A Líbia se reencontra com o mundo
Depois de um isolamento de dez anos, o país do general Kadhafi se abre aos produtos importados, à TV via satélite e à internet. Mas mantém um sistema redistributivo avançado, direitos femininos incomuns no mundo árabe e um governo quase sem oposiçãoHelen de Guerlache
Os amantes da arqueologia antiga ou das pinturas rupestres que por acaso decidam cruzar o oceano para penetrar na Grande Jamahiriya Árabe Popular Socialista da Líbia poderão surpreender-se ao ouvir de uma jovem habitante, numa região inesperada, a seguinte pergunta: “Você conhece a música Je suis malade?” Quando você ouvir pela terceira vez alguém cantarolar a canção de Serge Lama na pequena cidade de Ghat, no extremo oeste da Líbia, onde nasceu o escritor Ibrahim al Koni [1], vai compreender que, apesar do aspecto empoeirado da paisagem urbana, das calçadas esburacadas e das ruínas dos prédios públicos à semelhança da periferia de Paris, alguma coisa de diferente aconteceu por aqui.
Depois de dez anos de isolamento nacional, a Líbia reconecta-se ao mundo, um movimento que ultrapassa os meros encontros diplomáticos. Já faz três anos que a população adolescente contribui para a queda de audiência do austero canal de TV pública Lybia, seguindo, entre outras emissões, o avanço de Star Academy [2]. É, evidentemente, uma versão em árabe, difundida pelo canal libanês via satélite LBC. Em 2004, Je suis malade?, este clássico da canção francesa foi imortalizado até no deserto líbio. Por aqui também se zapeia, hoje em dia.
A popularização da parabólica fez soprar uma nova corrente de ar fresco, apesar da rigidez do regime no interior das fronteiras. O equipamento de captação via satélite hoje é acessível à maioria, custando 200 dinares (300 reais), contra os 5 mil de antigamente. A época em que era preciso esconder as antenas dentro de falsas caixas d’água já passou. Por todo lado surgem cibercafés com preços competitivos. Apesar da dificuldade em se conservar material eletrônico num ambiente dominado pela areia, o computador tornou-se um equipamento familiar em muitas casas. E já há alguns meses também chegou a conexão ADSL.
Internet, universidades, viagens ao exterior
A população é geralmente escolarizada, com um grande número de universidades e de diplomados. A taxa de anafalbetismo é inferior a 14% e a estatística não inclui as jovens gerações. Mas o ensino das línguas estrangeiras, que desapareceu dos programas em 1984 por razões políticas, só reapareceu agora ? e o nível é muito baixo.
Outro elemento novo: a viagem (para aqueles que têm recursos). Várias companhias aéreas servem o país. Os líbios não são mais obrigados a tirar um visto de saída para deixar o território… O truque é conseguir um financiamento para a estada por meio das generosas bolsas de estudo oferecidas pelo Estado a felizardos (4 mil reais por mês, segundo um professor de francês em Sebha), um estágio de formação ou um estágio profissional em uma grande empresa nacional. Obter um visto europeu é menos problemático que para os argelinos, já que a Líbia não é um país de emigração. O aparecimento de turistas ocidentais em países por muito tempo isolados do mundo também contribui para esta reconexão, principalmente para aqueles que não podem viajar.
Esta abertura ao exterior ? um termo recusado pelos dirigentes, segundo os quais foi o exterior que se fechou a eles… ? soma-se ao início de um processo de reformas econômicas implantado há três anos, depois de mais de três décadas de economia centralizada. Falar de setor privado não é mais um tabu depois do desmantelamento da maioria dos monopólios públicos de importação e sobretudo da baixa sensível das tarifas alfandegárias. “Por todos os lados quebram muros para montar sua barraquinha como a do vizinho”, conta um expatriado. Uma classe de homens de negócios emerge, certamente ainda dentro dos círculos mais próximos do poder.
Com importações liberadas, qualquer um que deseje pode obter uma carta de crédito para comprar produtos estrangeiros. Encontra-se qualquer coisa por trás das vitrines das avenidas de Gargaresh, de Ben Achour, ou no centro da cidade: aparelhos eletrônicos ou eletrodomésticos último modelo, móveis de qualidade, roupas de marca ou provenientes da China. Acabou a época em que alguns descolados secretamente davam um pulinho até Malta ou à Tunísia, com as malas vazias, para voltarem carregados de mercadorias, apesar de o contrabando de produtos locais subvencionados pelo Estado ainda não ter acabado.
Depois de anos de privação, assiste-se a um frenesi de consumo. Foi comprando receptores de satélite em Dubai e os revendendo (muito facilmente) nas cidades do sul da Líbia, que Omar, 37 anos, pôde financiar seu cibercafé em Sebha, construir seu apartamento sobre o de seus pais e, claro, se casar ? um luxo que custa a bagatela de 8 mil dinares [12 mil reais] no mínimo (os funcionários públicos ganham cerca de 200 dinares por mês).
Boom na construção, congestionamentos nas ruas
Há mais de um ano, os bancos propõem vantajosos créditos imobiliários de 40 mil dinares [60 mil reais], em média, com taxas que desafiam qualquer concorrência e com um número de parcelas ilimitado ? 20 anos, 40 anos, etc. Somado ao programa de construção de 350 mil imóveis residenciais nos próximos anos, o setor da contrução civil viveu um boom, freado pela carência do cimento.
É inclusive mais fácil conseguir uma residência através da construção do que pela locação, destinada aos estrangeiros. E com razão. No fim dos anos 1970, o princípio de “a casa pertence àquele que nela mora” levou à expropriação de milhares de pessoas de suas segundas casas e ao apoio a todos os líbios sem domicílio que ali se instalaram. Sinal talvez de uma mudança de época, as autoridades falam em restituir os bens confiscados e de indenizar os ocupantes, que se tornariam ilegais. Mas colocar em prática esta decisão de forte caráter simbólico não parece ser tarefa para logo.
Os líbios também empurram carrinhos no Mehari, um dos três supermercados que Trípoli ganhou há cerca de um ano e meio. É o maior em tamanho, ainda que não ultrapasse os 400 m2 de superfície, e sobretudo o único que possui um estacionamento de verdade. Esse detalhe conta: o parque automibilístico (essencialmente de origem sul-coreana) cresce a cada ano e recentemente se renovou de maneira impressionante. Considerado no Livro Verde (a obra publicada pelo coronel Kadhafi em 1973 e que constitui a referência ideológica do regime) como um direito fundamental, a posse de veículos privativos foi largamente sustentada por subsídios estatais, especialmente para alguns funcionários (médicos, militares, agentes de segurança). Os proprietários beneficiam-se de empréstimos com taxas próximas a zero. “Resultado: é impossível circular corretamente na cidade há uns 2 ou 3 anos”, protesta Nadjma, 33 anos, empregada administrativa numa companhia petroleira, que se impacienta em meio aos engarrafamentos cotidianos.
Fazer compras e conduzir seu carro novinho em folha, à noite, ao longo das grandes avenidas constitui o passatempo favorito de uma juventude que freqüentemente se entedia e encontra poucas distrações fora as visitas entre amigos e as festas familiares e religiosas. Raras são as atividades culturais ou esportivas organizadas, fora os clubes de futebol (ainda por cima, as duas equipes nacionais são presididas pelos filhos do coronel Kadhafi). Criar uma associação não-favorável aos princípios da revolução é, aliás, passível de… pena capital, segundo o artigo 207 do código penal.
Apesar disso, novos lugares de socialização aparecem, como cafés da moda e terraços de restaurantes nos bairros ricos de Trípoli, na cidade antiga ou na praça verde. O mais recente é Iwan, cafeteria melhorada, com decoração de design, grandes poltronas em couro vermelho e um extenso cardápio de bebidas (não alcoólicas, é claro). É possível ver, mais ou menos em qualquer lugar, jovens vestidos com roupas da moda, gel nos cabelos, celulares em punho.
Para Kadhafi, véu é «criação de Satã»…
“O que é totalmente novo de três anos para cá, é que podemos ver mulheres nas ruas depois do cair da noite. Elas fazem compras nas novas butiques abertas até a meia-noite, vão aos cafés”, se entusiasma um expatriado argelino.
Mas a sociedade conserva fortes tradições e normas sociais freqüentemente em desnível com relação ao discurso do coronel Kadhafi, digno às vezes de certas feministas ocidentais, uma vez que ele considera, por exemplo, o uso do véu como uma “criação de Satã”. Contando com um poderoso apoio tribal, o islã ocupa, por outro lado, um grande espaço na vida cotidiana das pessoas.
Latifa, 35 anos, que trabalha para uma companhia aérea, sonha em montar seu próprio negócio. Sua paixão: confecção de redes e decoração de interiores. Sua dificuldade: encontrar financiamento. Mas ela se recusa a recorrer aos bancos, porque “o islã proibe créditos remunerados”. Se ela concretizar seu projeto, deverá entrar sozinha na casa de pessoas desconhecidas, o que não é bem visto. “Mas como freqüentemente são as mulheres que ficam nas casas e são elas que decidem este tipo de coisa, abririam mais facilmente as portas pra mim.”, diz ela.
A separação de sexos é ainda fortemente marcada, sobretudo nas cidades pequenas. As escolas não são todas mistas, os casamentos são festejados em tendas separadas e as casas dispõem freqüentemente de duas peças comuns: uma para os homens e outra para as mulheres, onde cada um faz a siesta, almoça, recebe as visitas.
Farida, auxiliar contábil em uma companhia estrangeira, n’est pas voilée, coisa rara na Líbia, Afirma que “não é uma coisa boa”, que um dia ela terá coragem. O casamento sem dúvida será um impulso. Mas, assim como suas duas irmãs, ela já passou dos trinta e não tem pressa de encontrar um marido, habituada que está à sua independência. Muitas de suas amigas já se divorciaram e prosseguem suas vidas profissionais. “O problema depois de um divórcio é que é preciso encontrar uma nova casa. Não é bem visto morar sozinha e a alternativa é voltar para a casa dos pais. Mas em geral o espaço já foi ocupado por um irmão mais novo recém- casado, e a acolhida nem sempre é calorosa.”
As mulheres gozam de direitos importantes, comparados aos países da região, ainda que os tabus morais tornem a vida dura. Para algumas mulheres, preservar a boa reputação proíbe viajar sozinhas ou estudar longe de casa. Ocorrem agressões físicas, em casos de relação sexual fora do casamento. Quando as aparências não são resguardadas, abre-se caminho para a exclusão social. Elas são livres para escolher seus maridos e a regulamentação do divórcio lhes é favorável (podem pedir separação, receber pensão relevante, as que se separam não são repudiadas).
O trabalho feminino é fortemente encorajado pelos dirigentes e “há cerca de dez anos, as creches e jardins da infância se multiplicaram”, explica Rabia, professora de biologia no ensino médio. Mais numerosas nas universidades que os garotos, elas se tornam professoras, agentes administrativas, secretárias em sociedades estrangeiras, dentistas, médicas, engenheiras, arquitetas… Contudo, apesar dos grandes discursos e do nível de educação das mulheres, apenas 26% trabalham no setor formal, segundo o Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento (PNUD). A título de comparação, elas são 22,4% na Arábia Saudita, 30,7% no Líbano, 37,7% na Tunísia.
Os homens observam a evolução social de maneira pragmática. “A casa tem mais dinheiro e é possível conseguir mais crédito para construir. E o divórcio custa menos…” Afirma Abdallah, 46 anos, de origem tuaregue da região de Sebha. Ele já tem duas mulheres e… 18 filhos, que vivem numa casa em andares diferentes. Sua segunda esposa ? a primeira que foi de fato escolhida ? é técnica em informática. Como seu comércio de gado vai bem, ele pretende esposar uma terceira mulher.
Sim à poligamia. Não ao álcool
Apesar das restrições legais, a poligamia parece bem aceita nas cidades do sul. O argumento final é freqüentemente a relação demográfica, que seria de “um homem para cada 4 mulheres”. Levando-se em conta os hábitos de conduta dos jovens neste terreno, é fácil se deixar levar pela hipótese de uma hecatombe, mas o recente recenseamento da população é formal: a Líbia é um dos raros países do mundo onde as mulheres são menos numerosas que os homens.
O consumo de álcool é estritamente proibido e o turista deve se preparar para a seca durante toda a sua estadia ? a menos que se arrisque corajosamente a testar o “flash” local, uma aguardente caseira feita de tâmaras, que seja convidado à casa de um diplomata, único habilitado a estocar uma cota de garrafas, para inveja dos chefes de empresas internacionais. No sul, além das horas de maior calor (entre 14h e 17h), as lojas fecham nas horas de prece.
Tradicionais ou não, a chegada de novos produtos neste país que não fabrica praticamente nada, coloca fortemente em questão o poder de compra. A baixa das tarifas alfandegárias não foram totalmente repassadas para os preços, o que aumentou bastante as margens dos importadores. Os produtos baratos chineses, que inundam o mercado oferecem, uma solução, mas os salários do setor público, congelados há mais de vinte anos, continuam insuficientes. A diferença dos ganhos entre o privado e o público não pára de crescer. Abdelkader, 29 anos, fabrica janelas e portas em sua empresa privada: “Em período integral de trabalho, posso ganhar 1000 dinares (R$ 1500) em duas semanas”.
Para compensar, os empregados do setor público, 900 mil (incluindo professores, funcionários, pessoal da área da saúde, etc) em 1,7 milhões de ativos, multiplicam seu trabalho. “Os chefes de serviço nos hospitais vão todos às suas clínicas particulares durante a tarde”, conta um bem-informado. “Eles dão cursos na faculdade e importam medicamentos.” Alguns abrem butiques, que pela manhã são gerenciadas pelos membros da família ou por empregados africanos. É freqüente se abordado em francês nas zonas de fonteira do sul por nigerianos ou mauritaneses.
Mas os grupos de africanos, antigamente numerosíssimos ao longo das estradas à espera de um patrão, dissolveram-se depois dos massacres racistas de 2000 [3] e as expulsões. Todos são obrigados a ter documentos, a cooperação com a União Européia exige. “Nossa empregada somali desapareceu por três meses”, conta Mohamed, engenheiro de informática no Reino Unido, cuja família vive em Trípoli. “Interrogada por policiais ao descer de um ônibus, ela não pôde apresentar os papéis e foi levada imediatamente para um campo”.
Água, luz, remédios e ensino grátis
No entanto, ao lado dos pequenos salários, o sistema de redistribuição se mantém. O antigo primeiro ministro liberal, Choukri Ghanem, tornou-se bastante impopular tentando suprimir os subsídios a certos produtos (o concentrado de tomates, por exemplo), antes de recuar. Os alimentos básicos, como o pão, o açúcar ou o azeite são ainda subsidiados. O acesso à àgua é geral até o sul e não custa quase nada. A cobertura elétrica é de quase 100% e tem tarifas baixas (freqüentemente não há nem o contador e mesmo quando há, evita-se quase sempre pagar a companhia pública, pois os riscos de perseguição são poucos).
Apenas a gasolina aumentou em 30%, e mesmo assim um tanque cheio não custa mais do que 7 dinares (R$ 10,50) Os líbios podem ainda se medicar e ir à escola gratuitamente, mesmo se a qualidade dos serviços normalmente leva a privilegiar o emergente setor privado. Enfim, um seguro-desemprego foi implantado.
Resultado: a Líbia figura em 58o lugar no ranking mundial da classificação do PNUD nos termos dos indicadores de desenvolvimento humano, e em 1o no ranking africano. A taxa de escolarização é de quase 100% e a expectativa de vida é de 73,6 anos.
Neste país, que é o mais extenso da África e conta com apenas 5,6 milhões de habitantes, as infraestruturas, envelhecidas, se concentram no litoral. A rede rodoviária cobre um vasto território, mas sua qualidade se degrada sob o efeito do clima e do múmero crescente de caminhões com provisões para o sul. Os motoristas freqüentemente disputam o mesmo lado da via, para desviar no último momento, com chegada de um veículo… Cidades do sul como Sebha ou Ghat não têm transporte público nem rede de táxi. E nas cidades, é melhor ter um bom par de sapatos para percorrer as ruas acidentadas e evitar os detritos ? o saneamento anda num estado deplorável.
Um descontentamento geral paira no ar, mas as pessoas ainda se queixam com os olhos na calçada da frente. “A democracia é o controle do povo pelo povo, como no Livro Verde”, clama, por exemplo, Ibrahim, guia turístico e professor de árabe. Seu ardor jamahiriense é compreensível. Há 3 anos, em lugar de sua atividade de professor de História, pela qual continua recebendo salário, ele é um dos cinco sub-responsáveis pela segurança na região sul. “Todo mundo me conhece, eu sou a interface entre o povo e o Estado. Nosso país parece um corpo humano, cujos elementos devem ser solidários, se não é o caos! Há os braços e as pernas: são os policiais; há o cérebro; há os olhos, que são o conjunto dos cidadãos. Quando há um problema de vizinhança ou de um marido que bate na esposa, por exemplo, as pessoas me telefonam, eu informo as autoridades e convocamos os responsáveis. Todo mundo é solidário: esta é a democracia!”
No leste, tímida oposição islâmica
Os policiais que cruzamos em sua presença o saúdam calorosamente. “Eles sabem que eu tenho autoridade sobre eles”, diz orgulhosamente Ibrahim. Sua carta de agente da segurança lhe abre todas as portas e quando suas “informações” (na verdade delações) são boas, a recompensa é generosa (carro subvencionado, empréstimo imobiliário, autorizações). “Mas quando minha escola precisa de mim, eu devo estar pronto”. Um verdadeiro sacerdote. “E eu sou o amigo de Ibrahim!”, brinca seu colega, que o acompanha em todas as saídas turísticas.
Em compensação, em Benghazi, antiga capital no leste do país, a atmosfera é diferente: a crítica é mais audaciosa, como durante as manifestações de fevereiro último, contra as caricatuas do profeta Maomé, que finalmente se voltaram contra o regime (e os coquetéis molotov contra o consulado da Itália). A cidade vive, na verdade, frustrada diante do desenvolvomento de Trípoli. Bastião da confraria Senussi (antigo pilar da monarquia), ela é base de uma oposição islâmica severamente reprimida. O apoio tribal é latente. “Poucos juízes gostariam de dar as costas a uma tribo influente metendo-se em uma vendeta ou em um crime de honra”, explica Hassan, 20 anos, de Benghazi.
Mas a contestação popular não ultrapassa a expressão de um desgosto generalizado, que se traduz pela deserção aos Congressos Populares de Base [4], que são pilares do sistema jamahiriano. Agora que os cofres do Estado engordam, com as receitas recordes