A negação climática do governo de Jair Bolsonaro
Enquanto alertas de urgência repercutem em todo o mundo, no Brasil o presidente Jair Bolsonaro recebe convites entregues por “carreatas” de tanques de guerra e blindados altamente poluidores, além de promover com frequência “carreatas” de motos para demonstrar apoio político, em uma contradição evidente com a política de controle de Gases Efeito Estufa
O Relatório do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), divulgado neste mês de agosto, traz novos dados alarmantes e demonstra a urgência na redução das emissões de Gases Efeito Estufa (GEE). Segundo Alok Sharma, representante do Reino Unido que está liderando a COP 26, a cúpula do clima que será sediada em novembro deste ano em Glagow, “este é o momento! É o mais forte aviso sobre como o comportamento humano está acelerando o aquecimento global de forma alarmante”.
Segundo os cientistas do IPCC, os eventos climáticos que vêm sendo registrados na Europa, na América do Norte e na África são uma amostra do que está por vir, e o extrapolamento do aquecimento global em 1,5 graus Celcius previsto a partir de 2030 levaria a humanidade aos limites da segurança, às portas de uma verdadeira catástrofe.
Enquanto alertas de urgência repercutem em todo o mundo, no Brasil o presidente Jair Bolsonaro recebe convites entregues por “carreatas” de tanques de guerra e blindados altamente poluidores, além de promover com frequência “carreatas” de motos para demonstrar apoio político, em uma contradição evidente com a política de controle de Gases Efeito Estufa (GEE). A situação é insólita. As “motociatas” poluidoras pleiteiam um retrocesso ambiental e tecnológico, visando trazer de volta o voto impresso, sem justificativa plausível e cujo banimento, desde 1996, poupou 168.800 árvores ao economizar 8.440 toneladas de papel, uma produção que consumiria 844 milhões de litros de água e energia equivalente a 160 gigawatt-hora.
O governo Bolsonaro apresenta um transtorno de déficit de natureza. Isso não se restringe à falta de valores ambientais. Desde o início de sua gestão, assistimos a uma inexplicável simpatia por interesses degradadores do agronegócio, da grilagem, do garimpo e da extração de madeira – e que vem devastando a Floresta Amazônica.
Trata-se da velha fórmula de facilitação política. Para favorecer sua base política, o governo Bolsonaro neutralizou a aplicação de multas ambientais e promoveu o desmantelamento da legislação e da fiscalização. Esses fatores ampliaram a criminalidade na Amazônia, com perdas na massa florestal e na biodiversidade.
Além disso, o governo e sua bancada de apoio no Congresso Nacional vêm agindo no parlamento para eliminar requisitos basilares do licenciamento ambiental, assim como para anistiar grilagens de terras da União, por meio de uma regularização fundiária sem critérios, que só fará aumentar o sentimento de impunidade na Amazônia. Não resta dúvida de que o governo Bolsonaro se nega a considerar a obrigatoriedade da proteção ambiental em que pesem as determinações na Constituição Federal.
Para a psicologia, a negação da realidade é um transtorno que provoca mais distúrbios internos e gera efeitos sociais nocivos. Negar a realidade é represá-la interiormente, gerando ansiedade e uma série de efeitos comportamentais negativos. No plano social, quanto mais a sociedade e os governos negam e se afastam do meio natural, mais disfuncional se tornam, aproximando-se da autodestruição, fruto de um profundo vazio de valores naturais. Esse estado de coisas representa fortes implicações antissociais, uma vez que negar os princípios que protegem a sobrevivência da espécie humana é negar o pacto intergeracional que garante a sobrevida civilizatória.
Permitir devastação em grande escala é considerado como um processo de ecocídio, conceito estabelecido no Estatuto de Roma e que orienta o Tribunal Penal Internacional (TPI): “Para os efeitos do presente Estatuto, entender-se-á por ecocídio qualquer ato ilícito ou arbitrário perpetrado com consciência de que existem grandes probabilidades de que cause danos graves que sejam extensos ou duradouros ao meio ambiente”.
No cenário internacional, a situação climática ganha absoluta priorização, como comprova o acordo fechado na última semana nos Estados Unidos entre democratas e republicanos, que destina para a infraestrutura climática um valor recorde de dezenas de bilhões de dólares para prevenir inundações, incêndios florestais, prover água para regiões afetadas pelas secas e relocação de populações de áreas vulneráveis.
Negar a urgência da mudança climática é negar a realidade, vulnerabilizar a sociedade brasileira, impor perdas ao patrimônio ambiental público, além de perda de imagem e piora na relação com a comunidade das nações, sem contar os prejuízos para a balança comercial.
A gestão Bolsonaro vem se mostrando insensível à boa inserção do Brasil no cenário internacional. O país não só perdeu sua liderança e protagonismo na área ambiental internacional. Passou a ser considerado o pior vilão do ambiente e do clima.
A devastação da Amazônia no mês de julho acumulou 1.416 km², área equivalente a cinco cidades de São Paulo. O governo caminha para um habitual saldo anual aproximado de 10.000 km², alheio ao compromisso assumido no acordo climático de Paris, que era de limitar o desmatamento a um máximo de 3.000 km², valor que deveria decrescer até zerar o desmatamento em 2030. Nesses dois anos e meio de governo a destruição extrapolou o acordo em mais de 17 mil km².
As consequências do desgaste são inegáveis. O ex-ministro de Meio Ambiente Ricardo Salles pediu afastamento por causa de investigações de facilitação à exportação ilegal de madeira. Diante da pressão internacional, o governo tenderá a promover uma simulação de mudança, o que é na prática improvável dentro dos quadros políticos que o compõem, muitos dos quais caracterizam fortes conflitos de interesse. Também não goza de credibilidade internacional, pois já ficou caracterizado, por mais de uma vez, que promete e não cumpre. Mudanças estruturais significariam um divórcio dos interesses ruralistas retrógrados que constituem a principal base do governo. Difícil imaginar que esses interesses possam vir a ser contrariados, diante da ambição, a qualquer custo, frente ao processo eleitoral de 2022.
Para o Brasil, no atual cenário climático e de devastação sem controle, seria desejável que Bolsonaro reconhecesse sua inaptidão e renunciasse. Mas as demonstrações de alienação continuam e o mandatário tem sinalizado até mesmo com a perspectiva de um golpe político. Portanto, só deixará a Presidência da República se for compelido a fazê-lo. Um processo de impeachment é uma solução factível à luz dos princípios constitucionais que regram a boa administração e a obrigatoriedade estatal de zelar pelo patrimônio ambiental público.
A insustentável pegada ambiental do governo Bolsonaro se associa a esteios questionáveis. Há indícios fortes de um aliciamento que encontra eco nos meios políticos e funcionais incompetentes e ansiosos por poder, ignorando que no presente cenário qualquer vantagem será ilusória e limitada, uma vez que a história certamente trará a verdade à luz e fará justiça.
Esse apoio insólito se estende do silêncio inaceitável da Procuradoria Geral da República à militarização de funções-chave, que inclui a fiscalização da Amazônia, para a qual vem emergindo um aparato paramilitar miliciano, com vistas a uma atuação social e politicamente direcionada. Ressalte-se, em complemento, os ataques constantes ao Judiciário, último reduto dos três poderes que resiste à incúria governamental.
É preciso evitar a ausência de memória, de uma perspectiva histórica. É preciso relembrar, em que pesem as evidentes limitações políticas de Bolsonaro e seu apoio minguante, sobre as tendências que marcaram a ascensão do totalitarismo contemporâneo, como ocorreu no caso do social-nacionalismo. Erbert Marcuse demonstra como a dominação por aparatos impostos sobre as relações sociais e pessoais leva à unidimensionalidade totalitária, onde as consequências são atrofias sociais impostas à gestão participativa, que é elemento regulador das pressões autoritárias e para a defesa da coisa pública. É preciso reavivar as forças vivas e independentes da sociedade, motivadoras e estimuladoras da defesa dos interesses difusos e das metas de qualidade de vida com perenidade, com respeito aos limites naturais e às futuras gerações.
Um governo que vive em estado de negação só poderá colher desequilíbrio. As compensações irracionais da ânsia por poder acirram cada vez mais a disfuncionalidade protagonizada pelo totalitarismo e o negacionismo ambiental, provocando o sufocamento da participação social.
No plano global e histórico o governo Bolsonaro representa a própria disfuncionalidade que motiva o Antropoceno. É resultante de um caminho civilizatório construído à revelia da condição natural. Essa dissociação do ambiente, seja por desconhecimento, alienação ou interesses inconfessáveis, deve ser percebida e analisada com foco nas raízes culturais de nossa disfuncionalidade como sociedade. Trata-se da representação de uma lacuna evolutiva, retratada na manutenção da ignorância, na perda de capacidade de transformação e na falta das mudanças que já deveriam ter ocorrido na esfera da consciência humana e nas dimensões da gestão pública.
O estado de deslealdade para com a natureza na qual estamos inseridos só faz produzir um modelo econômico retrógrado e alienado para a compreensão dos limites naturais. Como consequência, permanece a inadequação da matriz energética, a dinâmica predatória da ocupação do território e um modelo que se orienta por indicadores de riqueza dissociado da realidade natural e das necessidades sociais.
Isso tudo nos leva a considerar a necessidade imperativa de uma mudança estrutural, que permita um aumento da consciência pública sobre as nossas conquistas sociais e constitucionais, de forma a livrar a sociedade brasileira da rota destrutiva de governos irresponsáveis.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).