A nova Ordem Internacional Policêntrica - Le Monde Diplomatique Brasil

RÚSSIA E CHINA

A nova Ordem Internacional Policêntrica

por Pedro Costa Júnior
6 de abril de 2022
compartilhar
visualização

A Declaração Conjunta feita por Rússia e China aponta diretamente para a Otan e estabelece limites claros para sua atuação nesta Nova Ordem Mundial

A queda do muro de Berlim em 1989 e o desmantelamento da URSS em 1991 deram lugar ao fim da Ordem Internacional Bipolar que imperou sobre o mundo durante quase meio século. Como “Ordem Internacional”, podemos entender, a partir da literatura da História das Relações Internacionais, essencialmente, um determinado conjunto (em movimento) reunindo normas, instituições e estruturas de autoridade que modificam, limitam e dirigem o comportamento dos atores que compõem o Sistema-Mundo durante um determinado período.

Há dois movimentos históricos inequívocos nas transições e estabelecimento de uma determinada Ordem Mundial: a caneta e a bomba, isto é, a guerra e a paz. Assim se deu na “Paz de Westfália”, em 1648, com o desfecho das nominadas Guerras Religiosas. Em Viena, em 1815, após as Guerras Napoleônicas, e o chamado “Concerto Europeu”. Na denominada “Paz de Versalhes”, em 1919, no desenlace da I Guerra Mundial. Ou ainda em Yalta, Potsdam e São Francisco, em 1945, com o fim da II Grande Guerra. Após o colapso soviético, em 1991, o bombardeio dos EUA ao Iraque, na I Guerra do Golfo, estabeleceu através do poder das armas, os novos rumos no campo internacional.

Diante deste quadro, a partir dos anos 1990, os Estados Unidos e a União Europeia priorizaram em sua agenda geopolítica a “administração” da desmontagem do “império russo”, devido às suas consequências econômicas e ao antigo desafio geopolítico da Europa Central. Os norte-americanos apressaram a expansão da Otan e assumiram rapidamente as posições militares deixadas pelo exército soviético na Europa Central. Os Estados Unidos e seus aliados ocidentais apoiaram explicitamente a autonomia dos Estados da antiga “zona de influência” soviética e promoveram ativamente o desmembramento do território russo. A começar pela Letônia, Estônia e Lituânia, e seguindo pela Ucrânia, Belarus, pelos Bálcãs, Cáucaso e países da Ásia Central. Apoiaram a independência do Kosovo, pressionaram a implantação de seu “escudo antimísseis” na Europa Central e passaram a armar e treinar abertamente os exércitos da Ucrânia, da Geórgia e dos países da Ásia Central, desconsiderando que a maior parte desses países pertenceu ao território russo, durante os últimos três séculos. A despeito da dissonância e alerta de respeitadas vozes internas como George Kennan, o “teórico da contenção”, que sentenciou como a expansão da Otan para o leste europeu seria sua tragédia e Henry Kissinger, defensor do respeito às nominadas “zonas de influencia” das grandes potências.

Depois da humilhação dos anos Yeltsin. Neste novo século assistimos ao renascimento russo. A Rússia vem praticando explicitamente uma política de acréscimo de poder. A reação russa se iniciou com o governo de Vladimir Putin, em 2000, e sua reorientação estratégica. O presidente russo centralizou o poder. Reconstituiu o Estado e a economia russa, reerguendo seu complexo militar-industrial e nacionalizando seus vastos recursos energéticos. Articulou a construção dos BRICS. Detentor do maior arsenal nuclear do planeta, o novo governo russo alertou aos Estados Unidos para a possibilidade de uma nova corrida nuclear, caso continuassem com seu projeto de desenvolvimento de um “escudo antibalístico” na Europa Central – mais precisamente na Polônia. Em agosto de 2007, Putin cravou uma bandeira russa de titânio em águas internacionais nas profundezas do Ártico. Em 2008, invadiu a Geórgia. Em 2014 anexou a Criméia. Coloca-se como um entrave a qualquer intervenção ocidental na Síria e garantiu seu aliado Bashar al-Assad no poder. E desde então tem estreitado seus laços estratégicos com a China, especialmente, após as sanções impostas por EUA e União Europeia, posteriormente a anexação da Criméia.

parceria
Xi Jinping e Vladimir Putin (Créditos: Alexei Druzhinin/Kremlin)

No dia 4 de fevereiro deste ano, de 2022, estrategicamente na abertura da XXIV Olimpíada dos Jogos de Inverno, Xi Jinping e Vladimir Putin, se reuniram em Pequim. Na ocasião, além de participarem da cerimônia de abertura dos jogos, os dois chefes de Estado divulgaram uma “Declaração Conjunta” que chama a atenção tanto pela assertividade como pela amplitude.

Os dois países anunciam uma aliança sem precedentes na história: “As novas relações interestatais entre Rússia e China são superiores às alianças políticas e militares da época da Guerra Fria. A amizade entre os dois Estados não tem limites, não há áreas ‘proibidas’ de cooperação”, diz o texto.

O longo documento trata de praticamente todos os aspectos relevantes da política internacional, democracia e direitos humanos, pandemia, defesa da paz, revoluções coloridas, desenvolvimento compartilhado e sustentável, combate às mudanças climáticas, terrorismo, governança da internet, guerra comunicacional, etc.

Em essência, o conjunto do documento representa uma candente defesa do multilateralismo e de uma nova Ordem Internacional Policêntrica. Revela uma sólida intenção dos dois países em unidade, contestarem abertamente a Ordem Internacional.

Pós-Guerra-Fria, atlanticista e anglo-saxônica, assim como o fim da hegemonia norte-americana. Estabelece que o Sistema-Mundo passa por uma transformação em sua arquitetura de governança e Ordem Mundial. Conforme o texto, “a humanidade está entrando em uma nova era” e “assiste ao desenvolvimento de processos e fenômenos como multipolaridade, globalização econômica, advento da sociedade da informação, diversidade cultural, transformação da arquitetura de governança global e Ordem Mundial”.

A carta aponta diretamente para a Otan e estabelece limites claros para sua atuação nesta Nova Ordem Mundial. “As partes opõem-se a um maior alargamento da Otan e apelam à Aliança do Atlântico Norte para que abandone as suas abordagens ideologizadas da Guerra Fria, respeite a soberania, a segurança e os interesses de outros países. As partes se opõem à formação de estruturas de blocos fechados e campos opostos na região da Ásia-Pacífico e permanecem altamente vigilantes sobre o impacto negativo para a paz e a estabilidade na região da estratégia Indo-Pacífico dos Estados Unidos”, diz o documento.

Assinala para um inexorável deslocamento “euroasiático” do poder: político, econômico, tecnológico, militar, diplomático, cultural, esportivo… A expressão de tal força, além da própria parceria e documento seria dentre outros, o projeto de desenvolvimento chinês das “Novas Rotas da Seda”, a maior integração euroasiática e Organizações Multilaterais como o G20, o Asean, os Brics e em especial, a Organização para Cooperação de Xangai (SCO). Já no final, uma das conclusões do texto evidencia que “a Rússia e a China pretendem fortalecer de forma abrangente a Organização para Cooperação de Xangai (SCO) e aprimorar ainda mais seu papel na formação de uma Ordem Mundial Policêntrica baseada nos princípios universalmente reconhecidos do direito internacional, multilateralismo, segurança igualitária, conjunta, indivisível, abrangente e sustentável”.

A História das Relações Internacionais demonstra que toda quebra de uma Ordem Mundial estabelecida, implica no uso da força. Vinte dias após a visita de Putin a Xi Jinping, em Pequim, e a divulgação deste documento sino-russo que contesta clara e inequivocamente a Ordem Internacional Pós-Guerra Fria, a Rússia invade a Ucrânia. E, pelo poder das armas, claro, suportado pelo seu grande aliado, a China, inaugura um novo tempo do mundo.

Uma Nova Ordem Internacional Policêntrica, dando fim ao expansionismo infinito da Otan e da hegemonia do EUA, que se perpetuaram por trinta longos anos.

 

Pedro Costa Júnior, cientista político e pesquisador da USP. Autor do livro “Colapso ou Mito do Colapso?” (Editora Appris, 2019).

 



Artigos Relacionados

REFORMA DA PREVIDÊNCIA NA FRANÇA

Um povo de pé

Edição 189 | França
por Benoît Bréville
A CRISE DA CULTURA

A escuta seletiva de “escolhidos” pelo poder público em oposição do conselho de cultura e da sociedade

por Rodrigo Juste Duarte com colaboração de pesquisadores da rede do Observatório da Cultura do Brasil
A CRISE DA CULTURA

Denúncias ignoradas de conselheiros de cultura indicam coação no Consec

por Rodrigo Juste Duarte com colaboração de pesquisadores da rede do Observatório da Cultura do Brasil
SANEAMENTO

Sabesp: a destruição de um ícone paulista

Online | Brasil
por Amauri Pollachi
FUNDAMENTALISMO RELIGIOSO

Juntando os cacos: os evangélicos na ressaca do bolsonarismo

Online | Brasil
por Rafael Rodrigues da Costa
GUERRA QUÍMICA

Mais de 70% dos agrotóxicos utilizados no Brasil são consumidos no Cerrado

Online | Brasil
por Campanha Nacional em Defesa do Cerrado
NOVO ENSINO MÉDIO

Em 2016, os estudantes já sabiam o desastre que seria

Online | Brasil
por Antonia Malta Campos
NOVO PRONASCI

Oportunidade de ampliar a participação do Estado na vida das comunidades

Online | Brasil
por Felipe da Silva Freitas