A língua "dolarizada"
Aquilo que em qualquer outro país, não passaria de servilismo lingüístico voluntário, ganha imediatamente, na França, a dimensão de um casus belli. Defender o direito de se exprimir na sua própria língua equivale a um ato de agressão contra os Estados UnidosBernard Cassen
A coisa não demorou muito: nem bem o ex-fuzileiro naval norte-americano Guy Wyser-Pratte e o fundo de pensão NR Atticus — com endereço, é claro, num paraíso fiscal, as Ilhas Virgens britânicas — acabavam de ser bem-sucedidos em seu assalto-relâmpago sobre o grupo francês André (calçados e vestuário: 14 mil assalariados, 2.358 lojas), e já “desembarcavam”, como dirigentes da empresa, e tomavam uma primeira decisão altamente simbólica: as reuniões do conselho de administração, em Paris, se realizariam de agora em diante unicamente em língua inglesa. O novo patrão, Nathaniel Rothschild (28 anos), colocava em prática as regras da corporate governance, conceito anglo-saxão que define a ditadura do acionista e que, em inglês, tem um significado muito distinto da sua tradução francesa, aliás pouco empregada: o “governo da empresa”. Pode-se alegar que Rothschild é de nacionalidade britânica, o que nem é o caso de Serge Tchuruk, diretor-presidente da Alcatel — que exigiu que o inglês fosse a língua de trabalho em toda sua empresa e não permite sair de seu escritório nenhuma anotação em francês — nem de Louis Schweitzer, diretor-presidente da Renault — que impôs o uso do inglês nos relatórios das comissões de direção de uma empresa que já foi a “vitrine” social da França.
A dominação do anglo-americano
Ao cabo de uma competição acirrada, Schweitzer ganhou, no dia 14 de outubro último, a versão 1999 do prêmio “Carpette anglaise”, atribuído por quatro associações, [1]cujo objetivo é homenagear, a cada ano, um membro das elites francesas por “sua tenacidade em promover a dominação do idioma anglo-americano”. O ex-chefe de gabinete de Laurent Fabius teve uma parada dura pela frente: além do já citado Tchuruk, teve que enfrentar respectivamente Claude Allègre (“Os franceses devem parar de considerar o inglês uma língua estrangeira”, La Rochelle, em 30 de agosto de 1997) e Bernard Kouchner, representante especial do secretário-geral da ONU no Kosovo, que fala apenas inglês, mesmo com seus interlocutores francófonos, apesar do francês ser uma das línguas oficiais daquela organização. E ainda Pascal Lamy — da Comissário Européia, e portanto um baluarte institucional da pluralidade lingüística no continente —, que não pôde competir já que o seu discurso de Seattle, em inglês, perante a Organização Mundial do Comércio (OMC) — onde o francês também é uma das línguas oficiais — já fora lido… O dito Pascal Lamy declarou certa vez que o seu país preferido (além do seu, supõe-se) era os Estados Unidos, o que é política e liberalmente correto, fora de qualquer dúvida, mas não muito diplomático para um “europeu” que somente ficou meio enrascado ao escolher entre os parceiros: teria ele esquecido que em Londres também se fala inglês?
Servilismo lingüístico
A esta altura, o observador — ainda que especialista na língua inglesa — tem que fazer uma pausa. Não estaríamos já off limits (extrapolando)? Quem acredita ver — ou quer ver — a influência dos Estados Unidos por trás da língua inglesa, corre o risco de cometer a pior das blasfêmias: ceder ao anti-americanismo (leia o artigo de Serge Halimi nesta edição). Na “bolha mediática que é hoje Paris não se brinca com essas coisas. Aquilo que, em qualquer outro país, não passaria de mera constatação — resignada ou não — de servilismo lingüístico voluntário (e ainda considerando os interesses que esse servilismo legitima), ganha imediatamente, na França, a dimensão de um casus belli. Defender o direito de se exprimir, de trabalhar e de receber informação na sua própria língua — o francês, na França, o alemão, na Alemanha etc. — equivale a um ato de agressão contra os Estados Unidos.
É prudente, portanto, pedir ajuda a autores estrangeiros. Por exemplo, ao jornalista e escritor Luís Fernando Veríssimo, um dos “grandes nomes” do Brasil, país de idioma português, como ninguém ignora. Aqui estão alguns extratos de sua primeira crônica, intitulada “In English”, no jornal O Globo, do Rio de Janeiro: “I am writing this in English to set an example. I think the Brazilian press has the patriotic duty to start publishing news and opinion in English so the people at IMF can know what is going on a daily basis without having to wait for reports and resumes. With the troublesome Portuguese out of the way, they can assess our situation directly by reading our newspapers and make the necessary decisions more quickly. I plan to write in English from now on, reverting to Portuguese only in the case of untranslatable words like “marketing”, “currency board” etc., and hope that the responsible press will follow my lead”. Numa nota de rodapé, o cronista acaba acrescentando um resumo do texto em português “para os que ainda utilizam esta língua obsoleta”. [2] Essa brincadeira, que divertiu quem tivesse sentido de humor, ressaltava que as verdadeiras decisões não se tomavam em Brasília, mas em Washington, e que o país também era vítima de uma “dolarização” lingüística.
O fascínio pela potência
O que Luís Fernando Veríssimo sugeriu simbolicamente, muita gente, como mostramos acima, já colocou em prática — na França, como em outros países — e deve haver uma fila sonhando em fazê-lo. Para toda essa gente, a iniciativa do autor brasileiro, debochando de coisas sérias, parecerá completamente incongruente: “We are not amused”, como teria dito a raínha Vitória. Ora nem a França nem a Europa são dependentes dos Estados Unidos como o é o Brasil. Até nos dizem constantemente que o euro pode manter a cabeça erguida diante do dólar, que os Quinze (Comunidade Européia) são a principal potência comercial do mundo etc. De onde surge, então, essa estranha atração pelo mimetismo lingüístico, esse fascínio pela potência que chega a ultrapassar a reivindicação norte-americana? Talvez pudéssemos ver nisso a manifestação de uma vontade frustrada de ser o que jamais poderemos ser, a menos que mudemos de passaporte: um cidadão norte-americano, que, somente e apenas ele, pode legitimamente saudar a bandeira estrelada, mão no peito, enquanto os outros têm que se contentar em ostentá-la nas suas roupas. Até cair o muro de Berlim, essa aspiração concretizou-se no atlantismo. Daí em diante, foi substituída pelo culto à globalização.
Do outro lado do Atlântico, já foi compreendido há muito tempo que a solidariedade anglófona é um cimento bastante forte. Não é um acaso, por exemplo, que a rede de espionagem Echelon, da National Security Agency — que emprega várias dezenas de milhares de pessoas e possui uma parafernália de instrumentos eletrônicos e satélites de ponta — tenha como únicos parceiros completos países de língua inglesa (Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Grã-Bretanha), para os quais os Estados Unidos são uma segunda pátria e, portanto, considerados cem por cento confiáveis. Pertencer a esse círculo mágico, que manifesta sua coesão em inúmeras áreas, está fora de questão para os não-anglo-saxões, ajoelhem-se eles como se ajoelharem. Adotar a língua do senhor torna-se algo como um second best, uma solução de segunda classe, à falta de coisa melhor.
Os “elementos subversivos” da cultura
O mestre, no caso, teoriza de acordo com suas conveniências. David Rothkopf, por exemplo, então diretor-geral do escritório de advocacia Kissinger Associates, após ter servido no primeiro governo Clinton, manifestou-se sobre o assunto com uma franqueza inesperada na revista Foreign Policy. Para ele, a extinção das diferenças culturais é um fator de progresso da civilização. Distingue aquilo que chama de “elementos subversivos” da cultura —religiões, línguas, crenças políticas e ideológicas —, daquilo que convém promover: a alimentação (será que dá para incluir aí as porcarias que engolimos?), férias, rituais e música. Nessa perspectiva, o inglês tem um lugar ímpar: o de língua única da comunicação no planeta. Também convém atentar para o fato de que “se o mundo se dirige para uma língua comum, que esta seja o inglês”. [3]
É fácil constatar que David Rothkopf foi ouvido bem além de suas expectativas na França, e às vezes mesmo antes de se ter expressado… Como seria indelicado reivindicar diretamente a adoção da língua da América, é preferível fazer, como em outros casos, um atalho pela Europa. Há doze anos, Alain Minc já via profeticamente no inglês a “língua natural” da Europa. [4]Mais recentemente, Alexandre Adler confirmava: “O inglês, falado pelos europeus, se tornará uma única língua de comunicação, ao lado da qual as línguas nacionais ainda terão uma certa utilidade”. 5 Seria talvez, sem dúvida, uma “única” língua de comunicação como era o russo para os países do leste europeu na época do pacto de Varsóvia? Em todo o caso, não será Romano Prodi quem criará obstáculos: o presidente da Comissão Européia, embora tendo uma língua materna latina, é na verdade um anglomaníaco inveterado. Já se disse que o atlantismo chegou a fazer, tempos atrás, o papel de um patriotismo substitutivo para os norte-americanos sem documentos legais. Esse é hoje o papel assumido pela globalização. E com relação a isso, a coisa é muito clara: “Globalization is us! “, proclamou, inapelavelmente, um renomado editorialista norte-americano. [5]E será que é preciso traduzir o que todo mundo já sabia? Numa globalização “feliz”, o sucesso está na língua da metrópole, vitoriosa sem combate numa “guerra de veludo”, da qual um universitário especialista em informática — e portanto não suspeito de ser “arcaico” — deixa claro o que se espera do vencido: “Poder lhe vender qualquer coisa, poder fazer com que aceite facilmente qualquer decisão política, transformá-lo num aliado dócil e submisso”. [6] Ou seja: sejam eles quem forem — magnatas da indústria, dirigentes políticos nacionais ou internacionais, escritores de renome — todos deverão se conformar com o papel de “idiotas úteis” num elenco que foi escolhido por outros…
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Bernard Cassen é jornalista, ex-diretor geral de Le Monde Diplomatique e presidente de honra da Atacc França.