A Nova agenda da transição
Além das questões de segurança e de geopolítica regional, vários dirigentes tunisianos avaliam que o verdadeiro desafio é de ordem social e econômica. Mal o ditador havia fugido, um número inacreditável de reivindicações veio à tona, em especial no setor da habitação, que apresenta um déficit antes desconhecido.Akram Belkaïd
Nós estamos finalmente livres, mas a partida ainda não terminou e nada está decidido. A Tunísia corre o risco de reincidir nos seus pecados e sofrer uma recaída.” Num terraço de um barzinho em La Marsa, na periferia norte da capital, o jovem jornalista resume o pensamento dos seus concidadãos. Em todas as famílias e em todos os veículos de comunicação, a queda do regime, o mandato de prisão emitido contra Ben Ali e seus familiares, a quase dissolução do antigo partido do governo, a Reunião Constitucional Democrática (RCD) e a promessa de eleições livres e transparentes tornaram-se objetos de comentários incessantes. Contudo, as preocupações permanecem.
Muito além das dificuldades cotidianas, a preocupação principal diz respeito à insegurança. Após terem marcado presença em qualquer encruzilhada nas grandes cidades e até mesmo nas aldeias mais remotas, as forças policiais parecem ter se volatilizado. A sua quase ausência surpreende e perturba a todos. Os atos de violência vêm se multiplicando.
“A clientela do antigo regime está querendo que fiquemos com saudade do Estado policial! É a mesma estratégia da terra arrasada que eles vêm conduzindo desde a queda de Ben Ali”, comenta indignado um livreiro da capital. Para ele, essa situação estremece a transição democrática, forçando a população da classe média a voltar-se para o exército para que este proteja a paz civil. Chefe do Estado-maior, o general Amar goza de imensa popularidade desde que as suas tropas se recusaram a atirar nos manifestantes e impediram as milícias de Ben Ali de espalhar o fogo e o sangue pelo país. O homem repetiu em várias oportunidades que a sua instituição respeitaria a vontade do povo e não confiscaria o poder. Mas, ao mesmo tempo, muitos tunisianos não estão dispostos a lidar com as divisões sangrentas que arrasaram a vizinha Argélia; eles poderiam se sentir mais tranquilos com o retorno de certa forma de autoritarismo.
É difícil descobrir por que as forças de polícia abandonaram o terreno. Em certos casos, foi por medo de represálias. Em outros, por causa da inexistência de instruções claras por parte do governo provisório. Obviamente, alguns serviços foram desmantelados ou desarmados, entre os quais a antiga guarda presidencial. Mas a falta de transparência das forças de segurança era tanta que até agora um bom número de milícias paramilitares ainda não foi identificado. Diante disso, diversas personalidades políticas e sindicais estão pressionando o governo provisório para que dissolva por completo o aparelho de segurança, com um objetivo prioritário: impedir que uma parte dos cerca de 400 mil homens que até então estavam empregados pelo Ministério do Interior – sem contar os delatores – se bandeie para o campo benalista.
Alguns setores defendem uma anistia parcial, mas vários dirigentes políticos tunisianos, entre os quais Moncef Marzouki e o islâmico Rached Ghanouchi, não abrem mão da prisão e do julgamento, na Tunísia, de Ben Ali e da sua mulher, Leila Trabelsi. A segunda maior preocupação dos tunisianos é de ordem geopolítica e diz respeito aos seus dois principais vizinhos. Desde 14 de fevereiro, a Líbia também pegou fogo, o que mudou por completo o cenário regional. No outro vizinho, outras dúvidas. O silêncio das autoridades argelinas não passou despercebido. Até a queda de Ben Ali, os veículos de comunicação oficiais ou próximos ao poder minimizaram a amplidão da contestação. Isso quando não a ignoraram por completo.
Além das questões de segurança e regionais, vários dirigentes tunisianos avaliam que o verdadeiro desafio é de ordem social. Cada dia que passa se revela mais o caráter artificial da boa saúde econômica. Mal o ditador havia fugido, um número inacreditável de reivindicações veio à tona. Embora a Tunísia costumasse ser apresentada como um dos raros países árabes poupados pela crise da habitação, a verdade é que uma parte da sua população enfrenta, sim, dificuldades para encontrar um lugar para morar. Desde meados de fevereiro, os canais de TV vêm noticiando a multiplicação de construções selvagens em propriedades abandonadas ou que pertencem supostamente a antigos responsáveis foragidos ou presos. O fenômeno adquiriu uma amplidão tamanha que o Ministério do Interior advertiu esses “ocupantes indevidos” e fez um apelo à população para que esta respeite o direito de propriedade. Segundo um executivo do Banco Central, o país precisaria construir 110 mil moradias sociais de modo a atender à demanda mais urgente; mas esse número não leva em conta as necessidades dos jovens desempregados obrigados a viver na casa dos seus pais.
Os salários e as condições de trabalho também mobilizam a sociedade. No período de 1º a 15 de fevereiro, foram registrados não menos de uma centena de conflitos sociais, inclusive em empresas que eram consideradas imunes a situações dessa natureza, como a Tunis Air. Em todos eles, as reivindicações baseiam-se nos mesmos três pontos: a demissão das diretorias consideradas muito comprometidas com o antigo regime, aumento dos salários e a melhorias das condições de trabalho. Toda vez, as autoridades recomendam paciência e responsabilidade.
Neste campo, o governo caminha num terreno minado: a contestação social questiona radicalmente o modelo econômico como um todo. Com efeito, o movimento também envolve as empresas inteiramente voltadas para a exportação. Com salários até vinte vezes inferiores àqueles praticados na Europa, os operários do setor têxtil, das fábricas de equipamentos e peças do setor automobilístico, das firmas de componentes eletrônicos e até mesmo do setor aeronáutico decidiram fazer ouvir suas reivindicações e obter aumentos de salários imediatos. O mesmo ocorre nos centros de chamadas e nas sociedades de terceirização administrativa das empresas europeias, entre outras dos bancos, assim como nas sociedades de auditoria e de contabilidade.
A demanda social é tão grande que a União Geral Tunisiana do Trabalho é desde já um dos principais protagonistas da transição. O governo provisório não toma nenhuma decisão importante sem antes consultar a central sindical; até mesmo a lista dos novos governadores e embaixadores teria sido submetida aos seus dirigentes. Com isso, a Tunísia pode estar finalmente seguindo outro rumo que não o de ser conhecida como o país mais “barato” e submisso no sul do Mediterrâneo.
Akram Belkaïd é jornalista.