A monocultura avança sobre a floresta
Apesar de leis argentinas obrigarem governos provinciais a realizarem estudos territoriais dos bosques nativos e tomarem medidas ecológicas e sustentáveis, na prática a situação é mais complexa. Conflitos de interesse e disputas de poder têm atravancado a luta de movimentos ambientalistas
Para regular a expansão da fronteira agropecuária em todo o território nacional, o Congresso argentino sancionou, em dezembro de 2007, a “Lei de Orçamentos Mínimos Ambientais para a Proteção dos Bosques Nativos”. Buscava assim colocar um freio no avanço de capitais privados sobre os terrenos virgens – que representam somente 12% do território nacional1 – por meio do desflorestamento. Na maioria dos casos, o desmatamento dos bosques foi provocado por monoculturas de soja e milho transgênicos ou por plantações de pinhos e eucaliptos.
No dia 13 de fevereiro de 2009, a presidente Cristina Fernández de Kirchner sancionou a “Lei Bonasso”, como ficou conhecido o texto, de autoria do legislador Miguel Bonasso. Apesar de o poder Executivo dispor de 90 dias para ditar o Decreto Regulamentar necessário para a aplicação da legislação em todo o país, Cristina tinha pressa: a tragédia da cidade de Tartagal, na província de Salta2, acabara de ocorrer.
A lei obriga os governos provinciais a realizar um estudo de organização territorial dos bosques e áreas de arbustos nativos em cada jurisdição, respeitando determinados critérios ecológicos de sustentabilidade. Dessa análise, para a qual devem ser convocados todos os atores sociais afetados, deve sair um mapa que permita delimitar zonas vermelhas, amarelas e verdes, correspondentes ao grau de degradação ou conservação dos bosques. Será constituído, assim, o marco legal que regulará o desmatamento em todas as regiões da Argentina: impossibilidade de explorar o território nas zonas “vermelhas” – salvo atividades de baixo impacto ambiental –, aproveitamento sustentável da serra nas zonas “amarelas” e possibilidade de substituir o bosque natural por qualquer cultivo nas “verdes”.
Mas, em cada região, uma difícil rede de relações sociais e diversos conflitos de interesses fazem com que a discussão se limite a uma disputa de poder na qual costuma prevalecer a opinião do mais forte.
Um paradigma em crise
A província de Córdoba é um perfeito exemplo deste conflito. Ali, a convocatória por parte do governo para discutir como se daria o estudo só caminhou depois que várias organizações locais chamaram a atenção para a falta de vontade política generalizada em começar a análise. Somente em 24 de novembro de 2008, a Secretaria de Meio Ambiente da Província, autoridade responsável por aplicar a lei, convocou uma reunião ampla3 na qual foi criada a Comissão de Organização Territorial dos Bosques Nativos (COTBN). A maioria presente elegeu como presidente da comissão a engenheira agrônoma Alicia Barchuk, pesquisadora dos sistemas florestais e de produção familiar da província e defensora de que não se avance “nem mais um metro” sobre os bosques que ainda resistem em Córdoba.
Descontentes com a eleição de Barchuk, cinco integrantes da Confederação de Associações Rurais da Terceira Zona (Cartez) decidiram abandonar o processo e solicitaram ao poder Legislativo provincial permissão para apresentar um documento próprio que também fosse levado em consideração na elaboração final do mapa da província. No entanto, o único projeto apresentado até o momento foi o informe desenvolvido pela COTBN, que apesar de não ser determinante, constitui o documento base a partir do qual o Legislativo deverá dar força de lei à organização territorial.
A ruptura colocou em evidência as posturas em disputa. Os grupos “ambientalistas” – representados por organizações de pequenos camponeses, pesquisadores universitários e organizações não governamentais, entre outros – afirmam que a província está numa situação de emergência ambiental e que já não existem mais zonas que possam ser marcadas como “verdes” para ser desmatadas e convertidas em plantações de cultivos intensivos. Eles fundamentam sua postura em dados reconhecidos pelo Estado: dos 71,4% da superfície total da província (16.532.100 hectares) que estavam cobertos por bosques, só restam 3,6% (cerca de 594 mil hectares). Segundo esse grupo, Córdoba tem a taxa de desmatamento mais alta da Argentina e uma das mais altas do mundo. Foram extintos todos os bosques de Espinal (alfarrobal e caldenal) e o bosque serrano está perto da destruição completa. Na Llanura Oriental, noroeste de Córdoba, onde se concentram hoje os conflitos entre ambientalistas e grandes produtores, o solo sofre diferentes graus de degradação.
Essa realidade contrasta com o Convênio Internacional de Biodiversidade assinado pelo Estado argentino, que indica que a superfície remanescente de bosques em bom estado de conservação deveria alcançar, no mínimo, 15% da superfície de cada ecossistema. Isso quer dizer que, em Córdoba, a zona vermelha deveria incluir, pelo menos, 375 mil hectares.4 Restariam, portanto, outros 219 mil hectares que, para os ambientalistas, têm de se tornar zonas de uso sustentável por parte de comunidades camponesas, que realizariam atividades de enriquecimento, conservação, restauração e melhoria dos bosques. “Conseguir isso significa manter os serviços ambientais do pouco que existe, mitigar o avanço da desertificação e permitir a vida dos produtores agropecuários e comunidades camponesas que dependem do bosque. Por isso, propomos o fim total do desmatamento, considerando os direitos de posse ancestral”, aponta Alicia Barchuk.
Do outro lado dessa disputa está o setor representado, em sua maioria, pelas entidades rurais, que propõe realizar um desflorestamento “seletivo”, o que implica, segundo seu critério, o uso racional e sustentável das serras de Córdoba. Nesse sentido, colocam que ainda restam zonas aptas a ser desmatadas e posteriormente destinadas à produção de gado mediante estratégias agrícolas sustentáveis.
A esse respeito, Horacio Machado, professor das cátedras de sociologia e epistemologia das ciências sociais da Universidade Nacional de Catamarca, e pesquisador do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (Clacso), considera o conceito de “desenvolvimento sustentável” utilizado pelos atores políticos dominantes – o capital multinacional e os organismos multilaterais – como uma forma de “neutralizar as críticas ao paradigma produtivista em crise. Em nome do desenvolvimento sustentável segue-se impulsionando modelos de produção e de consumo claramente não sustentáveis nem generalizáveis. E que geram uma massa de excluídos de alimentos básicos e de deslocados ambientais, com o simples objetivo de satisfazer os consumos energéticos de uma porção cada vez mais reduzida e seleta da população mundial”. Machado acrescenta que em lugar de tratar do problema de fundo, “são impulsionadas políticas paliativas de controle e redução de impactos, além de muitas artimanhas publicitárias que constroem condições de ‘governança ambiental’ nos territórios em disputa, garantindo a securitização dos investimentos mediante tecnologias cada vez mais sofisticadas de controle das populações”.
Bem, para os movimentos ambientalistas, a “sustentabilidade” é o oposto. Constitui o desafio de recriar modos de vida e de coexistência baseados no uso responsável dos bens comuns da natureza, vinculados aos direitos humanos: trata-se do justo e equitativo acesso aos recursos naturais e do cuidado e preservação da diversidade biológica e sociocultural em longo prazo. Por essa razão, devido à transcendência da lei, a COTBN e a Secretaria de Ambiente provincial convocaram, no dia 21 de maio passado, uma audiência pública da qual participaram mais de 900 pessoas, com o objetivo de incluir a maior quantidade de vozes possível.
Espaços de resistência
As guerras da água e do gás na Bolívia, o referendo que declarou a água um bem público no Uruguai5 e outras reivindicações pelos recursos naturais na América do Sul repercutiram em distintos coletivos argentinos que, com persistência e as mais variadas formas de luta denunciam, mostram e marcam as práticas expropriatórias. Existem mais de 70 assembleias populares organizadas ao longo das províncias de cordilheira argentinas. O movimento antibarragens, as reivindicações territoriais dos povos originários, os coletivos de defesa da biodiversidade, todos se organizam para frear o avanço dos empreendimentos extrativos. No entanto, na maioria dos casos, permanecem invisíveis para os meios de comunicação.
Em Córdoba, entre os mais afetados pelo desmatamento se encontram as comunidades camponesas e indígenas cujo cotidiano foi radicalmente alterado. Articulados, esses atores protestam para poder continuar vivendo da apicultura, da pesca, do turismo e de todas as demais atividades que os caracterizam. “Estamos nos amparando em nossos direitos supranacionais, que são convênios internacionais como o 169 da Organização Internacional do Trabalho, segundo o qual qualquer projeto deve informar às comunidades onde será realizado. Estamos reivindicando nosso direito ao território e ao livre desenvolvimento”, afirma o cacique Marcos Pastrana. Originário das comunidades aborígenes de Tafí del Valle, em Tucumán, o cacique afirmou que falar de meio ambiente é falar de proteção da terra e direito ao trabalho – que não tem por que se restringir ao industrial ou ao assalariado. “Estamos nos capacitando e nos solidarizando com todas as comunidades em conflito e em luta. Esta é uma luta de sobrevivência. De sobrevivência como povo. Não é só mais uma luta sindical ou política, é de vida”, conclui.
Horacio Machado explica que “o que está em crise é o modelo civilizatório a partir do qual o capitalismo pensou e impôs as relações hegemônicas de articulação entre natureza e sociedade”. Para ele, “os desafios passam por recriar as formas de habitar a terra e produzir os meios de vida, e não só por estatizar os recursos sem tocar as formas de exploração”.
Dentro das tentativas de articular redes e coletivos para a defesa de bens comuns, uma das experiências mais significativas foi a criação da União de Assembleias Cidadãs (UAC), que se apresenta como “um espaço de intercâmbio, discussão e ação conformado por assembleias, grupos de vizinhos autoconvocados e organizações autônomas dos partidos políticos e do Estado, reunidos em defesa dos bens comuns, da saúde e da autodeterminação dos povos, seriamente ameaçados pelo saque e contaminação que o avanço de diferentes empreendimentos econômicos vai deixando quando passa”. A UAC nasceu com o propósito de articular e potencializar as diferentes lutas que nos últimos anos emergiram em todo o país para repudiar o avanço sistemático desses empreendimentos destrutivos, como no caso da exploração de minerais.6 Ao mesmo tempo, vão resgatando certas práticas participativas e uma concepção particular de relação entre comunidade e natureza.
A dívida ecológica
Apesar da defesa dos recursos naturais como bem comum ter adquirido maior visibilidade a partir do final do século XX, as desigualdades ambientais formam parte das origens da ordem moderno-capitalista. “O imperialismo ecológico e o racismo ambiental são uma dimensão constitutiva do ‘desenvolvimento’ capitalista e, por isso, este tipo de conflito foi uma constante ao longo da história moderna. O que são novas e mutáveis são as formas em que se manifestam tais conflitos, os atores e as forças sociais em luta, as estratégias e tecnologias de expropriação e de resistência implicadas”, analisa Machado.
No caso dos desmatamentos, seu avanço está vinculado diretamente a um modelo extrativista neocolonial centralizado na expansão das mineradoras e petrolíferas – principalmente nos países da América Central e na floresta andino-amazônica –, no avanço da monocultura ligada à celulose, nas regiões de grandes recursos hídricos – bacia do Orinoco, Amazonas, Aquífero Guarani, bosques austrais patagônicos – e da proliferação do modelo de agronegócio em quase todos os países da América Latina.
Mas, para entender a real dimensão deste processo, Machado propõe considerar o desmatamento como um ato de apropriação ambiental através do qual, em um instante, “o capital que o realiza se torna proprietário de centenas de anos de processos ambientais ‘condensados’ na riqueza de nutrientes desses solos, que não voltarão mais a se reintegrar aos circuitos energéticos de tais ecossistemas. Liberados de sua ‘cobertura vegetal’, esses solos perdem rapidamente nutrientes e em poucos anos ficam literalmente esgotados. Com os ‘grãos exportados’, acabam também os nutrientes naturais produzidos em ciclos ecológicos de longa duração e os enormes insumos hídricos requeridos por tais cultivos, ‘recursos’ que os capitais usam, mas pelos quais não pagam. Isso sem mencionar no que implica a perda de biodiversidade, em grande medida irreversível, e a geração de riscos ambientais e alterações do habitat e da saúde das populações”7.
Nesse sentido, Adrián Scribano, coordenador do Programa de Estudos de Ação Coletiva e Conflito Social do Centro de Estudos Avançados da Universidade Nacional de Córdoba, afirma que o desflorestamento “expropria o ar, a terra e a água” e reduz as possibilidades de todos – inclusive dos defensores do desmatamento – “de ter ar limpo, água limpa e terra para a produção de alimentos”. O outro tema a considerar, segundo o investigador, são as reservas hídricas. Efetivamente, o uso destas reservas para fins de mineração ou agroexportação “afeta diretamente os processos de biodiversidade e de construção de possíveis defesas contra a degradação do sistema”.
Mas, diante destas políticas, Machado explica que mesmo dentro da retórica antineoliberal que caracteriza os governos latino-americanos identificados como “progressistas”, os Estados da região não modificaram em absoluto as “políticas de saque” instaladas nos anos 1990. Pelo contrário, “continuam apoiando-se em um modelo primário exportador que não é ambientalmente sustentável e que é enganosamente “redistributivo”. Certos governos apresentados como “radicais” – Venezuela, Bolívia e Equador –, da mesma forma que algumas medidas críticas do kirchnerismo na Argentina, avançam um pouco mais em termos de colocar limites à desnacionalização da economia e lutam pelo controle estatal dos recursos. “Mas isso é, de todas as formas, insuficiente enquanto não se desmonte o paradigma extrativista.”
*Carina Ambrogi e Ximena Cabral são jornalistas