A luta contra a discriminação racial na África do Sul e no Brasil
Apesar do Brasil ser um país laico e de nossa Constituição garantir a liberdade de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção desses locais, o país registra cerca de três denúncias de intolerância religiosa por dia, frequentemente associadas ao racismo religioso contra as religiões de matriz africana
No dia 21 de março, o mundo celebrou o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, uma data de grande relevância, instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU), em memória à tragédia conhecida como o “Massacre de Sharpeville”, ocorrido em 1960, na cidade de Joanesburgo, na África do Sul. No contexto brasileiro, essa data, que já possuía considerável importância, adquiriu novos contornos em 2023, quando foi oficialmente reconhecida como o Dia Nacional das Tradições de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, por meio da Lei nº 14.519/23, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Assim, tanto na África do Sul, quanto no Brasil bem como em diversos países, essa data consolidou-se como um momento essencial para visibilizar à luta contra o preconceito, a intolerância e as diversas manifestações de discriminação racial.
O Apartheid e a luta antirracista na África do Sul
Em 21 de março de 1960, no bairro negro de Sharperville, localizado em Joanesburgo, ao sul da província de Gauteng (África do Sul), um grupo de 20 mil sul-africanos protestavam pacificamente contra a Lei de Passe (1945), que obrigava a população negra a carregar um documento que especificava onde poderiam circular, além de revelar informações sobre etnia e profissão, servindo assim como um mecanismo de controle imposto pelo regime de segregação racial que tinha abrangência e impacto nas esferas social, econômica e política da nação sul-africana. Esse documento precisava ser entregue sempre que solicitado por policiais e autoridades, sob risco de detenção caso não fosse apresentado.
Mesmo sendo considerada uma manifestação pacífica, as tropas do exército em regime de Apartheid abriram fogo contra uma multidão de ativistas desarmados, resultando na morte de 69 pessoas e mais 186 feridos.
Após o massacre, uma onda de diversos protestos se espalhou pelo país e teve grande repercussão na imprensa internacional. Três anos depois, no dia 26 de outubro de 1966, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Resolução 2142 (XXI), estabelecendo a data de 21 de março como o Dia Internacional contra a Discriminação Racial, em memória das vítimas dessa barbárie.
É importante destacar que, mesmo após esse trágico episódio, a política do Apartheid continuou em vigor por várias décadas, gerando inúmeras cenas de violência e terror que horrorizaram o mundo, tal como na repressão policial durante o Levante de Soweto ocorrido também em Johanesburgo, no dia 16 de junho de 1976, dezesseis anos após o massacre de Sharpeville.
O fim do regime de segregação racial, só aconteceu posteriormente em meados dos anos 90, em virtude dos movimentos de lutas e protestos protagonizados por Mandela, Walter Sisulo, Oliver Tambo, Steve Biko, Desmond Tutu e tantos outros que se somaram na luta antirracista. A comunidade internacional também exerceu papel decisivo, tendo em vista que o regime de Apartheid era considerado por muitos países, como sendo perverso, injusto e moralmente indefensável.
O Dia Internacional para a Eliminação da Discriminação Racial é um marco global reconhecido por vários Estados nacionais. Diversas organizações que militam em defesa dos Direitos Humanos se utilizam desse marcador para promover no mês de março eventos políticos, debates e campanhas educativas voltadas para a luta contra o racismo e a discriminação racial. Atualmente o dia 21 de março é um feriado importante na África do Sul, sendo considerado o Dia dos Direitos Humanos.
A África do Sul é o maior país da União Aduaneira da África Austral (UAAA) e, ainda hoje, figura entre os países com maior concentração de riqueza e desigualdade do planeta. A desigualdade racial é um dos principais fatores que sustentam essa realidade. De acordo com o relatório “Desigualdades na África Austral” publicado pelo Banco Mundial em março de 2022, aproximadamente 10% da população concentra mais de 80% da riqueza. A posse de terras, indústrias, bancos e o comércio de grande porte seguem sendo controlados, em sua maioria, por uma elite branca que governou o país por mais de três séculos. Ao mesmo tempo, uma parte significativa da população, majoritariamente composta por negros, ainda carece de acesso a serviços básicos como água potável, saneamento e eletricidade, vivendo segregada nas periferias das grandes cidades ou no campo, em condições de vida muito precárias e bem abaixo da linha da pobreza.
Racismo e desigualdade no contexto brasileiro:
O racismo é considerado crime inafiançável e imprescritível no Brasil, conforme estabelecido pela Lei nº 7.716/1989 – conhecida como Lei Caó, em homenagem ao deputado Carlos Alberto Oliveira (Caó), responsável pela sua elaboração. Em janeiro de 2023, foi sancionada a Lei nº 14.532, que equipara a prática de injúria racial ao crime de racismo. Com isso, a injúria racial passou a ser punida com penas mais severas, e indivíduos responsabilizados por discriminação com base em cor, raça ou etnia podem ser submetidos a punições mais rigorosas, sem qualquer limitação temporal para a aplicação dessas sanções.
O racismo contra a população negra no território brasileiro, tem sua gênese no século XVI, a partir do brutal processo de colonização que resultou no sequestro de africanos e no saque das riquezas e recursos naturais de suas terras. A escravidão mercantil é reconhecida como um dos maiores crimes contra a humanidade, tendo deixado um impacto profundo e duradouro na estrutura socioespacial dos países colonizados. O Brasil foi o maior receptor de africanos escravizados no continente, tendo recebido cerca de 4 milhões de homens, mulheres e crianças, durante quase 350 anos.
Estima-se que cerca de 40% de todos os africanos trazidos para as Américas durante o período do tráfico negreiro tenham sido destinados ao Brasil. Como resultado, atualmente temos uma das maiores populações negras do mundo, tanto em termos absolutos quanto relativos. De acordo com o Censo Demográfico de 2022 cerca de 55,5% da população brasileira se identifica como preta ou parda.
O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, e não houve esforço por parte do Estado no sentido de integrar a população negra liberta, nenhuma providência econômica para garantir sua subsistência, seja com moradia ou acesso à educação e ao trabalho. Pelo contrário, instituiu-se uma política de incentivo à imigração em massa de europeus com o intuito de “embranquecer” a população brasileira, e estes passaram a ocupar os postos de trabalho assalariado, em que os negros eram preteridos. Sem acesso à terra, os negros foram obrigados a se amontoarem nas periferias das grandes cidades, e a eles eram destinados os trabalhos mais subalternos e de baixa remuneração.
Após 137 anos da abolição da escravatura, a população negra brasileira continua a apresentar os piores indicadores sociais. O racismo no Brasil se manifesta com profundas desigualdades raciais, com brancos e negros ocupando espaços distintos na estrutura social. Esse fenômeno é amplamente documentado em diversos estudos e relatórios técnicos sobre as desigualdades existentes no país.
Um dos problemas sociais mais graves e urgentes é o genocídio da juventude negra, amplamente denunciado por diversos intelectuais e setores do movimento negro organizado. O elevado índice de mortes entre os jovens negros, é uma hecatombe de proporções dramáticas. De acordo com o Atlas da Violência de 2023, publicado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo FBSP (Fórum Brasileiro de Segurança Pública), negros representam 75,8% das vítimas de homicídios no Brasil. Esse número se torna ainda mais alarmante quando analisamos a população masculina e jovem (entre 15 e 29 anos), onde o percentual ultrapassa 80%. Essas mortes são frequentemente classificadas como “juvenicídio”, um termo que descreve o assassinato sistemático de jovens, muitas vezes sem que haja justiça ou consequências pelos crimes.
Outras expressões do racismo antinegro, ou dessa Maafa[1] brasileira são bem mais silenciosos e frequentemente invisíveis, tal como o processo de encarceramento em massa. A população negra é super-representada no sistema prisional o que evidencia um quadro de discriminação racial tanto no processo de investigação e julgamento quanto nas condições de encarceramento. Segundo dados do Infopen (sistema de informações estatísticas do sistema penitenciário) o Brasil possui uma das maiores populações carcerárias do mundo, com mais de 800 mil pessoas privadas de liberdade, 70% desse total é formada por negros. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os negros são 2,5 vezes mais propensos a serem encarcerados do que os brancos. Os homens negros também são os mais afetados pela violência dentro do sistema penitenciário, com altos índices de homicídios e agressões nas prisões.
A população negra também ostenta os piores indicadores em relação a renda. Pretos e pardos tem uma renda média mensal significativamente menor do que a população branca. Em 2022, de acordo com dados da PNAD Contínua (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua) do IBGE, a renda média dos negros brasileiros foi de R$ 1.500,00, enquanto a dos brancos foi de R$ 3.400,00. Ou seja, a renda média dos negros é aproximadamente 55% menor do que a dos brancos.
No ambito educacional, os negros também estão em ampla desvantagem. Ainda segundo os dados da PNAD aproximadamente 52,4% da população negra com 25 anos ou mais não concluíu o Ensino Médio, enquanto entre os brancos essa taxa é de 30,6%. A taxa de analfabetismo entre os negros nesse mesmo período era de 9,3%, enquanto a taxa entre os brancos era de 4,6%. A taxa de evasão escolar também é signifcativamente mais alta entre os estudantes negros 17,6%, enquanto entre os brancos é de 12,1%. No Ensino Superior, embora o número de estudantes negros tenha ampliado significativamente nos últimos anos, em virtude do sucesso das Ações Afirmativas e da Política de Cotas Raciais, eles ainda estão sub-representados, apenas 31% dos ingressantes nas universidades são negros, enquanto a população branca representa 56%, o que revela a grande disparidade na conclusão dos estudos entre negros e brancos, com a população negra tendo menos acesso ao ensino de qualidade e menos oportunidades de avanço na educação.
Os dados apresentados são expressões contundentes do racismo antinegro e servem como uma contestação à falácia de que o Brasil seria um “paraíso das relações raciais” ou uma suposta “democracia racial”, especialmente quando comparado ao racismo do tipo apartheid, como o praticado na África do Sul. Vale ressaltar que, embora nunca tenha se consolidado no país um regime de segregação racial formal e legal, as múltiplas distinções e desigualdades entre negros e brancos são reveladoras do processo de inserção precária da população negra na sociedade brasileira.

Dia Nacional das Tradições de Raiz de Matriz Africana
A Lei federal 14.519/23, que institui o dia 21 de março como Dia Nacional das Tradições das Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva representa um grande avanço, e tem uma importância simbólica bastante expressiva, considerando que ela coloca em evidência a vasta pluralidade das tradições religiosas e espirituais de origem afro-brasileiras. A lei serve como uma espécie reconhecimento público e legitimidade política para as religiões que historicamente são alvo de “racismo religioso” no Brasil.
Esse epíteto, “Racismo Religioso” é comumente utilizado por ativistas do movimento negro e por muitos pesquisadores para caracterizar e definir as práticas discriminatórias com as religiões de matriz afro-brasileira, dado que elas são as mais atacadas em virtude do racismo sistêmico que caracteriza a nossa realidade nacional. O racismo religioso não incide somente sobre a população negra praticantes das religiões de matriz africana, mas também sobre as práticas de fé e sobre os seus rituais religiosos. Segundo o Babalorixá Sidnei Nogueira “o racismo religioso condena a origem, a existência, e a relação entre uma crença religiosa e uma origem preta… Ele desemprega, divide famílias, coloca filhos para fora de casa, violenta, segrega, fomenta o ódio e até mata”. É um tipo de violência que comumente se manifesta por meio de preconceito, intolerância, e estigmatização contra as pessoas que professam as religiões de Tradição de Matriz Africana.
Em 2022, a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO), em parceria com o grupo Ilê Omolu Oxum, realizou um mapeamento sobre o racismo religioso no Brasil. A pesquisa contou com entrevistas de 255 lideranças religiosas de todo o território nacional, e tinha como objetivo identificar a violência contra as comunidades tradicionais de terreiro. A partir de um formulário direcionado às lideranças, o estudo reuniu informações sobre as experiências de racismo religioso enfrentadas por essas comunidades. O relatório, intitulado “Respeite o Meu Terreiro”, revelou um dado preocupante, 91,76% dos entrevistados revelaram que recebem regularmente relatos de seus filhos e filhas de santos sobre algum tipo de racismo religioso.
De acordo com o relatório, apesar do Brasil ser um país laico e de nossa Constituição garantir a liberdade de crença, o livre exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto, o país registra cerca de três denúncias de intolerância religiosa por dia, frequentemente associadas ao racismo religioso contra as religiões de matriz africana. Nesse contexto, a criação da Lei 14.519/23 e a designação do 21 de março como o Dia Nacional das Tradições de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé representam uma medida antirracista de grande importância. Essa iniciativa valoriza as tradições religiosas afro-brasileiras, colocando-as em pé de igualdade com as demais religiões praticadas no país, reforçando o compromisso com a equidade e o respeito à diversidade religiosa.
Jonathan da Silva Marcelino é graduado em Geografia pela UFF. Mestre e Doutor em Geografia Humana pela USP. Professor Adjunto da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), com atuação no Instituto Latino-Americano de Tecnologia, Infraestrutura e Território (ILATIT).
[1] Maafa é uma expressão de origem swahili que significa “grande tragédia” e foi adotada pela antropóloga norte-americana Marimba Ani para descrever os processos históricos de escravização, colonização, encarceramento e genocídio do povo negro, tanto no continente africano, quanto nos EUA, no Brasil e em tantos outros contextos afrodiaspóricos ao redor do mundo.