A Lava Jato e a academia norte-americana de Direito
Tão logo foram divulgadas as primeiras reportagens do The Intercept sobre o escândalo da Vaza Jato, Matthew Stephenson escreveu um texto avaliando que o Procurador da República Deltan Dallagnol teria sido ingênuo ao manter conversas com o então juiz Moro. Moro, por sua vez, teria cometido erros graves e inescusáveis. No novo texto, citado por Moro na sessão do Senado, o acadêmico de Harvard revia sua posição inicial em relação a Moro e considerava que a Vaza Jato era um “escândalo que encolheu”.
Em sua aparição perante o Senado para responder a questões sobre as mensagens que teria trocado com os procuradores da força tarefa Lava Jato, o ex-juiz e atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, lançou mão de uma defesa com duas frentes, por vezes contraditórias. Por um lado, ele argumentou que as mensagens teriam sido obtidas de modo criminoso, e que poderiam ter sido distorcidas por hackers associados ao portal The Intercept. Por outro lado, afirmou que as mensagens não continham nada de impróprio, já que, no Brasil, a comunicação entre juízes e promotores é “usual”.
Não havendo escândalo, assim, senão na forma como as mensagens foram obtidas, Moro atribuiu a indignação na opinião pública em relação à sua conduta ao “modo sensacionalista” pelo qual as mensagens foram divulgadas. E, fazendo uso do conhecido argumento de autoridade, buscou apoio em textos de juristas que corroboravam o entendimento de que as mensagens eram inofensivas. Um dos citados, e por mais de uma vez, foi o professor de Harvard e editor do Global Anticorruption Blog, Matthew Stephenson.
Tão logo foram divulgadas as primeiras reportagens do The Intercept sobre o escândalo da Vaza Jato, Stephenson escreveu um texto avaliando que o Procurador da República Deltan Dallagnol teria sido ingênuo ao manter conversas com o então juiz Moro. Moro, por sua vez, teria cometido erros graves e inescusáveis. No novo texto, citado por Moro na sessão do Senado, o acadêmico de Harvard revia sua posição inicial em relação a Moro e considerava que a Vaza Jato era um “escândalo que encolheu”.
Os textos de Stephenson, que reconhece não ler português e nem conhecer a fundo o Direito brasileiro, insere-se em um quadro mais amplo de relacionamento pessoal e intercâmbio acadêmico entre as autoridades da operação Lava Jato e a academia norte-americana. Como o próprio autor admite, ele é amigo pessoal de Dallagnol, que o trouxe ao Brasil para dar palestras em evento do Ministério Público Federal e participou de ao menos um evento e uma entrevista conduzidos por Stephenson. Stephenson afirma não ter consultado Dallagnol antes de escrever seus textos. Não há razão para que se duvide da palavra do acadêmico, mas não se pode negar que, até agora, Dallagnol era uma de suas principais fontes de informação sobre a operação Lava Jato.
Dallagnol, por sua vez, tem mestrado por Harvard (pago pelo Ministério Público Federal), de onde pretendeu importar uma nova teoria de provas para o processo penal brasileiro, sem a qual, garante o procurador, crimes de colarinho branco não poderiam ser facilmente punidos. Moro também faz parte de circuitos semelhantes. Desde que eclodiu a Lava Jato, o ex-juiz deu diversas palestras em universidades e think-tanks norte-americanos, culminando com o discurso de formatura da Universidade de Notre Dame, em 2018, quando o ex-juiz recebeu diploma honorário de direito (Juris Doctor) dessa importante instituição do estado de Indiana.
Mas a citação de Moro a Stephenson tem raízes e finalidades ainda mais profundas na história das ideias e das instituições jurídicas. A circulação internacional de juristas e a tentativa de promover mudanças locais com base na importação de modelos estrangeiros foi uma das marcas do movimento “direito e desenvolvimento”, no século XX. O Brasil foi, inclusive, um dos espaços nos quais ocorreram notáveis experimentos de “modernização” a partir de transplante de instituições norte-americanas.
Nos anos 1960, auge da Guerra Fria, acadêmicos estadunidenses vieram ao país ajudar a implantar novas normas jurídicas de direito privado e novas práticas de ensino jurídico, esperando que isso pudesse conduzir o país ao que foram os EUA da “idade de ouro”: uma economia de mercado e uma democracia liberal vibrantes. O plano não apenas não deu certo (os modelos não eram adequados à realidade brasileira), como em alguns casos gerou efeitos contrários aos pretendidos. Nos anos 1970, aqueles que lideraram essas iniciativas estavam tomados por imensa frustração.
De lá para cá, muitos acadêmicos tentaram entender como se estruturam esses processos de importação e exportação do Direito. Duas conclusões frequentemente apontadas por esses autores parecem importantes para que possamos compreender essa que é uma dimensão tão importante quanto oculta e problemática da Lava Jato.
A primeira é que, embora esses processos sugiram algum grau de “imperialismo jurídico” por parte dos agentes norte-americanos, a realidade é mais complexa. Os modelos estrangeiros são muitas vezes apropriados funcionalmente por agentes que buscam legitimar suas pretensões localmente. Estabelece-se, assim, uma relação mais intricada entre as elites do Norte e do Sul. As elites do Norte buscam parceiros que os ajudem a disseminar seus modelos; as do Sul buscam novas fontes de capital simbólico que podem mobilizar em suas lutas por poder. Na melhor das hipóteses (para as partes, bem entendido), a relação será de ganha-ganha; na pior, as elites do Norte terão servido de mero instrumento para os jogos e projetos de poder mantidos por seus parceiros do Sul.
A segunda conclusão é que, nesses processos de importação e exportação do direito, algo sempre pode ser deixado para trás, segundo seja conveniente para os agentes envolvidos. Dallagnol, por exemplo, disse ter trazido uma nova e modernizante teoria de provas dos Estados Unidos para o Brasil, mas se esqueceu de registrar que os Estados Unidos, ao contrário do Brasil, adotam um modelo adversarial, e não inquisitorial, de processo penal. Transplantada para outro contexto, a teoria norte-americana leva a um achatamento do direito de defesa que, muito provavelmente, seria inadmissível perante os standards de devido processo legal vigentes nos Estados Unidos.
Já Moro, na sentença que condenou Lula no caso do tríplex, citou duas decisões de Cortes Federais norte-americanas para fundamentar sua conclusão de que pode haver corrupção sem ato de ofício. Ocorre que a posição vencedora no Direito norte-americano é exatamente a oposta da que Moro utilizou. No caso McDonnell v. United States, decidido em 2016, auge da Lava Jato, a Suprema Corte do país rescindiu a condenação do ex-governador da Virgínia, Robert McDonnell, por crime de corrupção.
McDonnell e sua esposa comprovadamente receberam de Jonnie Williams, um empresário local da indústria de suplementos alimentícios, vantagens como relógios Rolex e vestidos de noiva em um total de aproximadamente US$ 175 mil. McDonnell, por sua vez, teria convocado reuniões, feito contato com outros agentes públicos, e organizado eventos em benefício de Williams. Em 2012, McDonnell chegou a permitir que Williams redigisse a lista de convidados de um coquetel para personalidades da área de saúde no Estado. A defesa de McDonnell argumentava que era necessário comprovar o vínculo entre essas ações e as vantagens recebidas pelo ex-governador. A Corte concordou e decidiu que, embora o que McDonnell fez fosse “repugnante”, não podia ser enquadrado como corrupção sem prova clara de que se deu em troca daqueles presentes (o chamado “quid pro quo”). A plena americanização do processo de Lula, portanto, deveria levar à absolvição, e não à condenação deste.
Se as trocas de mensagens reveladas pelo The Intercept nos levarem, como deveriam, a reexaminar criticamente os métodos da Lava Jato, essa conexão instrumental e estratégica entre os nossos juízes e promotores e a academia norte-americana não deveria ficar de fora. Em um contexto tão dramático como o do Brasil da Vaza Jato, a produção de análises e argumentos pede maior cautela, da parte de figuras como Stephenson, e mais desconfiança sobre a mobilização de redes e credenciais transnacionais, da parte da mídia, das elites políticas, e dos formadores de opinião no país.
Fabio de Sá e Silva é professor Assistente de Estudos Internacionais e Professor Wick Cary de Estudos Brasileiros, Universidade de Oklahoma