A inflação brasileira na pandemia
A ortodoxia clama reiteradamente por fatores como a indexação da economia e os riscos fiscais como elementos da aceleração da inflação e “desancoragem” das expectativas. É uma tese pouco aderente à realidade. Confira no novo artigo do Observatório da Economia Contemporânea
Uma questão de grande importância é aquela concernente à razão pela qual a inflação se acelera e se dissemina com mais intensidade no Brasil do que em outros países, particularmente nos emergentes. Há pelo menos três fatores centrais a considerar na resposta a essa questão, crucial por seu papel na economia e no dia a dia da população. O primeiro, menos controverso, se refere ao peso das commodities na estrutura produtiva, ao qual se deve agregar o elevado coeficiente importado em segmentos industriais. O segundo diz respeito à recente desvalorização do real, a qual também situa o Brasil como um dos líderes entre seus pares. Por fim, o papel das expectativas e da inércia na disseminação da inflação ou na transmissão dos choques de oferta e como o Banco Central lida com elas.
O primeiro fato a considerar é que o aumento de preços na pandemia tem sido absolutamente generalizado, atingindo em maior ou menor escala todos os países. Os dados dos gráficos abaixo destacando os principais países desenvolvidos mostram, após a queda brusca do primeiro semestre de 2020, uma aceleração dos preços após agosto de 2020, com a exceção do Japão. Sem dúvida, o fator subjacente aqui é a parada súbita da atividade econômica e a rápida retomada exercendo uma pressão significativa na oferta de commodities e nas principais cadeias de produção. Ou seja, o descompasso entre a velocidade de recuperação da demanda e da oferta.
Fenômeno semelhante, mas com intensidade ampliada, pode ser visto nos países emergentes. E aqui, cabe uma questão geral: por que em média os preços dos países emergentes se elevaram mais do que os dos desenvolvidos? A razão principal foi a desvalorização das suas moedas ante aquelas dos países centrais, em particular o dólar, o que torna, por exemplo, o aumento dos preços das commodities agro minerais e de partes e peças (insumos importados da manufatura), fixadas em dólar, um múltiplo daqueles dos países centrais. O Brasil torna-se, nesse contexto, um caso paradigmático, pois é ao mesmo tempo grande produtor de commodities e importador de componentes e insumos para uma indústria com coeficiente importado elevado. Isso explica, em parte, a sua presença entre os grandes emergentes com taxa de inflação mais elevada.
O diagnóstico sobre a inflação brasileira que credita parte da mesma aos choques oriundos das variações dos preços das commodities é verdadeiro, mas parcial. Isso porque, se é fato que a estrutura produtiva e de exportações brasileiras é cada vez mais baseada no trinômio agro + indústria extrativa + indústria baseada em recurso naturais, é também inconteste que esses setores operam num ambiente extremamente desregulado. Portanto, não há mecanismos que mitiguem os intensos e recorrentes ciclos de preços internacionais sobre os domésticos. Isso poderia ser conseguido, por exemplo, com estoques reguladores de commodities agrícolas e/ou com política de preços de combustíveis ponderada pelos custos domésticos de produção.
Por sua vez, olha-se bastante para a estrutura produtiva dominada pelas commodities e pouco para a indústria de alta tecnologia, altamente importadora de componentes, muito semelhante a uma maquila. Há consenso entre os analistas da indústria brasileira sobre a existência de um processo precoce de desindustrialização, bem como de uma especialização regressiva com esgarçamento das cadeias produtiva no segmento de alta e média tecnologia. De acordo com Morceiro, a dependência de insumos e componentes importados da indústria de transformação brasileira salta de 16,5% em 2003/2004 para 24,4% em 2013/2014. No mesmo período para a indústria de alta e média-alta tecnologia esse número salta de 26,3% para 38,7%. Em alguns desses segmentos o número caracteriza uma atividade montadora, a saber: Farmacêutica (57,3%), Informática, eletrônicos e ópticos (75,4%), Outros equipamentos de transporte (54,8%). Por isso não é de espantar que os números da inflação brasileira ao consumidor mostrem altas de preços acima da média em itens que nada têm a ver com commodities, ou seja, alimentos e combustíveis, como por exemplo, os eletroeletrônicos.
Ainda como aspecto geral da inflação brasileira aponta-se para o papel da taxa de câmbio, em particular de seu perfil de variação peculiar muito acima dos seus pares emergentes, o que estaria determinado pelos “riscos fiscais”. Os dados do gráfico abaixo compilados pela OCDE mostram que, de fato, o Brasil é o terceiro país cuja moeda mais desvaloriza dentre um grupo de países relevantes. Mas, no caso, as peculiaridades dessa desvalorização são de grande importância. Primeiro, ela ocorre logo no início da pandemia, quando o mundo e o Brasil mergulham numa recessão profunda. Após maio de 2020, a taxa de câmbio do real mostra um padrão de flutuação cíclica sem grandes valorizações ou desvalorizações. E isto tem duas implicações: joga o impacto da desvalorização para as fases iniciais da recuperação, quando pode ter havido um passtrough significativo. Segundo, descarta, ou pelo menos, minimiza, como discutido a seguir, a importância dos “riscos fiscais” na trajetória da taxa de câmbio do real.
A concentração das desvalorizações na etapa inicial da pandemia mostra que elas estiveram associadas à reversão dos fluxos de capitais (flight to quality) que atingiu o conjunto dos países emergentes, fato amplamente documentado e perceptível também no gráfico acima. No entanto, por que essas desvalorizações foram maiores no Brasil? No nosso caso tem grande relevância o tamanho e liquidez dos mercados financeiros internacionais que negociam os vários tipos de risco-Brasil, ou seja, títulos e empréstimos soberanos e de empresas brasileiras, além do maior mercado de derivativos de câmbio. Ademais, e de maior importância, o mercado para investidores não residentes em moeda local do Brasil é um dos maiores dos emergentes.
Postas essas questões mais gerais, vejamos em detalhe o comportamento da inflação brasileira durante a pandemia. Em grande parte do ano de 2020, até setembro, o comportamento da inflação está dentro da normalidade. Deflação nos meses piores da pandemia e, em seguida, recuperação do padrão pregresso. Mesmo os aumentos mais intensos observados até fevereiro de 2021 não configuram maiores problemas, mas apenas expressam choques importantes dos preços associados a commodities, conteúdo importado da indústria e taxa de câmbio. O comportamento dos núcleos da inflação atesta isso. Embora crescentes eles ainda estavam até esta data flutuando em torno de 3%, o padrão pré pandemia.
Não deixa de ser curioso que a inflação se acelere exatamente a partir de março, mês que marca um arrefecimento da recuperação, por conta da piora na pandemia. Ademais, observa-se uma apreciação do real. É intrigante que, diante desses fatos, não só a inflação vá assumindo números mais elevados mês a mês como os núcleos se elevem sistematicamente, mostrando uma disseminação da mesma. Mais que isso, as expectativas da inflação para 2021, que flutuavam num intervalo dentro do limite da meta, rompem esse patamar de maneira recorrente após março de 2021. E aqui cabe observar com bastante ênfase, como se vê na tabela acima, que a única alteração dos preços macroeconômicos capaz de sancionar essa alteração das expectativas foi o aumento da Selic e o início do ciclo de sua elevação.
A ortodoxia clama reiteradamente por fatores como a indexação da economia e os riscos fiscais como elementos da aceleração da inflação e “desancoragem” das expectativas. É uma tese pouco aderente à realidade. Primeiro, porque a indexação anual de alguns preços, como salário-mínimo e aluguéis, dificilmente teria o impacto preconizado. Em segundo lugar, por sugerir que haja dominância fiscal na formação de preços na economia brasileira, o que é evidentemente um exagero diante da trajetória dos indicadores do setor público, em particular da dívida pública. Por sua vez, os únicos fatores reais que impactaram a inflação no período vieram do lado da oferta: escassez de partes, peças e componentes na indústria automobilística e eletroeletrônica e a crise hídrica e o aumento do custo da energia. Pouco provável que esses fatores, afora a elevação localizada dos preços específicos tivesse o condão de piorar as expectativas de inflação e disseminar os aumentos de um conjunto amplo de preços.
Uma hipótese que surge com muita força dessa análise é a de que os preços estão indexados sim, mas à taxa de juros. Ou seja, como de fato não há pressão de demanda generalizada na economia, dois fatores movem a inflação: os choques de oferta e a taxa de juros. Os primeiros por meio de custos e a segunda pelas expectativas, ou seja, sancionando as expectativas de aumento de preços e tornando-as realidade. Essa é uma conclusão que se deriva apenas da lógica. Ou seja, se não há crescimento excessivo da demanda vis a vis o produto potencial, as elevações dos juros não exercem nenhum papel significativo sobre a moderação da primeira, mas apenas sobre as expectativas inflacionárias. E, certamente, na direção de exacerbá-las sinalizando elevações recorrentes e disseminadas dos preços. Estaríamos diante das profecias autorrealizáveis. Desse ponto de vista, o presidente do Banco Central com suas reiteradas alusões aos riscos fiscais e anúncio de um ciclo muito forte de elevação dos juros, seria o principal profeta do desastre.
Ricardo Carneiro é professor do Instituto de Economia da Unicamp. O autor agradece aso comentários de Cristina Penido de Freitas e Luiz Gonzaga Belluzzo.
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