A lei da selva
Em nome do pensamento desejável, queremos a qualquer preço proteger o mito da “festa esportiva”, mesmo que esta seja sangrenta, ao invés de condenar a guerra esportiva que, como toda guerra, nunca é limpa nem solúvel em bons sentimentos humanitáriosJean-Marie Brohm
Três obstáculos ideológicos contribuem para dar uma auréola angelical, ou uma cândida cegueira a qualquer tentativa de fazer uma análise sócio-política do esporte. O primeiro é a lei do silêncio, que se faz passar por ética no mundo do esporte: ninguém sabe, ninguém viu! Quem abra a boca é traidor ou covarde e é banido pelo “meio” esportivo, [1] que se apóia — inclusive em suas instâncias dirigentes — na lei do silêncio, na opacidade, na desinformação, no falso e no uso da falsidade.
Quando um ciclista famoso afirma que não existe doping no ciclismo; quando um judoca ou um futebolista renomados negam, apesar do resultado positivo dos exames, terem sido dopados; quando o Comitê Olímpico Internacional (COI) desmente, contra todas as provas, transações ocultas para sediar os Jogos; [2] quando jogadores de futebol, pilotos de Fórmula 1, tenistas, jogadores de basquete ou golfistas escondem o montante exato de seus ganhos mirabolantes; quando alguns dirigentes fingem descobrir “por baixo da mesa”, apostas clandestinas, caixas dois, marmelada de jogos “arranjados”, arbitragens parciais… [3] Quando, enfim, atletas, treinadores e dirigentes minimizam a gravidade e a frequência das agressões, socos e ferimentos deliberados, nos estádios e fora deles, existem mais do que meros motivos para se perguntar quais as razões desta resistência do esporte, que não tolera — como outras instituições, os presídios ou o exército, por exemplo — a independência da investigação e a transparência da pesquisa.
Operações comerciais obscuras
Por outro lado, é difícil acreditar que os organismos supranacionais — principalmente europeus —, os poderes públicos, as comissões parlamentares ou as federações esportivas, apesar de suas declarações atenuantes, estejam dedicando um excessivo zelo para expor os aspectos pouco reluzentes de uma atividade decididamente à margem da lei, senão fora da lei.
O que estaria impedindo a direção das alfândegas e o Ministério da Economia e das Finanças de investigarem os circuitos financeiros, as contas bancárias, as declarações fiscais, as operações comerciais obscuras dos diferentes atores implicados no esporte profissional? É verdade que são feitas investigações policiais sobre a origem dos fundos que enriquecem as seitas e sobre os esquemas mafiosos ou terroristas das redes de lavagem de dinheiro. No que se refere ao doping, as denúncias exaltadas do COI nos meios de comunicação, as “resoluções firmes” do governo francês, as declarações indignadas dos responsáveis esportivos não mudam em nada a realidade: comissões dos especialistas se reúnem para nada e a impostura prossegue, tranqüila.
A lógica da competição esportiva
Como salienta Michel Drucker, ex-jornalista esportivo: “Já há bastante tempo nadamos em meio à plena hipocrisia. Quem é que vai acreditar que é possível subir quatro montanhas por dia tomando água mineral, ou pedalar 25 etapas em três semanas sem uma ’ajuda’? Alguém acredita que um navegador solitário enfrenta uma viagem ao Cabo Horn tomando chá? Qualquer jornalista esportivo da minha geração dirá: todo mundo tomou, desde sempre, e nós sempre soubemos disso. O ciclismo é um esporte alucinante de sacrifício, a dor é intensa. E os corredores pedalam dez meses por ano! Não dá para enfrentar os clássicos belgas, os ralis Paris-Roubaix e Milão-São Remo, a Volta à França e a Volta à Itália com um tubo de vitamina C!… Em todos os esportes é a mesma coisa. Os atletas têm milhões dos patrocinadores nas costas, no peito, nos bonés, nos tênis. Os compromissos financeiros são enormes. E exige-se deles cada vez mais e melhor desempenho.” [4]
O segundo obstáculo, ligado ao precedente, é a pusilanimidade de atletas e dirigentes — mas também de jornalistas esportivos — que se sentem questionados à mínima pergunta ou crítica: expor o estado real da situação representa, para eles, ridicularizar o “trabalho de base dos bem-intencionados”, “jogar fora o bebê com a água do banho”, ou, ainda pior, “denegrir o bom exemplo de nossos campeões” e a “força de integração do esporte”. Esse consenso esportivo acaba, portanto, contribuindo para reforçar os mecanismos de defesa de uma instituição em crise. A cada novo incidente desejamos, digamos assim, acreditar que não passa de “erro bobo”, de um “desvio”, de uma “conseqüência” ou de um “excesso”, de preferência provocados por “elementos estranhos ao esporte”, mas jamais ousaríamos admitir que é a própria lógica da competição esportiva que gera estes “animais raivosos”, para usar uma fórmula britânica.
Os bons sentimentos humanitários
Em nome do pensamento desejável, queremos a qualquer preço proteger o mito da “festa esportiva”, mesmo que esta seja sangrenta, ao invés de condenar a guerra esportiva [5] que, como toda guerra, nunca é limpa nem mesmo solúvel em bons sentimentos humanitários.
Antigamente, para evitar despedaçar o “coração da classe operária”, os militantes comunistas fechavam piedosamente os olhos à barbárie stalinista. Hoje — numa época distinta, mas com o mesmo procedimento — trata-se de evitar o desespero das avestruzes que pensam brigar por um “esporte limpo”, “humanista”, “a serviço da paz” etc. Portanto, os inimigos do esporte são os que denunciam a ilusão esportiva [6] e tentam proceder a uma análise rigorosa do esporte.
Hordas bárbaras de extraterrestres
Por ocasião da agressão de que foi vítima, durante a Copa do Mundo de 98, um policial francês — deixado como morto, num mar de sangue — um jornalista recitou imediatamente o credo legitimista: “E eis que começa o processo, tão velho quanto o esporte-espetáculo, com inúmeros procuradores confirmando seus preconceitos: o responsável é o futebol, e seu cortejo de pragas — o embrutecimento, o chauvinismo, o nacionalismo, a violência, o ópio do povo, enfim, toda a lista normal do desprezo entendido como ato passível de análise sociológica. Os excessos existem, quem os negaria? Mas nem sempre, e não neste caso”.
As hordas bárbaras de “hooligans” cheios de álcool e de raiva seriam, portanto, puros extraterrestres, estranhos ao futebol: “Ingleses, alemães ou outros, o futebol não os motiva. Abriga-os, às vezes, numa complacência culpável. Serve-lhes de desabafo, de camuflagem ou, no caso da Copa do Mundo, de uma chance na mídia. Mas não nos enganemos: se eles se escondem no futebol, ou à sua sombra, não freqüentam os estádios. Eles até odeiam os estádios.” [7]
O banho de sangue de Heysel
Essa negação da realidade — que ocorre na última linha de defesa de um esporte assolado por essa onda de violência — apóia-se num postulado ideológico bem conhecido: o “verdadeiro” futebol, o das peladas de várzea e das cidades periféricas, foi pervertido pelas ovelhas negras que se vêm infiltrar nele, como tantos outros temíveis parasitas.
Ora, o que nunca se explica é esse estranho tropismo que atrai irresistivelmente os “hooligans” em direção ao futebol, as profundas afinidades que levam os “ultras” a essa paixão pela bola. Após o banho de sangue de Heysel, em 1985, os jornalistas esportivos ousaram afirmar, pelo mecanismo clássico da inversão ideológica, que, longe de ser assassino, o futebol havia sido assassinado: de culpado, tornou-se a vítima! A pureza original do futebol seria, portanto, sempre deflorada por “jovens malvados” vindos de fora. Mas esta tese é insustentável, se se contabilizar, com o devido cuidado, os graves incidentes que ocorrem constantemente em jogos “amistosos”, nos campeonatos nacionais e nas partidas internacionais de futebol. [8]
Pequena homenagem ao esporte como “integração”
A lista de batalhas travadas, brigas sangrentas, pânicos mortais e confrontos macabros provocados pelo futebol — tanto pelos jogadores como pelos espectadores —, ou ligados a ele é impressionante, se não for simplesmente considerada como um conjunto de “fatos sensacionalistas”. Em homenagem aos adeptos da “cultura esportiva”, segue-se uma pequena amostra dos efeitos da “integração”. “Um amistoso de futebol realizado sábado, 27 de fevereiro, em Annonay (Ardèche), degenerou em violência devido às provocações de um grupo de torcedores vindos de Saint-Etienne. Após um jogo cheio de incidentes, os torcedores de Saint-Etienne se dirigiram a um conjunto habitacional nos subúrbios da cidade para praticar atos de vandalismo. Os jovens do bairro reagiram queimando carros e agredindo policiais” (Le Monde, 2 de março de 1999). “Um jogo de futebol da Liga do Midi degenera em batalha organizada. Onze feridos num povoado de Gers. O clima de violência e de ódio aumenta, nos últimos três ou quatro anos, durante os jogos da Liga, sem que o racismo seja sempre a causa” (Le Monde, 16 de março de 1999). “Sede da última Copa do Mundo, a cidade de Seine-Saint-Denis adoece devido ao futebol. Nove meses após o título conquistado pelos franceses no maravilhoso Stade de France, a organização local do futebol no departamento Saint-Denis confirmou, sexta-feira 9 de abril, a sua decisão de suspender todos os jogos, em todas as categorias de idade, até nova ordem. Uma facada, no estádio de Clichy-sous-Bois, dia 28 de março, e uma briga geral em Montfermeil, no mesmo dia, justificaram as providências dos dirigentes de Seine-Saint-Denis. A escalada da violência dentro e ao redor dos campos é um fenômeno que não pára de preocupar o futebol amador. Em fevereiro de 1995, um jovem espectador foi assassinado com um tiro em frente ao estádio de Drancy” (Le Monde, 11 e 12 de abril 1999).
Seria interessante que os apóstolos da “camaradagem esportiva” — que proclamam a todos os ventos que o esporte tem a virtude de pacificação e integrar — nos explicassem por que a prática competitiva generalizada desemboca, nos “bairros desfavorecidos”, numa espécie de guerra civil latente, com suas ofensas racistas, suas agressões premeditadas, suas vinganças sangrentas ? Por que os estádios e seus arredores se transformam inevitavelmente em “estado de sítio”, com choques brutais entre bandos de malfeitores e a tropa de choque? Deveria considerar-se insignificante a impressionante movimentação e presença policial por ocasião dos jogos de decisão? Deveria acreditar-se que o espetáculo de violência oferecido semanalmente em todos os campos pelos quebradores de pernas não tem qualquer influência sobre as matilhas belicistas de torcedores, e que estas não passam de mero acessório do ambiente, do jogo e do resultado?
Os ídolos dos jovens
Após os graves incidentes ocorridos no túnel de acesso ao estádio de Marselha, onde se enfrentaram jogadores locais e do time de Mônaco, Marie-George Buffet, ministra francesa dos Esportes, reconheceria que “o valor exemplar” das estrelas de futebol era puro sonho: “Que exemplo seria este para os jovens, se eles vêem seus ídolos brigando nos corredores de um estádio?” (Le Monde, 12 abril de 2000). Mas que jogador pode pretender ser exemplar?
Jovens de todos os países têm exemplos em abundância. Na Alemanha: “Mais de cem pessoas, inclusive 27 policiais, foram feridas quando torcedores se confrontaram, antes, durante e após o jogo do campeonato regional entre Offenbach e Mannhein” (Libération, 16 de maio de 1999). Na Tunísia: “Por ocasião da semi-final da copa da Tunísia de futebol entre a equipe local e a ’Espérance Sportive’, de Túnis, voou pedra para todo lado. As autoridades tunisianas declararam três mortos e dez feridos devido às “brigas entre hooligans”, mas na realidade o balanço chegaria a 21 mortos e inúmeros feridos (L’Express, 8 de julho de 1999).
Um trailer da Eurocopa 2000
Na Rússia: “Os times de futebol do CSKA e do Spartak, de Moscou, pediram calma aos seus torcedores, sexta-feira, através dos jornais, antes do jogo. Os torcedores das duas equipes mantêm uma raiva mútua, que já provocou vários choques violentos nos últimos anos. Esse apelo à calma deu-se após a morte, sábado passado, em São-Petersburgo, de dois torcedores da equipe local, durante brigas com torcedores do Dynamo de Moscou” (Libération, 22 e 23 de abril de 2000).
Na Inglaterra: “A partida da semi-final da Copa da UEFA — jogo considerado de alto risco — entre o Leeds United e o clube turco Galatasaray desencadeou a violência já esperada, em represália aos graves incidentes ocorridos por ocasião do jogo em Istambul, durante o qual dois torcedores britânicos foram assassinados. Este jogo serviu para mostrar à polícia um retrato antecipado do que poderá acontecer durante a Eurocopa 2000, que se disputa na Bélgica e na Holanda” (Libération, 22 e 23 de abril 2000).
O polvo do doping e da droga
Choques entre grupos fanáticos, muitas vezes infiltrados pela extrema-direita, brigas de cassetete, rebeliões e vandalismo, assassinatos e linchamentos ao vivo já constituem, em todos os países e a todos os níveis da competição, o cotidiano banalizado do futebol, que também já contamina outros esportes, mesmo os que achávamos protegidos da violência, como, por exemplo, o tênis. [9]
Outro bom exemplo dado pelos “ídolos dos jovens”: o polvo do doping e da droga estendendo seus tentáculos devastadores sobre todos os esportes (ciclismo, halterofilia, atletismo, natação, rúgbi, handebol, basquete, patinagem artística, judô) — nada é poupado pela economia política da droga.
Um olhar supostamente neutro
O terceiro obstáculo é a colaboração orgânica de numerosas personalidades políticas, universitárias, jornalistas e formadores de opinião, na difusão de uma idolatria acrítica do esporte, agora batizado de “cultura esportiva”. Essa falsa consciência junta num alegre consenso os bajuladores incondicionais do esporte e os menestréis do humanismo — inclusive, na França, os da “esquerda plural” —, que evitam falar do esporte real, com seus desvios mafiosos, para sonhar com o esporte ideal: puro, educativo, pacífico, cidadão etc. Todos opõem as supostas virtudes originais da “cultura esportiva” às realidades nocivas do mercantilismo esportivo.
Alguns, em nome de um olhar antropológico supostamente neutro sobre “práticas culturais”, admiram os rituais competitivos, as paixões agonizantes, o culto do desempenho, o espírito esportivo, os prazeres do esporte, e criticam qualquer abordagem crítica que não se deixe seduzir pelas ilusões das quadras.
“Uma escola de cidadania”
Outros — muitas vezes os mesmos, por sinal — se transformam em associações de defesa da “cultura esportiva”, ameaçada pelo “ambiente social”; tal como antes nos prometiam a civilização do lazer, apresentam-nos agora a cultura esportiva : “Ela é fundamentalmente humanista, mas pode ser reduzida, deformada, pervertida, por interesses, chauvinismos, paixões por todos os lados. É somente resistindo a isso que ela pode realmente existir e se expandir.” [10]
Esta cultura esportiva não tardou em se tornar um slogan de propaganda governamental. Claude Allègre, por exemplo, ex-ministro da Educação, que não poupa elogios à “cultura esportiva”, “verdadeira escola da cidadania”, “elemento fundamental para a educação”, confessou candidamente, pouco tempo antes de ser demitido: “Aprendi tanto praticando esporte quanto na sala de aula”, acrescentando: “Eu obrigaria, se pudesse, todas as crianças a praticarem um esporte coletivo e um esporte individual.” [11]
Um negócio sem crença nem lei
O importante é saber de que esporte se trata. O esporte “socialista”, como nos quartéis da ex-RDA, da ex-URSS, da China; o esporte “liberal”, dos fraudadores de todo tipo; [12] o esporte das redes de traficantes; [13] ou o esporte dos picaretas e mercadores de escravos dos tempos modernos? [14]
Às vésperas da Eurocopa 2000, da Volta à França e dos Jogos Olímpicos de Sydney é urgente entender que a instituição esportiva entrou na era da globalização criminosa. Num universo dominado pelo integrismo neoliberal, as oligarquias esportivas já nem escondem sua colaboração com grupos de interesses que transformaram a atividade esportiva num puro negócio sem crença nem lei, dominado pelo evangelho da rentabilidade, da rapina, da dominação.
Mercadores inescrupulosos e honrados empresários
A espiral mercantil acabou transformando os atores esportivos — quem quer que eles sejam — em simples operadores ou beneficiários da acumulação selvagem do capital. [15]
Não é portanto de espantar que a lei da selva globalizada faça da desregulamentação mafiosa a sua lei e que a lógica do “sempre mais” (de recordes, de espectadores, de manifestações, de lucros) incite a uma corrida sem fim: crime organizado de diversos tráficos de drogas e de produtos entorpecentes, inclusive na Internet; crime organizado d