A Lei nº 12.990/2014 e os processos seletivos simplificados
Qual seria a razão de a reserva de vagas da Lei nº 12.990/2014 não se aplicar para processos seletivos simplificados?
A Lei nº 12.990, de 09 de junho de 2014, formulada 126 anos após a Lei Áurea, é a primeira ação afirmativa brasileira que teve como objetivo a promoção da igualdade de oportunidades às pessoas negras no acesso ao mercado de trabalho do setor público.
No entanto, passada uma década desde sua formulação, relatórios de pesquisa e artigos científicos trazem à superfície o racismo institucional, que impediu o acesso de pessoas negras ao direito firmado em 2014. Esse foi o caso do relatório baseado em evidências “A implementação da Lei nº 12.990/2014: um cenário devastador de fraudes”, produzido pelo Observatório das Políticas de Ações Afirmativas (Opará), em parceria com o Movimento Negro Unificado (MNU). O documento expressa o resultado da análise de 9.996 editais, pertencentes a 61 instituições, dos quais 3.135 (31,36%) regularam concursos públicos e 6.861 (68,64%), processos seletivos simplificados (PSS). Na pesquisa foi identificada a abertura de 19.974 (43,13%) concursos públicos e 26.334 (56,87%) processos seletivos simplificados.
Para que serve um processo seletivo simplificado? Ele é uma modalidade de seleção para formalizar um contrato temporário para um profissional cumprir uma função, cujo cargo efetivo se encontra vago por algum motivo. A atuação por período temporário, além da familiaridade com as funções, produz vantagens competitivas em concursos públicos, principalmente, em cargos em que a experiência e o currículo são contabilizados como parte do processo de seleção. Por exemplo, para o cargo de Professor do Magistério Superior, vinculado às instituições federais de ensino superior (Universidades), pessoas buscam os processos seletivos simplificados para qualificar o seu currículo, que será valorizado na ocasião de concursos públicos que possuem etapas de “provas práticas” e/ou “prova de títulos”.

Créditos: Site NeedPix
Ao longo da pesquisa, tornou-se recorrente a ausência de menção à Lei nº 12.990/2014 em editais de PSS e chamou atenção a leitura em editais de que a norma não se aplicava a essa forma de contratação no serviço público federal. Na tipologia dos mecanismos de burla, elaborada no mencionado relatório do Observatório das Políticas de Ações Afirmativas, um dos seis mecanismos identificados é a “Não publicidade da norma (NPN)”. O NPN ocorre quando, depois da entrada em vigência das cotas raciais, a instituição deixou de mencionar em seus editais a obrigatoriedade da adoção da Lei nº 12.990/2014, conforme previsto no § 3º do art.1º e art. 6º. Os resultados evidenciaram que o NPN foi reproduzido em editais de PSS de 51 das 54 instituições que tiveram editais dessa modalidade de contratação analisados.
Recentemente, em 13 de junho de 2024, durante audiência pública na Câmara dos Deputados, também houve discussão quanto à Lei de Cotas supostamente não se aplicar aos processos seletivos simplificados.
Como evidenciado pela pesquisa conduzida por pesquisadoras e pesquisadores do Opará, há um elevado número de editais de processos seletivos simplificados acontecendo no serviço público. Tal fato resulta em considerável número de profissionais atuando, em diferentes espaços do serviço público federal, de forma temporária. Ou seja, não é rara a necessidade de garantir que as funções exercidas por profissional ocupante do cargo efetivo sejam realizadas de forma temporária e/ou excepcional por outra pessoa.
As contratações por tempo determinado, para atender à necessidade temporária de excepcional interesse público, estão previstas no inciso IX, do art. 37, da Constituição Federal de 1988, e são reguladas pela Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993. Essas normas precedem a Lei nº 12.990/2014 em mais de vinte anos, assim como a ratificação do Brasil à Convenção Interamericana.
Nesse debate, é importante retomar as raízes que orientaram, em 2013, a proposição do PL 6.738, que mais tarde foi convertido na lei federal. Naquela época, a proposta foi apresentada como “um avanço significativo na efetivação da igualdade de oportunidades entre as raças, garantindo que os quadros do Poder Executivo federal reflitam de forma mais realista a diversidade existente na população brasileira” (grifo nosso).
Em 2017, por unanimidade, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014, a Lei de Cotas Raciais (LCR). No voto do relator, o ministro Luís Roberto Barroso, foi expresso que a política de ação afirmativa “se funda na necessidade de superar o racismo estrutural e institucional ainda existente na sociedade brasileira, e garantir a igualdade material entre os cidadãos, por meio da distribuição mais equitativa de bens sociais e da promoção do reconhecimento da população afrodescendente”.
Mais recentemente, em 2022, quando o Estado brasileiro ratificou a Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância (Decreto nº 10.932/2022), com o rito de emenda constitucional, foi firmado o compromisso internacional de:
“adotar as políticas especiais e ações afirmativas necessárias para assegurar o gozo ou exercício dos direitos e liberdades fundamentais das pessoas ou grupos sujeitos ao racismo, à discriminação racial e formas correlatas de intolerância, com o propósito de promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades, inclusão e progresso para essas pessoas ou grupos” (BRASIL, 2022).
Oras, se as desigualdades de oportunidades estão presentes no provimento de pessoas para o serviço público via processos seletivos simplificados;
Se desde o final século XX há previsão no ordenamento jurídico para a indicação das condições que seriam necessárias para garantir a continuidade dos serviços diante de cargos temporariamente vagos;
Se as ações afirmativas foram formuladas somente no século XXI e visam promover condições equitativas para a igualdade de oportunidades educacionais, trabalhistas ou qualquer outro tipo de política promocional;
Se a Lei nº 12.990/2014 tem como objetivo reservar vagas a pessoas negras no ingresso ao serviço público federal, “garantindo que os quadros do Poder Executivo federal reflitam de forma mais realista a diversidade existente na população brasileira” (vide texto do PL 6.738/2013);
Se o STF reconheceu a constitucionalidade da Lei nº 12.990/2014 e que “[…] a desequiparação promovida pela política de ação afirmativa em questão está em consonância com o princípio da isonomia”;
Se o Brasil assumiu compromisso diante da comunidade nacional e internacional de promover a todas as pessoas, em conformidade com o alcance da Convenção Interamericana, políticas públicas de caráter educacional, medidas trabalhistas ou sociais ou qualquer outro tipo de política promocional;
Se a contratação por período temporário também envolve a utilização de recursos públicos decorrentes da contribuição dos cidadãos brasileiros, de viés regressivo, penalizando os mais pobres, que são maiorias negras;
Qual seria a razão de a reserva de vagas da Lei nº 12.990/2014 não se aplicar para processos seletivos simplificados?
Não é razoável que a modalidade de contratação temporária de excepcional interesse público não seja alcançada pela política de ação afirmativa expressa na Lei nº 12.990/2014. Para esses gestores de processos seletivos, vale lembrar que há um brocardo jurídico que expressa bem essa perspectiva, a maiori, ad minus (quem pode o mais, pode o menos). Se as cotas servem para o cargo efetivo, por qual motivo não serviriam para quem lhe substituir?
Esse foi o entendimento conclusivo na decisão da Justiça Federal, em 2022, no âmbito da Ação Civil Pública nº 5043371-85.2022.4.02.5101/RJ, que confirmou liminar e julgou procedente o pedido para “determinar que a União adote, por todos os seus órgãos, autarquias e fundações, a reserva de 20% das vagas oferecidas nos processos seletivos regidos pela Lei nº 8.745/93, em analogia à Lei nº 12.990/2014” (trecho extraído da Ação Civil Pública nº 5043371-85.2022.4.02.5101/RJ – grifo nosso).
Nas contrarrazões do recurso de apelação da referida ACP, o Ministério Público Federal (MPF) apresenta que “[…] diversos órgãos e entidades federais não vêm adotando de modo pleno a política de ações afirmativas nas contratações regidas pela Lei nº 8.745/1993, frustrando o direito à igualdade material e à igualdade como reconhecimento (art. 5º, caput, CF/1988), bem como a obrigação de promover a isonomia da população negra e parda nas contratações do setor público (art. 39, Lei nº 12.288/2010)”.
É digno de atenção no documento do MPF a citação do Ofício n° 175/2021, emitido pelo então Gabinete da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o qual “[…] é destacado que, embora não haja orientação administrava e/ou normativa específica para aplicação da reserva de vagas para negros em processos seletivos simplificados para contratação temporária no âmbito da Administração Federal, a aplicação ampliada de cotas raciais nos processos seletivos referidos é a melhor alternativa, especialmente considerando a expressiva quantidade de servidores ocupantes de cargos temporários na administração pública federal” (p. 3 – grifo nosso).
De forma tardia, essa interpretação, por analogia, foi alcançada depois de mais de nove anos da entrada em vigor da Lei nº 12.990/2014, com a publicação, em 25 de julho de 2023, da Instrução Normativa (IN) MGI nº 23/2023. Ou seja, durante mais de nove anos o Estado brasileiro contribuiu para produzir uma desvantagem de oportunidades cuja norma federal buscou mitigar.
Portanto, em nossa compreensão, em 2024, rejeitar a implementação da Lei nº 12.990/2014 nos processos seletivos simplificados, destinados à contratação por tempo, é mais uma face do racismo institucional e estrutural, que se expressa nas instituições brasileiras.
Diante de uma regra já expressa no quadro normativo do governo federal, IN MGI nº 23/2023, em que medida a previsão de aplicar cotas para processos seletivos simplificados no PL 1.958/2021 ajuda a melhorar o nível de compreensão do debate de fundo? Em vez de buscarem a justiça, muitos utilizarão o argumento: “viu, não estava previsto na lei anterior!”.
Por fim, é importante destacar que, por decisão unânime no plenário do STF na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7654, a Lei nº 12.990/2014 segue em vigência até que se conclua o processo legislativo de competência do Congresso Nacional e, subsequentemente, do Poder Executivo. Portanto, é importante afirmar e reafirmar, conforme abordamos neste texto, que a Lei nº 12.990/2014 deve ser aplicada em processos seletivos simplificados para contratação temporária de pessoas no âmbito da Administração Federal.
De forma louvável, aproveitamos para parabenizar as universidades federais que colocam em prática efetivamente a Lei nº 12.990/2014 em seus processos seletivos simplificados: Univasf, UFPE, UFRGS e algumas outras. A verdadeira democracia no Brasil será possível quando superarmos as barreiras de desigualdade impostas à população negra!
Ana Luisa Araujo de Oliveira é professora doutora na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Integrante do Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará).
Edmilson Santos dos Santos é professor doutor na Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf). Integrante do Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará).
Alisson Gomes dos Santos é doutorando no Programa de Pós- graduação em Economia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará).