A Rússia e a China na guerra contra o Ocidente
É preciso observar como o movimento imanente da economia chinesa vai reagir frente às consequências políticas e econômicas do conflito na Ucrânia. A integração da China à economia global impedirá Pequim de ajudar a Rússia?
A guerra na Ucrânia e o consequente bloqueio econômico total da Rússia levado a cabo pelo Ocidente é o maior choque na política mundial desde, pelo menos, o fim da Guerra Fria. Do ponto de vista da unificação ocidental e aplicação das sanções, poderíamos dizer que já vivemos uma atmosfera de Terceira Guerra Mundial contra a economia russa.
O efeito mais imediato consistirá em uma reformulação totalizante das relações econômicas externas da Rússia e do modelo capitalista russo atual. Também não poderíamos retirar do horizonte o prolongado conflito político-militar entre Estados Unidos e Rússia no Leste Europeu.
Esses fatores irão impactar diretamente sobre a situação no Leste Asiático no interior do crescente confronto entre EUA e China. Pequim, a longo prazo, poderá ser o único centro do poder mundial que se beneficiará da tragédia ucraniana. Provavelmente os acontecimentos na Ucrânia irão determinar o sucesso da China no confronto com os EUA.
Frente às consequências da guerra na Ucrânia: qual é o grau de paridade política e econômica entre Pequim e Moscou enquanto bloco unificado na luta contra o império estadunidense?
A posição política da China sobre a guerra na Ucrânia
Para a China, a soberania e a integridade territorial de todo e qualquer país deve ser respeitada. O país acredita que a segurança dos Estados-nação não pode ser ameaçada pela expansão e escalada de blocos militares. Tendo em vista as cinco expansões da Otan, o país asiático acredita que as preocupações russas sobre a segurança devem ser levadas a sério e respondidas de forma adequada. Segundo Pequim, as partes envolvidas no conflito deveriam exercer uma política de contenção e frear a escalada dos conflitos, a fim de evitar a crise humanitária e as mortes da população civil ucraniana.
Pequim está de acordo com qualquer esforço diplomático que tenha como intenção a solução pacífica do conflito. Contudo, compreende que as tensões entre Moscou e Kiev têm um contexto histórico-cultural complexo. Para a China, a Ucrânia deveria ser uma ponte de mediação pacífica entre o Oriente e o Ocidente, e não uma ponte bélica entre essas potências. Os chineses também apoiam o diálogo entre União Europeia e a Rússia sobre um plano da segurança europeia.
A relação econômica russo-chinesa e as contradições do capitalismo global
Conforme se desenrolam os acontecimentos da crise na Ucrânia, as empresas e bancos chineses que operam no mercado global devem levar em consideração o possível impacto negativo das sanções dos EUA e da União Europeia sobre eles.
Os EUA estão determinados a preservar o estatuto do dólar como a única moeda mundial de reserva. Para manter tal status, os EUA precisam criar mecanismos que garantam o resto do planeta a usar o dólar, e mais, também precisam garantir que não exista outra alternativa. Quando a política belicista estadunidense impõe sanções a outros países que impossibilitam a utilização do dólar – o que eles estão fazendo?
Nenhum país pode impor à outra nação fazer algo ao mesmo tempo que proíbe de fazê-lo. Esta é uma regra básica de contradição lógica. Os EUA acreditam mesmo que os países vão aceitar seus ataques e vão morrer de fome sem emplacarem uma resposta efetiva?
O mais curioso é que Washington sabe muito bem que tanto a China, quanto a Rússia têm como horizonte estratégico a substituição do dólar enquanto a moeda única de reserva no capitalismo global. Também não é nenhum segredo que Rússia e China estão adquirindo grandes quantidades de ouro há anos.

Cabe lembrar que, em 2010, o sistema de negociação chinês e a Bolsa de Valores de Moscou entraram em um acordo para negociarem no par de moedas yuan-rublo. Dessa maneira, criou-se condições para a transferência de todo o comércio entre os dois países para as moedas nacionais, principalmente, para o yuan devido à volatilidade do rublo.
Observa-se que, em 2022, a presença do rublo no mercado bilateral alcançou a casa dos 7%, já o Yuan – 17%. Pequim tem como objetivo internacionalizar sua moeda com a expectativa de que possa ser usada para liquidações entre não residentes da China.
Um dado importante é que a presença da economia chinesa no comércio russo atingiu cerca de 18% em 2020 e 2021. A China se configura como o segundo parceiro comercial da Rússia depois da União Europeia. A participação da economia da União Europeia no capitalismo russo foi de 38% em 2020. Na verdade, desde 1999, a presença da China vem crescendo de modo constante. Por outro lado, a presença da União Europeia vem diminuindo de forma gradual desde a segunda metade da década de 2000.
No entanto, de acordo com o prolongamento do conflito na Ucrânia, iniciado em 24 de fevereiro de 2022, os chineses vêm adotando uma política econômica cautelosa. Alguns bancos chineses (não todos) se recusaram a negociar o par rublo-yuan. Além disso, há bancos na China, os quais anunciaram que não vão financiar a compra de matérias-primas russas e as instituições financeiras internacionais nas quais a China tem uma influência muito importante, como por exemplo o Novo Banco de Desenvolvimento, cessou a cooperação com a Rússia.
Isso não significa um desligamento completo entre os respectivos mercados. Com as sanções contra a Rússia pela UE, na verdade, podemos vislumbrar um processo de reorientação de Pequim, tornando a China o principal parceiro econômico nos próximos dois ou três anos de Moscou. Uma consequência disso tudo é que a economia russa voltada para a China pode criar, até certo ponto, uma espécie de escudo e se proteger de uma influência mais incisiva do Ocidente.
Nos próximos anos provavelmente podemos esperar uma alavancada das exportações chinesas para a Rússia, muito mais acentuadas do que se encontravam antes da guerra. Com claro, um crescimento muito mais modesto das exportações russas para o mercado chinês. No mundo comercial russo-chinês haverá sem sombras de dúvidas um modesto desequilíbrio relevante em favor de Pequim.
China e Rússia têm realizado uma colaboração econômica relevante nos últimos anos para desenvolver uma infraestrutura de segurança para o comércio bilateral entre os dois países, e este trabalho vem funcionando durante os últimos anos.
Tudo indica que, preparando-se para um duro conflito com o Ocidente, a Rússia aumentou drasticamente a participação do yuan em suas reservas de ouro e divisas. Segundo algumas estimativas, apenas os títulos do governo da RPC, denominados em yuan, o Banco da Rússia possui o equivalente a 140 bilhões[1] de dólares. Indiretamente, entre outras coisas, isso, aliás, pode indicar que o volume atual de sanções já era esperado pelo Kremlin há muito tempo.
O capitalismo chinês não é algo muito simples de se entender. E não se pode acreditar que a relação da China com a Rússia trata-se de uma amizade eternamente fiel. O que prevalece são os interesses políticos e econômicos.
Do ponto de vista estratégico há uma cisão combinada e desigual. Nas questões imediatas, as preocupações econômicas chinesas vão prevalecer. As questões mais estratégicas a longo prazo – de natureza política – são muito lucrativas para a China, a saber, nuclearização da tese russa de um novo mundo multipolar.
Cobrindo um campo de atuação contra um adversário em comum, a China se encontra na batalha econômica. A Rússia fez uma ação mais ousada para frear a expansão militar do grande inimigo Russo-chinês, os EUA/Otan.
A longo e médio prazo não se pode indicar uma ruptura absoluta da relação Rússia-China. A particularidade do capitalismo chinês e a peculiaridade da sociedade russa pós-soviética não são temas fáceis de serem decifrados. Há sinais de distanciamentos e aproximações em que pese as relações econômicas e políticas entre os países. A questão que será decisiva nos próximos momentos estará contida na resposta à seguinte indagação: qual será o fator predominante para o interesse chinês – se afastar economicamente da Rússia para se proteger dos impactos das sanções ou se aproximar cada vez da Rússia para se fortalecer frente ao inimigo comum, os EUA?
Por ora, Biden cumpriu a promessa de retirar a Rússia do sistema bancário mundial Swift. Cabe acentuar que, enquanto resposta conjunta, China e Rússia já possuem uma alternativa para o modelo de realização das transferências bancárias internacionais. A alternativa consistirá em uma espécie de matrimônio entre o Mir russo e o Unionpay chinês. O capitalismo russo poderá se conectar com o mundo ocidental a partir dessa aliança do capital financeiro entre os dois países. O que parece ser uma vantagem do capitalismo chinês que poderá expandir a exportação de capitais, enquanto os meios de transmissão do capitalismo imperial estadunidense perdem espaço. O Unionpay chinês se expande frente à retração do sistema bancário Visa e Mastercard do Ocidente.
A Alemanha, seguindo os preceitos seculares estabelecidos na teoria clássica da geopolítica anglo-saxônica de Mackinder, segue o ritual que conduziu os desfechos das duas grandes guerras do século XX. Isto é, não permitir nenhum tipo de relação amistosa, harmônica seja ela política ou econômica entre russos e alemães.
O cancelamento do Nord Stream 2 é a expressão mais explícita dessa teoria secular do imperialismo anglo-saxão. Os russos impedidos de se aproximarem dos alemães aceleram a celebração de um contrato para a construção rápida do gasoduto Soyuz Vostok (continuação do Power of Siberia – 2), que utiliza a mesma base de matéria-prima dos gasodutos para a Europa Ocidental.
Segundo o The Washington Post, a Rússia “recorreu à China em busca de equipamentos militares”. Os EUA explicitam o que todos nós já sabíamos, e passam a usar a ameaça direta à Pequim como arma geoestratégica.
É preciso observar como o movimento imanente da economia chinesa vai reagir frente às consequências políticas e econômicas do conflito na Ucrânia. A integração da China à economia global impedirá Pequim de ajudar a Rússia? Me parece que a recuperação econômica da Rússia, independente das falsas acusações e blefes da Casa Branca, dependerá mais da política econômica adotada pelo Kremlin, do que de um resgate de Pequim.
Virgínio Gouveia é doutorando em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) com estadia em andamento no Instituto de Filosofia de Moscou/ Rússia – Academia de Ciências da Rússia (Rossiyskaya Akademiya Nauk, Ran).
Referências
Bloomberg: Bank Rossii i FNB mogut vladet’ kitayskimi obligatsiyami na $140 mlrd // Rosbalt. [Bloomberg: Банк России и ФНБ могут владеть китайскими облигациями на $140 млрд]
China says it won’t join in financial sanctions on Russia // The Associated Press
MEA predupredilo o “global’nom shoke” iz-za vozmozhnykh pereboyev postavok nefti iz Rossii [МЭА предупредило о “глобальном шоке” из-за возможных перебоев поставок нефти из России]
[1] Esta não é uma informação oficial do Banco Central russo. Fonte: https://www.rosbalt.ru/world/2022/03/02/1946781.html?utm_source=yxnews&utm_medium=desktop&utm_referrer=https%3A%2F%2Fyandex.ru%2Fnews%2Fsearch%3Ftext%3D