A luta contra o alcoolismo
De cinco a seis milhões de pessoas têm problemas relacionados com o álcool, na França. De dois a três milhões, são dependentes. A luta contra problemas relacionados ao álcool custa, à sociedade francesa, cerca de 2,5 bilhões de reais por anoPatrick Fouilland
“O abuso do álcool é perigoso para a saúde”. Todo mundo sabe… e ninguém acredita. Repetido à vontade em cada garrafa, este slogan ainda tem sentido? O abuso é sempre para os outros, alguns outros: os alcoolistas. [1]
E no entanto… registram-se cerca de 40.000 mortes por ano, somente na França, em conseqüência direta ou indireta do álcool. De cinco a seis milhões de pessoas estão relacionadas ao problema, dois a três milhões são dependentes, cerca de 30% das pessoas hospitalizadas têm um problema importante com o álcool. O álcool é uma droga difícil, dizem os especialistas, [2] e parecem estar parcialmente de acordo: apesar do protesto do lobby dos produtores de bebida alcoólica, de fato o governo incluiu, em 1998, o álcool no campo da Missão Interministerial da Luta Contra a Toxicomania (MILTDE) — o que constitui uma pequena revolução. Não somente o álcool é uma droga difícil mas é a que mais custa à sociedade francesa: mais da metade dos 218 bilhões de francos de despesas sociais anuais [3] são gastos na luta contra o uso de drogas — tanto lícitas quanto ilícitas.
Consumo atinge cada vez mais jovens
Além do fato de que escondem importantes disparidades, as cifras globais são paradoxais. Pois o consumo médio de álcool na França diminuiu nos últimos trinta anos, passando de vinte e dois litros de álcool anuais — por habitante com mais de quinze anos — para quinze litros. Haveria portanto razões para se comemorar. Mas o que baixou, na realidade, é a utilização regular de vinho de mesa. Ora, como o consumo de vinho baixou, surgem estes índices, à primeira vista encorajadores. [4] Por outro lado, o consumo de bebidas alcoólicas fortes e de cerveja aumentou. O uso tradicional na França de bebidas alcoolizadas (gastronomia, vinho às refeições, aperitivos) cede então, pouco a pouco, ao ritmo dos modos de consumo do tipo anglo-saxônico ou nórdico (bebedeiras à noite ou no fim-de-semana), e à busca deliberada e às vezes sistemática de embriaguez total. Na verdade essas três formas de uso do álcool coexistem, ou melhor, acumulam-se. Quanto aos usuários, estes subestimam de modo quase automático as quantidades que absorvem. Quando os interrogamos, 75% dos consumidores avaliam beber “menos do que a média”.
Uma série de fatores revelam-se cada vez mais preocupantes. A idade em que se começa a consumir álcool vem baixando constantemente (onze anos, atualmente) e os problemas de comportamento manifestam-se cada vez mais cedo. O consumo simultâneo de inúmeros produtos de origem psicotrópica — legais ou não — é cada vez menos raro. Talvez ainda mais grave seja a tolerância dos adultos em relação à bebedeira de tão jovens consumidores: [5] 10% dos estudantes do ensino básico (na faixa de idade de 11-13 anos) reconhecem ter-se embriagado pelo menos uma vez nos três últimos meses, sem que isto suscite reação por parte de seus familiares.
A “medicalização” do alcoolismo
Se o lado dramático nunca serviu para alterar uma situação problemática, o silêncio e a omissão não são melhores. Para desejar resolver esta questão, talvez faltasse lembrar a afirmação de Albert Einstein: “Quando, apesar dos esforços, um problema persiste, é que os seus fundamentos foram mal colocados. ” Ora, o álcool “persiste” firme e forte.
Quando um médico holandês, Magnus Huss, forjou em 1848 o neologismo alcoolismo, transformando em doença o que era até então considerado um comportamento repreensível — a bebedeira —, provavelmente prestou um serviço aos interessados. Estes, na verdade, precisavam mais de ajuda e de apoio do que preconceito. Mas esse deslize semântico teve outras conseqüências menos felizes, entre outras aquela de “medicalizar” um problema e de abrir o caminho a vários mal-entendidos persistentes. Falando de doença, pensamos em tratamento. Buscamos, então, soluções exteriores ao sujeito e consideramos todos os comportamentos problemáticos relacionados com o álcool como patológicos. Ora, eles nem sempre o são, nem o são sempre, longe disso. A embriaguez ocasional de um jovem ou a conduta sob o domínio de um estado alcoólico, por exemplo, se são problemáticos, não são necessariamente patológicos.
Duas escolas de estudo do problema
Quando os comportamentos decorrentes da alcoolização foram progressivamente incorporados pelo campo da medicina, há cerca de cem anos, duas escolas vieram à luz, irremediavelmente antagonistas, salvo para alguns utopistas: uma, clínica do produto; a outra, clínica do sujeito.
A clínica do produto coloca o álcool como responsável pelas desordens sobre a saúde dos indivíduos, sobre seus comportamentos e conseqüências sociais que isso acarreta. Esta abordagem muito antiga passou pelas ligas antialcoólicas, a lei seca e os movimentos “nefalistas” (etimologicamente: que bebem água). Não deixa de ter uma certa razão e inspirou várias políticas visando a controlar e restringir a produção, venda, consumo e promoção de bebidas alcoólicas, mas não levou a grandes mudanças. [6] Esta clínica busca prioritariamente soluções médicas, tanto em termos terapêuticos quanto comportamentais.
A clínica do sujeito considera o indivíduo, enquanto ser social, mais do que os seus comportamentos. Quando o álcool se torna uma fonte de problemas para um indivíduo, este, para se livrar deles, não pode senão buscar em si próprio os meios para enfrentá-los. A clínica do sujeito se propõe portanto a ajudar o interessado acompanhando-o em uma caminhada libertadora, porém jamais lhe oferecendo a solução.
Uma prática cultural estabelecida
Nenhuma destas abordagens médicas resultou até hoje numa estratégia clara e eficaz.
A norma da saúde pública é considerar populações e identificar os riscos em que elas incorrem para dirigir ações de prevenção e informação. Bem tímidas em geral, e com poucos recursos, as diversas estratégias empregadas se revelam ineficazes em matéria do álcool. É quase certo que elas continuarão a sê-lo por muito tempo e considerarão este resultado como sendo inicialmente um problema — e também um remédio — e o consumidor já como um doente.
A abordagem da questão do álcool não pode ser feita unicamente do ponto de vista da saúde pública. Trata-se de um produto cultural, seu uso é uma prática cultural solidamente estabelecida na França. Consequentemente, a resposta deve ser inicialmente cultural. Se produzir, vender, incitar ao consumo do álcool (para uma sociedade), comprar ou usar (para as pessoas) comporta riscos, estes jamais são dissuasivos. O álcool procura um prazer, gera serviços, fornece benefícios que aparecem aos seus usuários como bens superiores aos riscos incorridos. Daí a dificuldade em enfrentar o problema.
A eficácia psicotrópica do álcool
Normalmente os franceses preferem usar um produto que seja ao mesmo tempo gastronômico, psicotrópico, estupefaciente e tóxico. Por que não? Na França, o álcool faz parte da “arte de viver”. Entre seus benefícios, todo o mundo admite seus aspectos gastronômicos e de convivências. Mas muitas vezes esquecemos de insistir sobre dois efeitos pesquisados e muito freqüentemente obtidos: o efeito psicotrópico e a embriaguez, com suas duas partes positivas e negativas fortemente misturadas.
Porque o álcool é um psicotrópico. Ele age sobre o sistema nervoso central e isto desde as primeiras gotas. Ele pode ser, de acordo com as pessoas e as circunstâncias, ansiolítico, calmante, hipnótico, antidepressivo, desinibidor, psicoestimulante, euforizante etc. Cada um de nós pode, um dia ou outro, sentir alguns destes efeitos. O usuário de álcool como medicamento conhece exatamente as indicações e a posologia apropriada. Ele sabe regular com precisão seu consumo, em função de objetivos geralmente inconscientes. A eficácia psicotrópica do álcool pode ser longa antes que os inconvenientes apareçam. Se não admitimos estes fatos, podemos um belo dia ser apanhados na armadilha de uma dependência que surge sem fazer barulho.
As facetas do dr. Jekyll e de Mister Hyde
A embriaguez é uma aventura tão velha quanto a humanidade. Talvez ela seja mesmo indispensável ao homem, ao seu crescimento, à sua sobrevivência. Existem mil e uma formas de conseguir isto, mas o álcool é provavelmente a mais eficaz, a mais garantida — de qualquer maneira, a mais tolerada, tanto psicológica como socialmente. Legal, de fácil acesso e barato, ele coloca a embriaguez ao alcance de cada um. Porém os controles sociais antigamente existentes em sociedades que ritualizavam — e cadenciavam — as bebedeiras, desapareceram. Como os ritos de iniciação e de passagem, como as experiências de ordem mística, as bebedeiras deram lugar aos comportamentos de destruição, de perturbação física e mental do indivíduo.
Diante da complexidade de um tal produto, nossa própria ambivalência é desmascarada e, no fundo, talvez seja por isso que não o suportamos. É mais fácil não reter do produto álcool e de seus efeitos senão uma faceta de cada vez: do ponto de vista de dr. Jekyll, o produto gastronômico, social, cultural, de aspecto deliberadamente idealizado, adoçado; do ponto de vista de mister Hyde, a personalidade trocada, comportamentos anti-sociais, o homem rebaixado ao nível da besta, brusco, a caricatura. Entre os dois extremos, não existe representação alguma. Como se o álcool não existisse senão sob um ou outro destes dois aspectos, divinizado ou demonizado. No entanto, sabemos perfeitamente que, entre o uso ingênuo e o uso nocivo, há situações em que o álcool constitui um problema, sem que isso entretanto signifique doença.
A metáfora do automóvel
Beber ou não beber não é, portanto, a questão. Tomar uma bebida alcoólica é fazer conscientemente uso de um produto perigoso, de um produto potencialmente narcotizante. Não é, portanto, e jamais será, insignificante. As verdadeiras questões deveriam ser as seguintes: o que fazer (no sentido próprio do termo) quando tomamos o álcool? Que dizer aos que somos mais ou menos responsáveis — filhos, familiares, colegas, amigos — quanto aos riscos implicados, tanto no hoje quanto no amanhã? Que respostas estou em condições, pessoalmente, de fornecer?
Para todos os riscos conhecidos, soubemos criar sistemas de prevenção, de proteção. Para o álcool, não. Como se o perigo não existisse ou não falar dele o fizesse desaparecer. Peguemos a metáfora do automóvel. Para dirigir existe um certo número de regras, um aprendizado, e — mesmo insuficiente — uma cultura de prevenção. É por isso que as infraestruturas, o material etc., são permanentemente revisados e melhorados. Para o álcool, existem igualmente respostas que poderiam ser fornecidas por cada um de nós — em seu próprio interesse e no de seus familiares.
O “desafio” dos habitantes de Brest
Seria necessário ousar falar da ambivalência deste produto, fazer com que o assunto deixe de ser tabu. Podemos imaginar algumas propostas simples de atitudes, tais como: se o álcool é uma droga forte, não sejamos traficantes. Não insistamos, não incentivemos jamais a beber alguém que diz não ter vontade: quem que se recusa a (re)adotar o hábito de beber álcool, sabe o que faz. Deveríamos sempre ter, ao lado das bebidas alcoólicas, qualquer outro tipo de coisa para oferecer.
Se nosso consumo se torna automático, repetitivo, interroguemo-nos. Os habitantes de Brest, por exemplo, todo ano propõem-se, por iniciativa de várias associações e o apoio do município, a um “desafio”. Durante três dias, uma campanha incita a fazer uma pausa no consumo de álcool. Por ora é difícil de dizer se a iniciativa teve efeitos positivos mensuráveis a nível da cidade como um todo, mas pelo menos discutem o assunto.
Abrem-se possibilidades de combate
Se o álcool é utilizado como medicamento, e sobretudo quando se revela eficaz, desconfie! Em algumas circunstâncias, pode ser um medicamento prodigioso (sobre o medo, a pequena “fossa”, a fadiga, o tédio…), mas o risco do vício é maior. Se “presta um serviço”, o álcool cria um risco de dependência muito maior do que quando se limita a “proporcionar prazer”.
Para evitar os danos do uso abusivo deste produto psicotrópico é possível agir com eficácia em várias frentes: a política de saúde, a ação pública, a educação e a cidadania. No que diz respeito ao primeiro ponto, há uma esperança. Um relatório lançou finalmente as bases para uma política de saúde (prevenção e cuidados) em relação ao álcool. [7] Todos os elementos relevantes ao tema estão relacionados a nível das divisões territoriais (do Estado ao município), institucionais (do Ministério ao hospital local), da empresa à associação. E o estudo ainda ficou curto de verba. Até aí, nenhuma vantagem; as primeiras medidas, no entanto, foram até agora singularmente tímidas.
Sempre há onde comprar…
Conviria, por outro lado, que os poderes públicos e as instituições se empenhassem ao lado de profissionais no assunto. Agentes da saúde, assistentes sociais, mediadores, agentes dos serviços públicos são diariamente confrontados com comportamentos decorrentes da alcoolização e suas conseqüências. Sentem-se totalmente impotentes quando o álcool neutraliza sua ação.
A venda de produtos alcoolizados e a publicidade deveriam ser controladas, principalmente no que se refere aos menores de idade. Leis existem mas, sabemos disso, não são respeitadas: o álcool é sempre vendido aos adolescentes, sempre há um posto de gasolina onde se pode comprar bebida alcoólica a qualquer hora do dia ou da noite.
A discussão levada à escola
Em termos de educação, também há soluções possíveis. Se o problema do consumo do álcool diz respeito a todos, toca ainda mais perto àqueles que educam, instruem, formam. Cada professor do ensino fundamental, médio ou superior, deveria poder falar do assunto; todas, ou quase todas, as matérias do currículo proporcionam esta oportunidade. Existem menos riscos em falar do que em deixar de falar no assunto. Seria fundamental introduzir esta questão na escola como uma questão cívica, e parar de achar que se trata de um trabalho para especialistas.
Cada instituição — empresa, hospital, associação etc. — co