A máquina de vender livros
No início, o livro mais vendido foi um dicionário de matemática. Hoje, grandes pensadores como Nietzsche, Maquiavel, Platão, Diderot e Sun Tzu estão no topo da lista. Só posso concluir que brasileiro lê, gosta de ler, sabe escolher e é muito exigente. Basta dar acesso
Um canal de distribuição de livros a preços baixos e com alto valor de uso. Obras significativas e de qualidade, mas dentro das possibilidades financeiras de qualquer cidadão. Essa idéia simples foi o ponto de partida, há mais de 7 anos, para a criação da “máquina de livro”, cujas unidades atualmente comercializam entre 12 mil e 15 mil obras por mês nos metrôs de São Paulo e Rio de Janeiro.
Na época, eu trabalhava na empresa Páginas Amarelas. Surgiu então um projeto dentro de uma das companhias do grupo, a editora Exped, que tinha por objetivo vender livros bons e baratos. Empolguei-me com a possibilidade de participar.
Expor, comercializar e distribuir eram os principais empecilhos da operação, baseada em produção de livros em grande escala com baixo custo unitário. Passei muito tempo quebrando a cabeça para tentar resolver a questão da viabilidade econômica do projeto.
Certo dia, deparei com uma máquina instalada na sede da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) que vendia café, refrigerantes e salgadinhos e pensei: por que não livros? Em 2000, dei a largada para o planejamento, pesquisa, desenvolvimento e implantação da empresa que viria a se chamar 24X7 (24 horas por dia, 7 dias por semana). Dois anos e meio depois, viagens mundo afora, pesquisa, desenvolvimento e muitos “nãos”, a primeira máquina automática de venda de livros começou a funcionar na estação São Joaquim do Metrô de São Paulo, um grande parceiro. Era março de 2003.
Mesmo tendo planejado e preparado bastante a implantação, quando liguei a primeira máquina na tomada, às 22h da noite de estréia, é claro, não funcionou como previsto. Passei a noite toda fazendo ajustes e gambiarras. Em torno das 6h do dia seguinte, meu Frankenstein abriu os olhos. Por fora era bonitinha, mas por dentro tinha todos os tipos de fita adesiva.
Depois da noite insone, fiquei plantado ao lado da máquina, tal qual um adolescente empolgado e prestativo numa feira de ciências, todo orgulhoso em mostrar seu produto.
O sucesso maior foi provocar a curiosidade das pessoas. Formou-se uma fila para olhar a máquina, todos me davam parabéns. Mas ninguém comprava um livro sequer.
Eu estava acordado há mais de 36 horas, após noites de muita excitação e pouco sono.
Foram mais de dois anos de planejamento, e muito dinheiro investido. “Será possível que errei tanto na percepção?”, pensei. “Será que o brasileiro de fato não lê, como diz o senso comum, ainda que o livro seja bom e custe apenas R$ 3?”
E assim a agonia foi aumentando. Mesmo quase gritando de desespero e tristeza, permaneci sorrindo e explicando como funcionava. Estava a ponto de dar algum dinheiro para que alguém comprasse um livro, nem que fosse só para minha satisfação pessoal. Finalmente, lá pelas 17h30, fim de expediente de várias empresas da região, foi vendido o primeiro livro. Alguns poucos exemplares se seguiram. Parecia até que eu tinha tomado um bom banho, feito a barba e saboreado uma bela refeição.
Naquela noite dormi o sono dos anjos, feliz comigo mesmo por ter dado o primeiro passo para uma grande mudança nos padrões culturais de São Paulo, e a seguir do Brasil. De certa forma, continuo com este entusiasmo – mas sem a carga de ansiedade do primeiro dia.
No início, o livro mais vendido foi um dicionário de matemática. Eu quase me beliscava para acreditar que isso era verdade. Hoje, grandes pensadores como Nietzsche, Maquiavel, Platão, Diderot e Sun Tzu estão no topo da lista dos mais vendidos, junto com livros de oratória, manuais de informática e outros de utilidade prática. A maioria custando até R$ 5.
Existem também máquinas temáticas, como a que oferece livros de leitura obrigatória para vestibulares a partir de R$ 3, com foco na democratização do acesso às universidades.
A seleção dos títulos exclui material pornográfico, depreciativo, depressivo, de violência pura e outros que basicamente não possam ser lidos por uma criança. A exceção é para os títulos de vestibular, aos quais não colocamos quaisquer restrições.
Com o tempo, passei a chamar a máquina de livros de máquina de sorrisos, porque toda vez que alguém compra um exemplar de uma obra, sai com um largo sorriso de prazer e de poder. Brasileiro lê, gosta de ler, sabe escolher e é muito exigente. Basta dar acesso.
E, ao contrário do que poderíamos pensar, as livrarias e as editoras não são contrárias às máquinas. Afinal, estamos fornecendo o que há de mais precioso, raro e caro para qualquer empresa: milhares de clientes, traduzidos por novos leitores, que fomentam toda a cadeia de produção editorial.
Grande parte de nossa clientela nunca havia entrado em uma livraria, seja porque não sabiam por onde começar, seja porque se sentiam inibidos nesse ambiente, ou ainda pela falta de dinheiro. Hoje, uma legião de novos consumidores vai às livrarias. Contaminados pelo hábito da leitura, eles identificam o que querem, têm um estilo preferido, se comunicam melhor, são mais produtivos, competitivos e têm mais discernimento do que se passa ao seu redor. E, principalmente, passaram a ser exemplos para suas comunidades, pois incluíram o livro em seu cotidiano.
Temos observado a seguinte evolução: o primeiro livro é comprado por impulso. A seleção de títulos facilita a próxima compra, caso o cidadão goste da primeira obra. Ele adquire então o terceiro e o quarto livros. E, de repente, quando menos percebe, já está inoculado e passa a entrar em livrarias de peito estufado e cabeça erguida. Parece dizer “eu sou, eu sei, eu quero, eu posso” e “estou fazendo parte da dita ‘elite’”, que então ele percebe ser a que interpreta e muda os rumos de nosso país e do mundo. A parte financeira normalmente é conseqüência.
Sem dúvida, o desenvolvimento de equipamentos e do modelo de negócio de vendas automáticas de livros acabou nos colocando na posição de fornecedores de tecnologias de automação comercial. Hoje grandes empresas nos procuram para desenvolvermos soluções de automação como um canal de distribuição para parte de suas vendas. No entanto, o grande reconhecimento vem de milhares de clientes da 24X7 que nos adoram por termos oferecido acesso a um “artigo de luxo”.
A banalização da leitura, no bom sentido, é uma das metas que vem sendo cumprida desde o primeiro dia de funcionamento das máquinas de livros. Num país com 73% de analfabetos funcionais, transformamos e continuamos transformando uma parcela significativa da população.
Alfabetização funcional é definida como a capacidade de interpretar textos, gráficos e fórmulas aritméticas e produzi-los de forma que sejam interpretáveis. Eu considero que fazem parte do grupo de analfabetos funcionais, pessoas de ego inflado que adoram utilizar palavras difíceis para um público que não as irá entender. Ou seja, falam para si ou para uma minoria, sem um pingo de cidadania, sem trazer benefício para a população e sem de fato se comunicar.
Não entender e não se fazer entender é o principal fator de geração de conflitos de toda natureza, baixa produtividade, baixa qualidade de vida, frustrações, má distribuição de renda, miséria, insalubridade e outras mazelas que acompanham nosso cotidiano.
Nos empenhamos em expandir as atividades da 24X7 para uma parcela muito maior da população. Seja por melhoria de processos, por aporte de capital de terceiros, seja por patrocínios culturais recorrendo a leis de incentivo à cultura com 100% de renúncia fiscal – cuja obtenção, aliás, tem sido muito difícil, mas somos um caso típico de persistência. Queremos acelerar e potencializar os resultados desse canal de distribuição de livros de baixo custo, para garantir, de forma sustentável, a democratização do acesso à leitura.
Sou médico de formação e muita gente me pergunta por que abandonei a Medicina. Bem, sou mais atuante hoje do que nunca, em medicina preventiva. A alfabetização funcional, longe de qualquer outro, é o fator de maior importância na redução da mortalidade infantil. Ajudar a quebrar a máxima que brasileiro não lê e provocar mudanças imediatas de caráter permanente em uma grande parcela da população dão enorme satisfação!
*Fabio Bueno Netto é fundador da 24X7 Cultural.