A invisibilidade feminina
No campo, a condição serviçal das mulheres fica ainda mais evidente: além do trabalho na roça, a jornada feminina inclui também o cuidado com a casa e os filhos. Vivendo num espaço predominantemente conservador, elas precisam se organizar e consolidar estratégias para combater a opressão do dia-a-dia
A invisibilidade feminina tem sido uma constante na sociedade patriarcal. E quando se trata de mulheres camponesas, a discriminação, exploração, opressão e violência são ainda mais acentuadas.
A estruturação do poder masculino se deu pela apropriação ou usurpação do poder feminino, e isso foi naturalizado. As mulheres passaram a ser vítimas e menosprezadas, sendo que grande parte delas não se deu e não se dá conta disso.
Quando a sociedade passou a ter como parâmetro a realidade urbana, as camponesas sofreram com uma dupla hierarquia perpetuada. Assim, foram inferiorizadas por duas razões: a primeira, por serem mulheres; e a segunda, por fazerem parte de um lugar considerado atrasado, de sujeira e burrice.
O Brasil, por um longo período, mesmo anterior à invasão européia, era um mundo rural organizado patriarcalmente. Nas formas de organização da vida indígena brasileira, o mando e a superioridade masculina já predominavam. Eram os caciques que escolhiam as esposas para si e para os outros homens, por exemplo. Também era o poder deles que destinava as terras e promovia a partilha dos alimentos.
Nos quilombos, organizações de resistência negra, as mulheres não fugiam à regra da submissão. A servidão sexual imposta a elas se justificava pelo número reduzido de mulheres em relação aos homens. Alguns autores tratam este fato como sendo uma forma de solidariedade delas para com eles.
Não é nenhuma novidade que as mulheres camponesas, pela relação histórica com as plantas e os alimentos, desde a criação da agricultura, mantêm uma porção de saberes acumulados. A respeito disso várias reflexões são possíveis, tanto do ponto de vista do empoderamento, como da perda do poder que possuíam. Parece que os saberes populares construídos por elas ao longo do tempo ficaram restritos ao universo das panelas e dos cuidados. Se esse trabalho não fosse relacionado a uma condição de suposta incapacidade das mulheres, seria um elemento positivo, de reconhecimento, como acontecia no período anterior à sociedade escravocrata. A mesma questão pode ser enxergada de outro ângulo: esse conhecimento garantiria formas de resistência, algo que ainda lhes proporcionaria certo poder, conservando misticismo, simbologias e demarcando o território. Mas, para tanto, seria necessária a politização dos cuidados, exigindo o compartilhamento das tarefas.
A análise marxista, feita a partir do desenvolvimento das forças produtivas no capitalismo, obviamente não considera o trabalho de reprodução da vida como produtivo. E este trabalho é majoritariamente atribuído e realizado pelas mulheres. Particularmente dentro do universo das mulheres camponesas, a jornada é duplicada ou triplicada na maioria das vezes, o que as leva a permanecer no ambiente privado e restrito.
Lavar trouxas de roupa, cozinhar, costurar e cuidar dos filhos(as) enquanto os homens da casa descansam da jornada na roça – que é uma jornada também delas – sempre pareceu normal. Da mesma forma, serem as primeiras a se levantar e as últimas a dormir é algo que passa despercebido. Nesse sentido ficam evidentes a condição serviçal e a legitimação da exploração do seu trabalho. Tanto a exploração quanto todas as formas de opressão, desde o pouco poder de decisão, se transformam em violência e as priva de prazeres.
Sem acesso à educação
Quando se trata da educação para o campesinato percebe-se a grande dívida do Estado para com as camponesas e camponeses. Sempre se foi “dando um jeito”, uns ensinando os outros. Os homens aprendiam ofícios, alguma escrita e cálculos, com vizinhos ou pessoas que passavam nas redondezas, e as mulheres aprendiam prendas domésticas em casa. Uma primeira alusão à educação rural aparece na Constituição de 19341.
Analisar a relação das mulheres camponesas com o acesso à educação evidencia uma realidade perversa. Proibidas de sair de casa, pois eram preparadas para o casamento e para obedecer à igreja e ao marido, a grande maioria teve pouquíssimas possibilidades de estudo2. Não bastasse isso, toda a sua criatividade e todas as invenções que surgiram no decorrer do desenvolvimento das suas tarefas nunca foram reconhecidas, mas apropriadas por quem detinha o saber considerado científico.
As tecnologias desenvolvidas pela classe trabalhadora trouxeram avanços cada vez maiores para a realidade urbana e para o agronegócio, ao passo que ignoraram o campesinato. Os livros que tratam dos trabalhadores do campo, literatura bastante recente, não trazem as mulheres como sujeitos históricos. Aliás, elas pouco aparecem. Não sei como se gerou tanta gente e tanta mão-de-obra desde o período colonial…
Em nome da cultura do Brasil campesino, de não dividir a pouca terra entre numerosos herdeiros(as), o costume sempre privilegiou os filhos homens. As mulheres, quando se casavam, recebiam algumas tralhas de enxoval, uma máquina de costura, uma vaca e algo mais, se a família fosse mais abastada. A lei dos direitos iguais entre homens e mulheres na partilha de bens é bastante recente e, não raras vezes, elas abrem mão desse direito.
Os privilégios masculinos acabam hegemonizando formas de cultura; com isso se perpetuou a idéia de que mulher não combina com poder. Em nome da fragilidade construída e imposta às mulheres, elas foram colocadas no mundo do trabalho, mas não no mundo das decisões. Para termos uma idéia do que isso significa, estudos apontam que elas realizam dois terços do trabalho do mundo, no entanto, recebem um terço do valor, se comparado aos homens3. Da mesma forma, em relação às riquezas do universo, apenas 1% está em posse delas. No Brasil, somente 8% das mulheres camponesas têm a terra em seu nome. Essa mesma proporção chega a 2,5% no Nordeste.
As histórias de resistência das mulheres no Brasil vêm de muito tempo. Mas a opressão que recaía e recai sobre elas fez com que os movimentos organizados demorassem a eclodir, quanto mais os de camponesas. Quando se cogitava, no início da década de 1950, ensaiar uns primeiros passos feministas, as mulheres camponesas estavam distantes de saber algo sobre isso. Se o feminismo era uma palavra ainda não entendida e tampouco compreendida na cidade, imaginem no campo.
É a partir do final da década de 1970, quando vários movimentos feministas surgem nas principais capitais, que as mulheres camponesas, muito timidamente, começam a perceber a opressão de gênero além da exploração de classe. No início dos anos de 1980, surgem no Brasil organizações específicas de mulheres camponesas, com a perspectiva de luta reivindicatória. Antes disso elas participavam das lutas em movimentos mistos, porém com enormes dificuldades de conseguir explicitar reações contrárias ao patriarcalismo, que lhes negava espaços de poder e comando na sociedade e nas próprias organizações.
Luta por território
O feminismo demorou muito mais para ser entendido pelas mulheres camponesas porque a educação a que tinham acesso era, em grande parte, eclesial. O feminismo nasce da luta das mulheres para se constituírem como sujeitos de direitos, inclusive sobre o seu corpo, que é seu primeiro território.
Foi em 2004 que mulheres camponesas organizadas em movimentos autônomos, formaram o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), de dimensões nacionais, o que causou certo espanto até mesmo em muitos “valorosos companheiros de longa jornada de lutas”. Por que ainda é tão difícil compreender o que Friedrich Engels4 havia conseguido visualizar, “que o grau de emancipação da mulher corresponde ao grau de emancipação da sociedade em geral”?
Simone de Beauvoir já afirmava que “a libertação das mulheres será obra delas próprias”. A partir disso, sabemos que há inúmeros desafios para a continuidade da luta em vista da transformação de classe e gênero. As mulheres precisam reaprender o poder, consolidar estratégias para a não aceitação daquilo que as oprime, explora e diminui enquanto sexo feminino e classe trabalhadora.
Recentemente, o MMC abriu o debate sobre a necessidade do feminismo camponês, uma visão de transformação social que inclui a transformação das relações desiguais de gênero. Defende-se que o campesinato seja um lugar de vivência e cultura, sem aceitar o machismo e o conservadorismo incrustados nele, que menosprezam e violentam as mulheres camponesas.
*Isaura Isabel Conte é dirigente do Movimento de Mulheres Camponesas do Rio Grande do Sul (MMC-RS)