dar-nos um painel, ainda que muito sutilmente, do modo de viver do russo, do “homem comum”, no século 19.Isa Fonseca
Muitíssimo bem-vinda a bonita edição da caixa com os três livros de ficção, de cunho autobiográfico, de Máximo Górki, pela Editora CosacNaify. As capas, bem cuidadas, são uma festa para os sentidos e o conteúdo não poderia ser melhor: tomos intitulados Infância (1913/1914), Ganhando meu pão (1916) e Minhas universidades (1923), que vêm engrossar a vasta obra do autor.
Górki foi jornalista, escritor e dramaturgo (aqui no Brasil, ficaram célebres as peças Os pequenos-burgueses, com tradução de Fernando Peixoto e José Celso Martinez Correa, e, ainda, Mãe e Ralé). Seu primeiro conto na revista Kavkas, assinado com o pseudônimo Górki (na realidade, o escritor chamava-se Aleksiei Maksímovitch Piechkóv), aparece de maneira triunfal, em 1892, revelando um autor de estilo bem marcado e prosa vigorosa. Romain Rolland saúda-o com as seguintes palavras: “(…) o homem que, como Dante, voltou do Inferno, mas não sozinho, trazendo consigo seus companheiros de tormento e seus camaradas de salvação”. [1]
A infância sofrida do autor
Tormento, miséria, violência, degradação. Eis o que temos no primeiro tomo da trilogia, intitulado Infância. Muito cedo o pequeno Górki sofre a perda do pai, homem extremamente humilde, que vivia de maneira errante, trabalhando aqui e ali e abandonando a família, de tempos em tempos, à própria sorte. A mãe também tem vida incerta e saúde frágil; quando, viúva, ela volta a casar-se, Górki experimenta diversas mudanças de moradia por conta da vida também incerta do padrasto. Com isto, é praticamente criado pelos avós maternos durante toda a infância e parte da pré-adolescência. Criado, diga-se, de maneira muitíssimo precária: custou a freqüentar a escola, por falta de recursos e uma certa negligência dos avós, e, quando isto aconteceu, o fez de maneira bastante irregular.
Górki freqüentemente queixava-se de discriminação pelas pobres vestimentas e falta de material escolar. Some-se a isto o fato de o escritor, como era costume na época, presume-se, “em nome da justa e severa educação”, ter sido bastante e cruelmente espancado pelos adultos que o cercavam – muitas vezes injustamente, por suas travessuras, mas principalmente, segundo relato, pelo avô e pela mãe, quando esta já se encontrava desiludida com o segundo matrimônio (o marido a trai e, por sua vez, a espanca com regularidade) e perdido o segundo bebê de maneira abrupta.
Os relatos de violência doméstica e desrespeito (este, marcado por xingamentos e imprecações) são assustadores. No entanto, o avô grosseiro e rabujento, e tantas vezes sádico, é quem, ao lado da avó, criam em Górki o gosto pelas histórias – não apenas através dos textos sagrados (os avós, sendo religiosos fervorosos, realizavam rituais diários de preces feitas ao amanhecer e ao anoitecer, assim como a leitura sistemática das Escrituras), como também através de lendas folclóricas e canções, ou mesmo ditos populares, estes carregados de muita imaginação – o que, para Gorki, era tremendamente sedutor.
O menino Górki não sabe o que são brinquedos e o que é brincar com garotos da sua idade, sempre cercado de adultos (nesta fase relatada em Infância, período que vai até a morte de sua mãe), o que o amadurece precocemente. Valente, quando sai às ruas e mete-se em confusões, raramente sai perdendo de uma briga, apesar de apanhar sempre – brigas, aliás, era o que não faltava em casa, com os parentes sempre às voltas com bebidas e provocações que, em dias de festa, terminavam em disputas violentas e homéricas. Muitas vezes matando aulas para acumular sucatas encontradas nas ruas e vendê-las para levar o dinheiro à avó (com quem se dava bem e pela qual era muitas vezes protegido das investidas furiosas do avô), Górki muito cedo chegou a pertencer a gangues que saíam para roubar, cometendo pequenos delitos, sempre com o intuito de obter algum trocado – isto numa época em que o avô, de maneira impiedosa, decretara separação “material” da avó (ainda que vivendo sob o mesmo teto), o que fez com que ela e Górki tivessem que sobreviver como desse, ou seja, muito precariamente e contando com a sorte.
A morte também faz parte dos registros de memória da infância do escritor: ele chega a presenciar o falecimento da mãe, praticamente em seus braços e ambos a sós, quando esta se encontra gravemente enferma (e, ao que tudo indica, grávida de mais um filho). Raramente os adultos, principalmente o avô, colocavam atenção ao que o garoto tinha a dizer, muitas vezes interrompendo-o com um “cale a boca” ou simplesmente ignorando-o – era como se crianças não tivessem direito algum de expressar sentimentos e opiniões. Assim, quando Górki avisa o avô, que adentra o ambiente, que a mãe acaba de expirar, este não lhe dá crédito e continua os afazeres. Somente quando o padrasto chega e nota que a mãe de fato está morta, é que o avô cai em si – e aqui se pode imaginar a dor de uma criança, acalentando por algum tempo a mãe morta e, solitário, tendo que manter somente para si a trágica verdade. E, apesar do momento delicado pelo qual passou o escritor, este não carrega nas tintas ao revelar, ainda que com intensa humanidade, esta e outras terríveis passagens de sua infância – toda ela permeada pela dor, a solidão e o desejo de evasão.
A tessitura de um registro social
É interessante notar a maestria do autor em elaborar ficcionalmente e em detalhes as suas memórias daqueles anos, sem deixar de dar-nos um painel, ainda que muito sutilmente, do modo de viver do russo, do “homem comum”, no século 19. Nesta fase pré-revolucionária do regime czarista havia a nobreza e os fidalgos, isolados em suas ricas propriedades e donos de muitas terras, que impediam o contato dos filhos com as crianças menos abastadas (ainda assim, Górki tenta, sem sucesso, burlar esta regra social, pulando muros na tentativa de fazer novas amizades). Havia os pequenos burgueses, os meschane, como os sapateiros, padeiros, tintureiros (o avô de Górki havia sido tintureiro, mas perde uma grande soma ao fazer maus empréstimos e vai aos poucos caindo na miséria) e, finalmente, os muito pobres – categoria a que o menino Górki pertence – e, ainda, os absolutamente miseráveis, que são os mendigos, os sem-teto (incluindo-se os ciganos) e as prostitutas de rua.
Em nenhum momento, no entanto, em nome desse panorama social, Górki resvala, em Infância, para uma escrita de mão pesada, por assim dizer, ou de cunho mais realista, política e socialmente falando, ao traçar tal painel. Pelo contrário. É como se na pessoa que narra estivesse ainda muito viva a criança que observa tudo ao redor e que, de maneira muito simples e direta (porém isenta de ingenuidade, ou seja, conscientemente), com diálogos extremamente curtos, sintéticos – notavelmente breves, chegando mesmo ao extremo de tal brevidade -, pouco a pouco vai dando-nos todo o quadro das situações vividas e suas ricas impressões.
O garoto de infância precária e sofrida, muitas vezes vingativo e rancoroso, que habita o autor, apresenta-nos o seu cotidiano de maneira transparente, nada intrincada e incrivelmente límpida, e o resultado é uma prosa enxuta (e Tchekhov, que seria seu amigo, pedia-lhe que fosse ainda mais breve no seu fazer literário), em blocos de parágrafos razoavelmente curtos, porém intensos no colorido de sua narrativa, esta permeada por instigantes trechos, dignos de nota.
Mergulhado numa leitura fluente e prazerosa, o leitor pode até esquecer-se que se trata da biografia de Górki: lá está o menino de roupas amarfanhadas e remendadas (que foram passíveis de risos e humilhação na escola), como um Oliver Twist russo, a perambular pelas ruas, a descrever os campos de neve, os cantos e arquitetura de sua cidade, o mobiliário e utilitários do interior das casas simples (as pesadas arcas, a trapeira, candeeiros e o sempre presente samovar – um ícone russo), o modo de festejar das pessoas de sua condição, o linguajar, as cantigas, as danças, os “causos” populares exaustivamente relatados principalmente pela avó e mencionando, também, as rígidas hierarquias das instituições – o clero, o militarismo (que um dia fez parte de um sonho futuro do menino Górki), a escola.
A formação do futuro escritor
Máximo Górki afirma que, quando a avó contava-lhe histórias (a qualquer momento do dia – compulsiva que era pelos relatos antigos -, mas principalmente ao anoitecer), a figura da mãe aparecia como ponto central em sua fértil imaginação. Ele a coloca no lugar das heroínas retratadas pela avó nas intermináveis histórias, como que para torná-la presente, já que tal ausência o intrigava e, muitas vezes, o martirizava – deixando-o melancólico e levemente depressivo. E, quando decidem que deve ser alfabetizado e entrar em contato com as palavras das Escrituras e a tradição folclórica de seu país, através de sonetos e canções decorados, ele, apesar de se esforçar para tal, enfrenta problemas com o aprendizado. Porque a rica imaginação quer “trabalhar” o já aprendido e, assim, Górki tenta colocar rima onde não há rima e “melhorar” o que ouve, distorcendo o significado dos textos.
Eis um trecho: “(…) eu me sentia culpado, mas tão logo me punha a aprender os versos, outras palavras surgiam por conta própria, vindas não se sabia de onde, rastejando que nem baratas (…)” [2] (Grifo da autora). Há também a passagem em que o garoto brinca com as palavras, de maneira musical, involuntariamente, surpreendendo a si mesmo: “estrada, estraga, esfrega, entrega/ Casco, lasco, lasca” [3]. Neste momento, a mãe, que lhe toma a lição, o repreende, indignada, e pergunta de onde vem aquilo – e Górki diz, com estupefação, que ele mesmo não sabe, que não há resposta para aquilo – as tais palavras indomadas.
E, sem dúvida, é o gosto pelas palavras e seus segredos, pelas histórias e suas tradições, e, ainda, a marca indelével das