A ligação destruidora do Rio Doce com o oceano após o desastre de Mariana
O Rio Doce caracterizava-se por chegar à costa com baixa turbidez e baixa variabilidade química. Primeiro mudou-se isso com a poluição oriunda da mineração, depois se consumindo quase toda a água do rio. Agora, a água foi trocada por rejeito de mineração. O ambiente marinho da região não está preparado para issoEmiliano Castro de Oliveira
Com uma bacia hidrográfica que abrange 83,5 mil km2, percorrendo os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, o Rio Doce abastece uma população de 3,5 milhões de habitantes em mais de 230 municípios.1 Apesar do alto número populacional, o principal uso das águas do Rio Doce é na agricultura, mineração e indústria. A origem do rio associa-se, nos dias de hoje, ao Quadrilátero Ferrífero, principal região mineradora do país, em um estado que é responsável por 53% da produção nacional de minerais metálicos e por 29% da produção de minérios em geral.2
Com níveis pluviométricos dentro da média da região Sudeste (1.150 mm/ano), a estiagem prolongada e intensa de 2015 colaborou para a queda expressiva dos níveis do rio em todo o seu curso.3 A situação do volume de água do Rio Doce é tão crítica que ele não tem mais vazão para desaguar no mar,4 morrendo antes de um banco de areia. Em comparação direta, a situação volumétrica do Rio Doce é mais grave que a do Paraíba do Sul,5 onde o uso excessivo ainda se encontra na fase de conversão do sistema deltaico em sistema estuarino, permitindo a entrada de água marinha em ambientes que eram exclusivamente fluviais.
O processo de declínio hidrológico do Rio Doce é inversamente proporcional ao avanço da mineração nas áreas de suas nascentes. No terceiro trimestre de 2015, quando Vale e suas subsidiárias, entre elas a Samarco, batem recorde de produção de minério de ferro,6 o Rio Doce apresenta seu momento de menor volume, com apenas 3 centímetros em Colatina (ES).7 Coincidentemente, segundo o relatório ambiental de 2014,8 a mineradora Samarco utilizou 29 milhões de metros cúbicos de água apenas na mina de Germano, um aumento de 74% em relação a 2013. O uso da água não incluiu apenas o rio, e houve recuperação por meio da barragem de Santarém, mas, de qualquer forma, esse volume de água foi retirado do sistema natural da bacia hidrográfica do Rio Doce.
A contaminação química da bacia do Rio Doce também não é um resultado do desastre ocorrido em Mariana (MG) no último novembro. A contaminação, por infiltração, dos elementos químicos presentes no rejeito de mineração acumulado nas barragens e no rejeito descartado indiscriminadamente desde muito tempo vem tornando as águas da região progressivamente contaminadas, inclusive por contaminantes altamente tóxicos, como o arsênio.9 Salvo o controle associado diretamente às áreas de mineração, não é norma a análise de compostos químicos nas águas de uma bacia hidrográfica como um todo. Não é de hoje que existe “toda a tabela periódica no Rio Doce”.10
A água que conseguia chegar ao mar do Espírito Santo já trazia contaminantes, mas em baixa concentração, e estes, aliados à queda no volume de água doce que desemboca no Oceano Atlântico, provavelmente já vêm modificando o ambiente marinho na região da foz. A costa do Espírito Santo apresentava um mar cristalino, com pouco sedimento em suspensão (baixa turbidez), o que fazia os sistemas biológicos ali instalados serem totalmente dependentes da presença de luz, em diversas profundidades, para a realização de fotossíntese.
O rompimento da barragem do Fundão e os danos sofridos na barragem de Santarém, no município de Mariana, liberaram entre 30 milhões e 50 milhões de metros cúbicos11 de rejeito de mineração, principalmente de minério de ferro e manganês. A destruição matou pelo menos dezenove pessoas e desabrigou diretamente mais de seiscentas, além de provocar um evento de extinção nos ecossistemas associados ao rio. Indiretamente, mais de 500 mil pessoas ficaram sem água por mais de uma semana, e a qualidade da água oferecida após esse período é duvidosa.12 O fluxo de rejeito atingiu a calha do Rio Doce, tomando seu lugar e deixando para trás grandes quantidades de rejeito, que não pode ser carregadas pela força do fluxo. Após dezesseis dias, esse fluxo de rejeito chegou ao Atlântico, na foz em Linhares (ES). A partir desse momento, o desastre de Mariana deixava de ser o responsável somente pela morte do Rio Doce, mas também pela modificação drástica de uma grande parte do litoral dos estados do Espírito Santo, Bahia e Rio de Janeiro.
Após percorrer 663 km no Rio Doce e seus afluentes,13 o fluxo de rejeitos e água chegou ao mar ainda com alta concentração, uma vez que o rio não tinha volume de água para promover sua dissolução. Esse fluxo de rejeitos apresenta característica de densidade variada, ocorrendo próximo à superfície, no intermédio e no fundo com propriedades diferentes, mas em todos os casos misturando-se à água. Como o fluxo se dispersa em diversas camadas, a alta expansão14 no mar do Espírito Santo está acontecendo livremente, de acordo com a carga de rejeitos que ainda chega pelo rio e com a circulação marinha local.
A tentativa de contenção de parte do fluxo com barreiras flutuantes,15 próprias para derramamentos de óleo, foi o sinal claro do despreparo das autoridades para lidar com a situação. A reabertura da foz do rio, fechada pelo baixo nível de água, para liberar o rejeito foi o endosso da ampliação da destruição do Rio Doce para o mar. Por que não houve o confinamento do fluxo de rejeitos nas inúmeras barragens presentes no curso do rio? O governo estava disposto a utilizar as barragens de geração de energia e abastecimento presentes ao longo do Rio Doce para conter o rejeito, reduzindo a área afetada pelo desastre? Era preciso também iniciar a destruição do ambiente marinho?
Aparentemente, o que se veicula na mídia é a preocupação com o aspecto visual da presença do rejeito no rio e no mar. Claramente essa marca visual atesta a mais alta concentração possível, mas mesmo em concentrações invisíveis a presença dos compostos químicos existentes no rejeito irá continuar a matar. O ambiente marinho associado à foz do Rio Doce modificou-se lentamente, durante milhares de anos, para acompanhar as mudanças graduais que a química e a turbidez do rio já apresentava. Durante toda essa relação entre rio e mar, os nutrientes transportados pelo rio moldaram os sistemas biológicos associados à área da foz, permitindo o desenvolvimento de sistemas adaptados às baixas turbidez e variabilidade química. Em maior escala, a influência do Rio Doce no oceano era baixa, pois não era um rio com alto volume de sedimentos em suspensão e altas concentrações químicas. Dessa forma, as correntes oceânicas rapidamente conseguiam homogeneizar a água do rio com a do oceano, garantindo a estabilidade média dos sistemas biológicos de uma grande área da costa, desde o sul da Bahia até o norte do Rio de Janeiro.16
A situação que se instalou a partir do dia 21 de novembro de 2015 foi uma catástrofe também para o mar. Toda a situação de estabilidade relacionada à baixa turbidez e quantidade de compostos químicos foi multiplicada exponencialmente. O primeiro impacto foi o da chegada do rejeito, altamente concentrado em termos sedimentares e químicos, que matou praticamente tudo que se relacionava com a água. Em um segundo momento, há a dispersão da massa de rejeito mais fino, em suspensão, que se espalha rapidamente, e em um terceiro momento, a dispersão química dos compostos altamente concentrados no rejeito. Essa última fase perdurará por muito tempo e terá abrangência de milhares de quilômetros quadrados, uma vez que a circulação oceânica na região apresenta dispersão para norte e para sul. Muitas alterações, maléficas, vão acontecer nos sistemas biológicos das regiões afetadas, uma vez que estes se desenvolveram sem a presença de tais contaminantes. Cálculos17 feitos com base nas quantidades declaradas de rejeito que estão alcançando o mar indicam que mais de 200 mil km2 de áreas marinhas serão afetados. O rejeito continuará a ser lançado no mar sempre que houver uma chuva forte e remobilizará o que estiver acumulado fora do curso do rio, por mais de cem anos. Sem querer diminuir o desastre no curso do rio, mas o estrago no ambiente marinho será bem maior.
O que esperar dos órgãos de fiscalização com relação a punições e recuperação? Muito pouco. Vive-se um ciclo político em que o texto do novo Código de Mineração, que contempla as medidas preventivas e as punições para acidentes, é escrito e editado por advogados de grandes mineradoras.18 As medidas tomadas após o desastre mostraram despreparo e desprezo pelo meio ambiente, esperando que este se recupere sozinho. A classe política, reflexo direto da sociedade, ainda não compreendeu a necessidade de proteger o meio ambiente. A lógica neoliberal teima em colocar preço em tudo. Nenhuma multa pagará o que houve. A natureza não aceita dinheiro, cheque nem cartão de débito ou crédito.
*Emiliano Castro de Oliveira é professor doutor do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo e membro da Rede Braspor de pesquisas em ambientes costeiros.