A nova política nacional sobre drogas e as comunidades terapêuticas
No dia 5 de junho, foi sancionada a Lei n. 13.840/2019. Mesmo com vetos, ela altera o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (Sisnad), instituído em 2006, endurecendo-o e fortalecendo as comunidades terapêuticas, por um lado, e estabelecendo o fim de qualquer incentivo à Política de Redução de Danos (PRD), por outro
No mesmo ano em que a Política de Redução de Danos (PRD) completaria trinta anos1 no Brasil, temos com o atual governo federal o Decreto n. 9.761, referente à nova Política Nacional sobre Drogas (Pnad). Coincidência ou não, o fato é que o que seria um ano simbólico da fortificação de três décadas da PRD, na realidade, sistematiza seu fim como política pública. De todo modo, a assinatura de um decreto com diretrizes que potencializam a pena para o tráfico (com aumento de cinco para seis anos) e dão exclusividade à abstinência como forma de tratamento faz parte do repertório do governo desde a campanha presidencial. Os discursos já apontavam para uma política de combate ao tráfico regida pelas regras da guerra às drogas. O fato é que ainda respondemos aos objetivos destacados de uma lógica operacional do proibicionismo. Vejamos o que se altera – ou melhor, se radicaliza – com esse novo decreto.
Histórico das CTs nas políticas de drogas
As comunidades terapêuticas são instituições não governamentais, que podem ter algum vínculo religioso, e recebem usuários de drogas, com base na abstinência e no isolamento. A religiosidade é uma marca de propensão, já que, segundo pesquisa do Ipea,4 o uso da espiritualidade está em 95,6% das CTs pesquisadas como métodos e práticas terapêuticas. Isto é, ainda aquelas que não declaram alguma fé ou religiosidade têm sua condução na centralidade do cultivo de algum tipo de espiritualidade como superação do abuso de psicoativos.
Uma das principais preocupações fica a cargo da evidência dada às CTs nesse processo que se fundamenta em uma única forma de tratamento, distanciado de respaldo científico e ancorado numa lógica religiosa e com grande alcance e poder político. Isso já que atualmente elas desempenham papel central na Pnad. Nas duas últimas décadas, a política pública sobre drogas brasileira passou por importantes transformações. A Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad), criada em 1998, teve como resultado posterior a criação da então denominada Pnad, em 2002. No documento não havia nenhuma menção às CTs, e a PRD estava entre as principais diretrizes (ver tabela). Na prática, o que se viu foi um alargamento da ideia de redução de danos, que anteriormente se restringia a programas de cuidado em pacientes soropositivos. Os programas passaram a ser desenvolvidos pela saúde mental e criou-se o Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas (Caps-AD). Além disso, surgiram e ampliaram-se as ONGs que trabalhavam com redução de danos para usuários de drogas. Mesmo assim, essas instituições viviam uma situação paradoxal: apoio oficial às políticas de redução de danos e problemas para financiamento dos programas.
Paralelamente a isso, as CTs desenvolviam-se em todo território nacional. Eram apoiadas por organizações religiosas, personalidades importantes, eventos beneficentes; muitas recebiam financiamento de prefeituras e governos estaduais. Com o crescimento desse serviço e sua disseminação por todo o território nacional, passaram a se organizar em federações. A primeira e mais importante delas é a Federação Brasileira de Comunidades Terapêuticas (FEBRACT).
As CTs passaram a integrar oficialmente a Pnad em 2006. Dessa forma, tornaram-se elegíveis de subsídios públicos e benefícios fiscais, integrando oficialmente a rede pública de atenção e cuidado a usuários de drogas. Ainda que já recebessem financiamento público de estados e municípios, o governo federal iniciou seu investimento em 2011 por causa do plano “Crack, é possível vencer”. Desde então, foi aberta uma seara de discussões políticas e tramitações no Congresso em torno não só da legitimidade, mas da hegemonia do modo de tratamento para usos abusivos de psicoativos.
Nesse período, principalmente nos últimos cinco anos, salta aos olhos a força que as CTs passaram a desempenhar na Pnad, saindo do âmbito municipal e estadual e passando a atuar em escala federal e na elaboração e gestão de políticas públicas. De outro lado, houve significativa estagnação de equipamentos e iniciativas de centralidade na redução de danos. O aumento da influência de federações que representam o interesse das CTs e a significativa recessão de investimentos em redução de danos estão na base da atual mudança de paradigma da política de drogas brasileira.
Apontamentos possíveis
O isolamento de usuários de drogas em comunidades terapêuticas é, sobretudo, um problema urbano. Etnografias e estatísticas levantadas pelo Ipea revelam que a maioria dos internos são homens pobres. Por trás do isolamento e da política pública que privilegia a abstinência, está o centro da questão urbana brasileira: violação dos direitos humanos5 e marginalização social. A exposição do panorama atual realizada por pesquisadores das políticas sobre drogas com ampla experiência em espaços para tratamento, notadamente as CTs, revela que há uma mudança de paradigma em andamento na Pnad. Privilegia-se a abstinência em detrimento da redução de danos, exalta-se um modelo de tratamento coercitivo em prejuízo de um modelo individualizante, transfere-se para o sujeito a resolução de um problema social.
A internação de usuários de drogas em CTs é a inscrição nesses corpos de uma doença incurável, progressiva e fatal.6 Ao desconsiderar as diferentes interações com as substâncias, as histórias de vida e as inconstâncias individuais, o tratamento em CTs promove uma sujeição do interno ao tratamento que terá de cumprir. Disciplina, trabalho e espiritualidade compõem a rotina dessas instituições, e o não cumprimento de algum desses itens pode culminar em restrições, punições e até exclusão do tratamento.
O endurecimento da Pnad reitera a política de encarceramento em massa, principalmente da população pobre. Nos casos em que não é possível prender, ao Estado resta a alternativa de terceirizar a responsabilidade sobre esses sujeitos, internando-os em instituições que, a despeito de suas particularidades, culpabilizam e submetem os internos a uma reforma moral-religiosa.
*Beatriz Brandão e Matheus Caracho, pesquisadores de políticas sobre drogas, são, respectivamente, jornalista e doutora em Ciências Sociais pela PUC-RIO e doutorando em Ciências Sociais pela Unicamp.
1 A PRD começou no Brasil no dia 24 de novembro de 1989.
2 O PLC 37 reforça o papel das CTs, atribuindo a abstinência como eixo central no tratamento para usuários de drogas e abrindo brecha para a internação compulsória.
3 Em relação a dados e pesquisas científicas há um discurso deslegitimador, como visto na proibição da divulgação dos resultados do 3º Levantamento Nacional sobre o Uso de Drogas pela População Brasileira. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/fiocruz-assegura-qualidade-de-pesquisa-nacional-sobre-drogas-0>.
4 Ipea, Nota Técnica, n.21, mar. 2017. Disponível em: <www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=29865>.
5 Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas – 2018 / Conselho Federal de Psicologia, Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e Ministério Público Federal. No relatório foi verificado em algumas CTs fatos como: impedimento ilegal de saída voluntária do tratamento, confisco de documentos pessoais, rotina de trabalhos e orações obrigatórias.
6 Característica da adição segundo o modelo de tratamento das CTs.