A marcha para a multipolaridade
A crise atual do sistema financeiro só acelerou o movimento de recuo do Ocidente. Sem sombra de dúvida, os Estados Unidos continuarão sendo, por longos anos, a potência dominante. Mas a ascensão de Brasil, Rússia, Índia e China leva à formação de novos centros de poder que contestam a ordem internacional
Antes mesmo de desabar o temporal que devastou o mercado financeiro, algumas notícias publicadas entre julho e agosto de 2008 traziam sinais interessantes.
O número de internautas chineses ultrapassou o de americanos, e os Estados Unidos não representam hoje mais do que 25% do tráfego da rede, contra cerca de 50% há dez anos.
As tentativas para reanimar a Rodada Doha das negociações comerciais internacionais fracassaram, principalmente porque Índia e China se recusaram a sacrificar seus agricultores, já empobrecidos, no altar do câmbio livre.
A Rússia defendeu, no decorrer da crise da Geórgia, seus interesses nacionais no Cáucaso, enfrentando os hesitantes protestos de Washington.
Esses fatos, entre muitos outros, expressam uma recomposição das relações internacionais, demonstram o fim do domínio absoluto ocidental que havia sido imposto desde a primeira metade do século XIX.
A crise atual do sistema financeiro só acelerou esse movimento de recuo do Ocidente. “O fim da arrogância” foi o título do semanário alemão Der Spiegel de 30 de setembro, com o seguinte subtítulo: “A América perde seu papel econômico dominante”. Por uma dessas ironias da história, essa mudança memorável ocorreu menos de duas décadas após a derrota do “campo socialista”, dirigido pela União Soviética, e do triunfo aparente dos princípios da economia liberal.
Profetizar é sempre perigoso. Em 1983, dois anos antes da ascensão de Mikhail Gorbatchev ao Kremlin, Jean-François Revel previa o fim das democracias, incapazes de lutar contra “o mais temível de seus inimigos externos, o comunismo, variante atual e modelo perfeito do totalitarismo1”. Alguns anos depois, Francis Fukuyama anunciava o “fim da história” com a vitória completa do modelo americano-ocidental. Da mesma forma, após a primeira Guerra do Golfo (1990-1991), muitos observadores entreviam o início de um século XXI majoritariamente americano.
Quinze anos mais tarde, surgiu outro consenso, talvez um pouco mais próximo da realidade: nós entramos em “um mundo pós-americano2”. Como reconhece o Livre blanc sur la défense et la sécurité nationale adotado pelo governo francês em junho de 2008, “o mundo ocidental – essencialmente a Europa e a América – não é mais o único detentor da iniciativa econômica e estratégica da forma como era em 19943”.
O mundo vai se tornar multipolar? Sem sombra de dúvida, os Estados Unidos continuarão sendo, por longos anos, a potência dominante. E não apenas no plano militar. Entretanto, deverão levar em conta o aparecimento de centros de poder em Pequim, Nova Délhi, Brasília e Moscou.
A paralisação das negociações da Organização Mundial do Comércio (OMC), o impasse da crise nuclear iraniana e as peripécias nas negociações com a Coréia do Norte confirmam que os americanos, mesmo aliados à União Européia, não são mais capazes de impor seu ponto de vista e precisam de outros parceiros para solucionar as crises.
Pode-se acrescentar a essas novas potências uma série de atores. Richard Haass, antigo funcionário do alto escalão da administração George Bush (pai) e atual presidente do Council on Foreign Relations, evoca alguns deles em sua descrição de um “mundo não-polar”4: a Agência Internacional de Energia (AIE), a Organização de Cooperação de Xangai5, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e as organizações regionais; cidades como Xangai ou São Paulo; a mídia e suas transmissões via satélite, da Al Jazeera à CNN; as milícias, do Hezbollah aos talebãs; os cartéis do tráfico de drogas; as organizações não-governamentais, etc.
Integrantes do bloco conhecido como BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), manifestam suas ambições ao mesmo tempo em que contestam uma ordem internacional responsável por sua marginalização.
Com objetivos mais limitados, países como África do Sul, Israel, Indonésia e até mesmo as nações sul-americanas defendem seus interesses “egoístas” com determinação.
Nenhum desses Estados é impulsionado por uma ideologia global, como era o caso da União Soviética. Tampouco algum deles se apresentou como modelo alternativo: todos aceitaram – uns mais, outros menos – a economia de mercado.
Mas esses países não pensam em fazer concessões sobre os seus interesses nacionais. Acima de tudo, lutam pelo controle das matérias-primas minerais, que se tornaram mais raras e caras – principalmente o petróleo e o gás.
A motivação inicial é resguardar a capacidade de alimentar a população diante de uma produção agrícola insuficiente e ameaçada pelo aquecimento global.
Por trás dela, porém, as nações também buscam defender seus interesses geopolíticos. Baseando-se em uma visão histórica de longo prazo, por exemplo, Taiwan e o Tibete iriam para a China; a região da Caxemira, para a Índia e o Paquistão; o Kosovo, para a Sérvia; e o Curdistão, para a Turquia.
Sabemos que esses conflitos estão longe de serem resolvidos por uma globalização triunfante. Pelo contrário: mais do que nunca, eles mobilizam grandes massas de ambos os lados.
Um simples olhar no mapa mundial indica que a maioria dessas tensões se manifesta em torno de um “arco de crises” que se estende, segundo o Livre blanc sur la défense et la sécurité nationale, do Atlântico ao Oceano Índico. Seus autores alertam para “o novo risco de uma conexão entre os conflitos, que se desenha entre o Oriente Médio e a região do Paquistão e do Afeganistão.
A existência de programas, em geral clandestinos, de aquisição de armas nucleares, químicas e biológicas agrava esse perigo, assim como a compra de arsenais militares baseados em vetores aéreos e mísseis.
A desestabilização do Iraque, dividido em comunidades rivais, corre o risco de se espalhar pelos países vizinhos e afetar, direta ou indiretamente, os interesses europeus.
Afinal, por diversas razões, os países do Velho Continente estão presentes militarmente no Chade, na Palestina, no Líbano, no Iraque e no Afeganistão. Nessas condições, a Europa provavelmente será chamada a participar ainda mais do futuro da região, para auxiliar na prevenção e na administração das crises6”.
Uma análise semelhante é compartilhada pela maioria dos estrategistas americanos e foi resumida por William Burns, importante funcionário do Departamento de Estado: “Há dez anos, a Europa era o epicentro da política externa americana. Agora, tudo mudou. O Oriente Médio ocupa, para o presidente George W. Bush, para a secretária de Estado Condoleezza Rice e para seus sucessores, o lugar que a Europa ocupava junto às diferentes administrações americanas do século XX7”.
O fato de essa região abrigar a maior parte das reservas petrolíferas do mundo num momento em que o preço do barril permanece muito alto – apesar da queda recente – contribui para aumentar o caráter estratégico do “Grande Oriente Médio”.
Do Iraque até o Chade, do Afeganistão até o Líbano, registra-se uma concentração sem precedentes de tropas ocidentais. A última vez que um contingente de dimensão semelhante esteve na região remonta à Segunda Guerra Mundial.
A política norte americana de “guerra contra o terrorismo” ignorou a diferenças entre esses países e seus problemas internos e essa postura contribuiu para a criação de uma “internacional da resistência”. Internacional essa heterogênea e dividida, que não é capaz de se unir para nada, a não ser para fazer oposição à hegemonia americana.
Essa resistência se manifesta também na economia, um campo crucial. Ao contrário do que ocorreu nas crises precedentes, principalmente a asiática e a russa, a atual tempestade financeira confirma a marginalização de organizações internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial.
No início do milênio, muitos países, entre eles a própria Rússia, a Tailândia, a Argentina, o Brasil, a Sérvia e a Indonésia, haviam decidido pagar suas dívidas ao FMI antecipadamente8, para se libertar das regras impostas por esses organismos.
Será que o “consenso de Washington”9 pode ser substituído pelo “consenso de Pequim”? Como um país do Sul pode se colocar no cenário internacional?
Segundo o economista Joshua Cooper Ramo10, são três teoremas que definem essas novas relações: insistência na inovação; levar em conta não apenas o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), mas a qualidade de vida e certa forma de igualdade que evite o caos; independência e autodeterminação nas decisões, o que implica na recusa em deixar que outras nações, principalmente as potências ocidentais, imponham seu ponto de vista.
Planos fora do consenso de Washington
Esses conceitos provocaram muitos debates e críticas11 em torno da possibilidade de a China oferecer realmente um “novo modelo”. Afinal, ao mesmo tempo em que as desigualdades continuam crescentes em território chinês e o país aceitou aderir à globalização, suas movimentações permitem compreender que, como nunca desde a descolonização, os países do sul têm a possibilidade de conduzir políticas independentes, aliando-se a parceiros – tanto Estados como empresas – que não compartilham a visão de Washington.
Novas relações se estabelecem, como comprovam os encontros entre a China e as nações africanas e a reunião dos ministros das Relações Exteriores do BRIC, em 26 de setembro em Nova York.
Agora, os países podem traçar planos de desenvolvimento sem passar pelas duras condições do “consenso de Washington”.
Outra transformação essencial que afeta a arquitetura geopolítica do mundo é o aquecimento global. As implicações políticas e de segurança decorrentes deste fenômeno já são objeto de discussões no Conselho de Segurança das Nações Unidas e estão incluídas nas reflexões estratégicas, dos Estados Unidos, da França ou da Austrália12.
Condições extremas do tempo afetarão as colheitas de alimentos, favorecendo o desenvolvimento de epidemias, e a subida das águas não apenas colocará 150 milhões de pessoas na categoria de refugiados ecológicos até 2050, mas também reavivará a luta pela divisão dos territórios após o desaparecimento de atóis e ilhas, alterando a superfície das Zonas Econômicas Exclusivas (ZEE)13.
A partir de agora não é só a dominação econômica do Ocidente que é contestada, mas sua legitimidade em estabelecer o Bem e o Mal, em definir o direito internacional e em interferir nos assuntos mundiais em nome da moral ou do humanitarismo.
O ex-ministro das Relações Exteriores francês, Hubert Védrine, explica que o Ocidente perdeu “o monopólio da história”, o monopólio do “grande relato”. A história do mundo, inventada há dois séculos, se resumia à história da ascensão e da superioridade da Europa.
A marcha para a multipolaridade pode ser vista como uma esperança de avanço para um verdadeiro universalismo, mas ela também provoca medo no Ocidente.
O mundo se tornaria cada vez mais ameaçador uma vez que “nossos valores” seriam atacados por todas as partes, pela China, pela Rússia, pelo Islã. E frente a esta situação seria preciso, sob o comando da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), iniciar uma nova cruzada contra os bárbaros que tentam “nos destruir”. Se não tomarmos cuidado, essa visão se tornará uma profecia auto-realizadora.
*Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).