A memória artística da ditadura
Pinturas, gravuras, performances e happenings tensionaram a todo momento o autoritarismo e denunciaram os crimes contra a humanidade cometidos pelos militares, às vezes com imagens hiper-realistas, às vezes com um mero conceito lançado no ar, às vezes com intervenções urbanas que escrachavam o que era empurrado para debaixo do tapete social simbólico
Quando se fala em resistência à ditadura civil-militar brasileira da segunda metade do século XX, uma das primeiras coisas que me vêm à cabeça são os artistas da época: ousados, corajosos que não se deixaram calar mesmo com a censura, as ameaças e a tortura correndo soltas. Primeiro, lembro-me de Gal Costa e Nara Leão; penso em Rita Lee e nos Mutantes; abraço em imaginação Gil, Caetano, Chico, Milton, Tom Zé, Rogério Duprat e toda a Tropicália. Depois do fatídico domingo de resultado das eleições, o que me trouxe à consciência da tarefa histórica que minha geração terá pela frente – e me fez abafar o choro que queria vir – foi a voz de Gal ecoando Divino Maravilho. “É preciso estar atenta e forte, não temos tempo de temer a morte”.
Se a música, assim como a literatura e o teatro, é uma fonte rica de elementos sobre o que de fato foi o período dos militares no poder, gostaria de acrescentar ao pacote de referências poético-históricas uma linguagem artística por vezes deixada de escanteio nas análises políticas e que muito revela o lado apagado dos livros didáticos: as artes plásticas. Pinturas, gravuras, performances e happenings tensionaram a todo momento o autoritarismo e denunciaram os crimes contra a humanidade cometidos pelos militares, às vezes com imagens hiper-realistas, às vezes com um mero conceito lançado no ar, às vezes com intervenções urbanas que escrachavam o que era empurrado para debaixo do tapete social simbólico.
Numa manhã de uma segunda-feira qualquer, no ano de 1970, catorze trouxas ensanguentadas, cheias de ossos e carne em putrefação, emergiram no rio Arrudas, em Belo Horizonte. Pareciam ser corpos de desaparecidos políticos. Só podia ser. Rapidamente a polícia foi acionada. Quando conseguiram retirar as trouxas da água, para a surpresa de todos, não se tratavam de restos humanos, mas de Situações, intervenção feita por Arthur Barrio para expor o elefante branco no meio da sala: existiam mortos desaparecidos e uma cena daquela era completamente verossímil. Uma vez, em uma entrevista, perguntaram a Barrio de onde vinha a palavra “Situações”; ele respondeu que vinha “do dia a dia comum, uma coisa banal”. A banalidade da década de 1970 era sangue e carcaça.
Que nos lembremos da exposição Sala Escura da Tortura, realizada primeiramente em Paris, em 1973, pelo Grupo Denúncia e pelo Coletivo Anti-Fascista, depois refeita no Brasil em 2011, como uma iniciativa do Instituto Frei Tito, Ministério da Justiça e Anistia Internacional. Faziam parte do Denúncia quatro artistas, dos quais três eram sul-americanos exilados na França para fugir de governos ditatoriais: Julio Le Parc (Argentina), Gontran Guanaes Netto (Brasil), José Gamarra (Uruguai) e Alejandro Marcos (Espanha). Eles se basearam nos depoimentos de Frei Tito sobre a tortura, fizeram entre eles uma performance de reconstrução das sessões de absurdos, fotografaram as cenas de terror e depois as transformaram em pinturas hiper-realistas. Afogamento, choques, amarrações e suspensões foram algumas ferramentas de violência usadas pelo governo para punição e perseguição.
Em 1975, Letícia Parente deu sua contribuição potente com a vídeo-performance Marca Registrada, em que a artista, ao longo de aproximadamente dez minutos, borda a frase “Made in Brazil”. O bordado, diminuído historicamente como ofício doméstico das mulheres, é aqui ressignificado como demonstração de força e resistência tendo-se em vista o que se costura: a sola do pé da própria artista. As imagens causam angústia e é esta a intenção. Em apenas um vídeo aparentemente simples, Parente explicita muitas questões complexas: fala da dor de ser brasileira naquele momento, da entrega do país ao mercado internacional, da necessidade de lastro, de sua própria raiz e da sua condição de mulher no meio do furacão. Ao costurar seu próprio pé com a frase que marca sua origem, Letícia Parente nos fala de coragem. “A vida é feita de coragem”.
Na mesma década do trabalho de Parente, Alex Fleming se usou do hiper-realismo para revelar o não dito que existia por trás da defesa da família, da moral e dos bons costumes. Na série de gravuras Natureza-morta, o artista se apropria de um dos gêneros mais tradicionais das artes plásticas, geralmente decorativo, para expor os crimes cometidos pelos militares de bem. Se o conceito teórico de “natureza-morta” nas artes inclui “elementos inanimados” e “objetos imóveis”, no trabalho de Fleming as composições se revelam como cadáveres humanos eletrocutados, alvejados, sufocados, baleados, enforcados. Tudo bem explícito para que as famílias burguesas pudessem emoldurar e pendurar na sala de jantar, enquanto se ocupam de nascer e morrer.
A morte é tema central de diversos trabalhos plásticos feitos nas décadas de 1960 e, especialmente, de 1970. Carlos Zilio, por exemplo, tem dois autorretratos simples mas com uma potência que dói. Em Autorretrato aos 26 anos, o artista desenha o que seria uma foto sua em 3×4, primeiro com o rosto encarando o observador, depois de perfil, ambas com um número de fichamento feito pela polícia. Abaixo dessas duas imagens, uma cela se abre para um rapaz sair. Sem camisa, ele revela no peito o único ponto de cor da obra: o coração vermelho. Na base do papel, as dez digitais de Zilio, registro mais puro de sua identidade.
Três anos depois, Carlos Zilio se retratou novamente. A simplicidade desta obra é inversamente proporcional ao impacto: sobre um papel branco, no centro, a palavra “auto-retrato” aparece grafada em tipografia maquinal, manchada com uma única gota de sangue. Não existe mais nada no trabalho, nenhuma figura humana, apenas o rastro de algo que não existe mais, apenas o vestígio de um destino violento, sequestrado. Quanto Zilio escreve “autorretrato” em sua obra, ele cria espaço que deveria ser habitado por um homem; a ausência de uma figura humana leva a questionamentos do que se sucedeu, e a resposta vem com sangue. A ausência é consequência da violência.
Em 1978, Paulo Brusky também se apropriou do gênero de autorretrato e fez sua própria versão: a composição inclui duas radiografias de crânio humano, feitas para reconhecimento da arcada dentária em cadáveres não identificados; abaixo das duas imagens, um retrato de rosto do artista coberto por uma tarja preta onde se lê “Protetor de identidade”. Em época de assassinatos, esconder-se não é covardia, é sobrevivência.
Impossível não mencionar Cildo Meireles e suas Inserções em Circuitos Ideológicos, uma série de intervenções urbanas com críticas explícitas à violência dos militares e à política econômica liberal colocada em prática. Se eu disse no início que, ao falar de ditadura, as primeiras imagens que me vêm à cabeça são dos artistas resistentes, talvez a segunda referência imagética que tenho do período militar é a do assassinato cruel do jornalista Vladimir Herzog. Lembro-me da primeira vez que vi a foto daquele suicídio encenado. Com dez anos de idade, eu já sabia que não era possível alguém se enforcar daquele jeito. No final da década de 1970, Cildo Meireles carimbou notas de dinheiro cobrando respostas e justiça para o jornalista. “Quem matou Herzog?” gritava nas cédulas que circulavam pelas cidades.
Precisaremos de muitos carimbos, pinturas, intervenções urbanas, graffiti, performances, happenings e todas as técnicas das artes plásticas para enfrentarmos e sobrevivermos ao período Bolsonaro. Precisamos delas como registro histórico e como formas de revolução. Obviamente que tentarão calar a todos, primeiro com o fechamento do Ministério da Cultura, depois com a criminalização de práticas artísticas, poéticas, obras etc. Nos últimos tempos já quiseram censurar as artes – lembrem-se do Queermuseu e da performance de Wagner Schwartz – mas elas resistiram e sempre resistirão.
A lista de artistas e trabalhos contestadores das práticas desumanas da ditadura civil-militar no Brasil é infinita e, com certeza, esse esforço aqui diz muito mais sobre meu esquecimento do que sobre minha lembrança. Peço desculpas desde já pela possível injustiça que cometi por der deixado de fora outros tantos nomes. De toda forma, o que trago é uma tentativa pequenina de contribuir com a restauração da força e da coragem da juventude para os próximos anos que virão, especialmente dos artistas, para que nunca aceitem se calar e que entendam que ser artista significa carregar consigo uma função social das mais importantes: a de transformação do nosso tempo e espaço em expressões que suscitarão a reflexão, o pensamento e a compreensão da nossa sócio-política.
*Raisa Pina é jornalista e pesquisadora em artes, cultura e política, doutoranda em História da Arte pela Universidade de Brasília.