A jurisprudência do erro: a prisão de Lula na suprema corte brasileira
A Suprema Corte ainda resiste em assegurar os direitos fundamentais da presunção de inocência e do próprio devido processo legal ao ex-presidente brasileiro. A jurisdição constitucional, a despeito de todos os princípios constitucionais e criminais, resiste em garantir os direitos e, consequentemente, a liberdade de Luiz Inácio Lula da Silva, contrariando a Carta Magna e constituindo, assim, uma jurisprudência do erro.
Desde a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em 07 de abril de 2018, discute-se, no Brasil, a ilegalidade de tal ato. A primeira discussão sobre a legalidade da prisão diz respeito ao princípio da presunção de inocência, o qual é garantido no Art. 5º, inciso LVII da Carta Magna brasileira.
Dentro de tal contexto, é importante destacar o Habeas Corpus (HC) 152.752, julgado em 05 de abril de 2018. Em tal ocasião, o Supremo Tribunal Federal entendeu, por maioria, que o cumprimento da pena após o duplo grau de jurisdição não representa ruptura ou afronta ao princípio da não-culpabilidade¹.
O voto que mais se destacou no placar de 6 a 5, foi o de Rosa Weber, a qual sustentou que independentemente da posição pessoal defendia por ela quanto ao tema de fundo não teria como “reputar ilegal, abusivo ou teratológico, acórdão que, forte nesta compreensão do próprio Supremo Tribunal, rejeita a ordem de Habeas Corpus”, invocando, assim, o “princípio da colegialidade”, para, na visão dela, consagrar a previsibilidade das decisões do Judiciário.
Dentro de tal cenário, após a referida decisão, percebeu-se que, a despeito de ter havido a negativa do Habeas Corpus do ex-presidente, ocorreu uma mudança na visão individual de Gilmar Mendes, que acarretou na visão da maioria da Corte. O Ministro manifestou-se no sentido de conceder a ordem do HC para que o eventual cumprimento da pena contra o ex-presidente Lula ocorra somente a partir do julgamento da matéria pelo Superior Tribunal de Justiça.
Lula teve a ordem do seu HC negado, mesmo tendo a maioria de ministros da Suprema Corte discordando, no mérito, da constitucionalidade do modelo de tal prisão no Brasil. Portanto, na prática, haveria o seguinte cenário: Carmem Lúcia, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Edson Fachin e Alexandre de Moraes sendo pró-execução provisória; Celso de Mello, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Rosa Weber2 sendo contrários à execução provisória; Dias Toffoli e Gilmar Mendes defendendo a tese de execução após julgamento do Superior Tribunal de Justiça.
Do caso em questão, é importante frisar, também, que a presidente da Corte à época, Ministra Cármen Lúcia, tinha a possibilidade de pautar as Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44, as quais discutem, de modo concentrado, a constitucionalidade da modalidade da prisão de Lula. No entanto, a então presidente do Tribunal optou por não tratar o tema de modo abstrato e pautar apenas o HC de Lula. Antes do julgamento, a mesma afirmou querer avaliar a prisão em segunda instância por conta de Lula “seria apequenar muito o Supremo.”
Passado alguns meses da prisão, a parcialidade de Sergio Moro, responsável por condenar Lula, saltou aos olhos da comunidade jurídica brasileira. Sua nomeação para o Ministério da Justiça e Segurança Pública por Jair Bolsonaro, beneficiado na corrida eleitoral pela prisão de Lula, foi classificada, por uma das procuradoras da Lava-Jato, como uma possibilidade de “queimar a operação.”
Fato é que a parcialidade de Sergio Moro é perceptível desde a condução coercitiva ilegal de Lula, passando pela divulgação ilegal dos grampos entre esse e Dilma Rousseff, até chegar à própria condenação sem provas do ex-presidente.
Nesse viés, a defesa de Lula ajuizou, em novembro de 2018, o HC 164.493, objetivando a liberdade do mesmo, a declaração de suspeição de Sergio Moro em razão de sua parcialidade e, consequentemente, as nulidades dos atos processuais da Ação Penal “comandada” por Sergio Moro.
Dentre os argumentos levantados pela defesa, destacam-se: a ilegal condução coercitiva de Lula, em 04 de março de 2016; a arbitrária quebra do sigilo telefônico do ex-presidente, de seus familiares e até de seus advogados; a violação do sigilo das interceptações e divulgação ilegal dos áudios; a condenação imposta a Lula, pelo ex-juiz Sergio Moro; a atuação de Moro para impedir ordem de soltura contra Lula, em julho de 2018; o fato de o interrogatório do ex-presidente, relativo à Ação Penal que acarretou em sua condenação, ter sido adiado com o claro objetivo de impedir que Lula pudesse se manifestar publicamente; o fato de, em 01.10.2018, na última semana antes do primeiro turno das eleições, o juiz Sergio Moro, de ofício, ter levantado o sigilo de parte da delação premiada de Antônio Palocci Filho, cuja narrativa buscaria incriminar o ex-presidente e a qual “(a) teve ampla exploração pela imprensa e (b) significativa repercussão na seara eleitoral, resultando no crescimento nas intenções de voto em relação ao agora presidente eleito” e; o fato de que o ex-juiz Sergio Moro assumir o Ministério da Justiça e Segurança Pública do governo opositor político do Partido dos Trabalhadores.
A segunda turma do Supremo Tribunal Federal iniciou o julgamento de tal HC no dia 04.12.2018, quando os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia votaram por não conhecer do Habeas Corpus. Nessa mesma data, o ministro Gilmar Mendes pediu vistas do processo, de modo a não haver a possibilidade de soltura de Lula.
No dia 25.06.2019, o STF voltou a discutir o tema. Em tal contexto, sublinha-se as divulgações feitas pelo site The Intercept, o qual escancarou fatos novos sobre a parcialidade de Moro e seu conluio com o procurador responsável por oferecer a denúncia contra Lula, violando, assim, o sistema acusatório brasileiro e, consequentemente, demonstrando a parcialidade de Sergio Moro.
Nesse sentido, considerando a série de reportagens publicadas pelo site The Intercept, o ministro Gilmar Mendes destacou que “não há como negar que as matérias possuem relação com fatos públicos e notórios cujos desdobramentos ainda estão sendo analisados”. Diante disso, o ministro defendeu que o HC não deveria ser analisado naquele momento em razão da necessidade de mais tempo para analisar a suposta parcialidade do ex-juiz na condenação de Lula. Dessa forma, Mendes sugeriu que Lula deveria ser solto até que o Supremo Tribunal Federal concluísse o julgamento.
Ao votar a proposta feita por Gilmar Mendes, Edson Fachin afirmou que, por ora, não via motivos para mudar o voto que deu em dezembro contra o pedido de liberdade de Lula e destacou que “não se tem notícia de que o aludido material [obtido pelo The Intercept] tenha sido submetido a escrutínio das autoridades”. Na mesma linha, a ministra Cármen Lúcia, afirmou que já votou o mérito do HC em dezembro e que, também, não via motivos para mudar, no entanto, ressaltou que “o julgamento não acabou” e que “o acervo que pode ser trazido ainda, como comprovações posteriores, não impede o uso de instrumentos constitucionais e processuais para garantir os direitos do paciente”.
Por outro lado, o Ministro Ricardo Lewandowski defendeu que o julgamento não deveria ser adiado novamente, uma vez que já haveria a comprovação da parcialidade de Sergio Moro, mas disse que, caso o Tribunal decidisse julgar o Habeas Corpus em outro momento, concordava com a concessão da liberdade provisória ao ex-Presidente. Nesse viés, estando o julgamento empatado em 2 a 2, o voto do ministro Celso de Mello foi decisivo para a manutenção da prisão de Lula, quando este votou contra a concessão de liberdade temporária a Lula até que a Segunda Turma conclua o julgamento da medida impetrada. Em seu voto, o decano do STF afirmou que a negativa da prisão provisória, antes do julgamento do mérito, “não envolve nem sequer antecipa a decisão que já tenho preparada no voto elaborado para examinar o mérito”.
A partir do exposto, nota-se que a Suprema Corte impossibilitou, mais uma vez, a liberdade de Lula. Do caso em questão, percebe-se que, mesmo havendo consideráveis indícios de parcialidade de Sergio Moro e de consequente ilegalidade da prisão de Lula da Silva, o Tribunal brasileiro ainda resiste em reconhecer e colocá-lo em liberdade frente aos indícios de violação do Processo Penal brasileiro.
Ademais, tendo em vista os consideráveis indícios de parcialidade de Sergio Moro, é possível, ao menos, a instauração de dúvidas ao julgador, o qual, na esfera penal, está vinculado ao princípio do indubio pro reo. À luz de tal garantia, verifica-se a necessidade do julgador agir, em casos de dúvida, a favor do réu, de modo a expressar o princípio jurídico da presunção da inocência, que diz que em casos de dúvidas se favorecerá a liberdade.
No entanto, o caso Lula se diferencia dos demais. Como bem destacado por Ricardo Lewandowski, no julgamento que adiou mais uma vez a discussão da suspeição de Sergio Moro, o processo parece se desenrolar de maneira diferente em razão do réu ser “determinada pessoa”. Tal fala foi direcionada ao fato de, na visão do ministro, haver a concessão de diversos Habeas Corpus em circunstâncias análogas no Supremo Tribunal Federal.
Em tal seara, salienta-se, também, a guerra de liminares envolvendo a possibilidade da concessão de entrevistas por Lula de dentro do presídio. Antes das eleições presidenciais de 2018, o ministro Ricardo Lewandowski autorizou, de modo monocrático, a possibilidade de realização da entrevista com o ex-presidente, sustentado que o plenário do STF garantiu “a plena liberdade de imprensa como categoria jurídica proibitiva de qualquer tipo de censura prévia”. No entanto, o ministro Luiz Fux, ao acolher o pedido liminar do Partido Novo para suspender a decisão de Lewandowski, disse que haveria “elevado risco de que a divulgação de entrevista com o requerido Luiz Inácio Lula da Silva, que teve seu registro de candidatura indeferido, cause desinformação na véspera do sufrágio, considerando a proximidade do primeiro turno das eleições presidenciais”. Tal decisão veio a ser revogada apenas em 18 de abril de 2019, depois de passado mais de seis meses das eleições.
Outro fato a se destacar, está nas constantes manifestações de militares nas vésperas dos julgamentos da Suprema Corte. O general Villas Boas, por exemplo, comandante das Forças Armadas até janeiro de 2019, postou, um dia antes do julgamento do primeiro Habeas Corpus de Lula, a seguinte mensagem: “asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Tal posicionamento não foi bem visto pelo ministro Celso de Mello, único que, ao julgar o Habeas Corpus, ousou responder ao general, afirmando que as declarações de Villas Boas eram “claramente infringentes do princípio da separação de poderes” e que tais falas “fragilizam as instituições”. Em entrevista posterior, o militar afirmou a necessidade de assumir “domínio da narrativa” e que conscientemente trabalhou sabendo que estavam “no limite“.
Ademais, ressalta-se que, em 01.07.2019, o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, afirmou que “já houve dois julgamentos de Habeas Corpus para o ex-presidente Lula, um em abril de 2018 e o outro que ocorreu em junho na Segunda Turma”. Além disso, Toffoli disse que “todos aqui [no STF] têm couro suficiente para aguentar qualquer tipo de crítica e de pressão”.
De tal ponto, importa destacar que, em sua visão, o Tribunal teria “couro” pra aguentar crítica e pressão, mas teria tal Tribunal o “couro” para ser contramajoritário e garantir direitos fundamentais de “determinado réu” frente ao discurso punitivista da direita? Haveria “couro” suficiente para enfrentar as críticas pró-concessão de Habeas Corpus? Ou “couro” para enfrentar os interesses militares? De fato não há respostas para tais questionamentos, porém, na prática, percebe-se que a função contramajoritária é invocada, constantemente, como uma ferramenta de legitimação da retirada de direitos.
Portanto, ao fim, nota-se que a Suprema Corte ainda resiste em assegurar os direitos fundamentais da presunção de inocência e do próprio devido processo legal ao ex-presidente brasileiro. A jurisdição constitucional, a despeito de todos os princípios constitucionais e criminais, resiste em garantir os direitos e, consequentemente, a liberdade de Luiz Inácio Lula da Silva, contrariando a Carta Magna e constituindo, assim, uma jurisprudência do erro.
1 Geraldo Prado nos ensina que “(…) não adotamos o modelo norte-americano de processo penal, assentado no paradigma de controle social do delito sobre o qual se estrutura um conceito operacional de culpabilidade fática; todo o oposto, nosso sistema estrutura-se sobre o conceito jurídico de culpabilidade, que repousa na presunção de inocência. Em apertada síntese, o conceito normativo de culpabilidade exige que somente se possa falar em (e tratar como) culpado, após o transcurso inteiro do processo penal e sua finalização com a imutabilidade da condenação. E, mais, somente se pode afirmar que está ‘comprovada legalmente a culpa’ como exige o artigo 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, com o trânsito em julgado da decisão condenatória”. PRADO, Geraldo. “O trânsito em julgado da decisão penal condenatória”. In: Boletim do IBCCRIM, n. 277, dezembro de 2015
2 Apesar de ter votado pela constitucionalidade da prisão de Lula, Rosa Weber já se posicionou contra a constitucionalidade de tal modelo de prisão nas Medidas Cautelares das Ações Diretas de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44 e no HC 126.292. Frisa-se, mais uma vez, que Rosar Weber invocou a previsibilidade das decisões para acompanhar seus pares e contrariar a própria visão pessoal sobre a modalidade de prisão de Lula.