A nova Rouanet
A defesa ou recusa das propostas de mudanças na Lei Rouanet apontam particularmente para a maneira pela qual ocorre a participação de empresas privadas no uso do dinheiro público, de um lado, e para os critérios de seleção e aprovação dos projetos encaminhados para captação de recursos, de outro
Como se diz em linguagem jurídica: Est modus in rebus (há um limite para todas as coisas). Esta observação vem à mente ao se verificar a acalorada discussão quanto à reformulação da Lei Rouanet, criada em dezembro de 1991 – portanto, detentora de quase duas décadas de história –, e que se configura atualmente como primordial modelo de fomento e financiamento federal ao investimento em cultura.
Nos últimos três meses acompanhamos o debate público em torno das principais modificações encaminhadas para a lei, alcunhada de Nova Rouanet, que dividiu a classe artística entre apoiadores e críticos e que permitiu verificar o posicionamento do empresariado brasileiro, maciçamente contrário às modificações. A redação final, elaborada pela equipe do Ministério da Cultura (MinC) e resultante das inúmeras sugestões advindas de consulta e discussões públicas, estará de posse do Congresso Nacional agora em julho para os trâmites de aprovação.
Ao iniciar com o acento no “limite”, quero apenas sugerir que chegamos a um esgotamento do caráter de confronto que caracterizou o debate, posto que quando se trata de matéria pública é sempre melhor predominar um mínimo de civilidade entre as partes envolvidas. Ressalto, nesse aspecto, que a condução do processo de discussão e reformulação do modelo de fomento à cultura ocorreu de maneira democrática, mobilizando a amplitude do campo cultural e envolvendo empresários, políticos, representantes de instituições, artistas, acadêmicos, meios de comunicação e demais interessados da população, constituindo um debate público digno de verdadeiro exercício de cidadania.
Por outro lado, os ânimos ficaram exaltados, como se viu em debate recente no auditório da Associação dos Advogados de São Paulo, ocorrido no dia 8 de junho. O “limite” aponta, assim, para o sentido de polarização em torno das mudanças encaminhadas para a lei de incentivo à cultura, que lembra, como mencionado em certo momento, uma luta ideológica “do bem contra o mal”. Penso que o “bem” e o “mal”, os prós e os contras acerca das mudanças, intercambiam-se numa dinâmica que torna menos discernível que aquilo que se procura é, para utilizar uma terminologia rousseauniana, “o interesse de todos e de cada um” no quesito do fomento à cultura, o bem geral – expressão da “vontade geral” – e não o “interesse comum” como confluência de interesses particulares pretensamente dirigistas, quer seja de Estado, da iniciativa privada e mesmo de produtores culturais hegemônicos. Devemos superar uma perspectiva “umbigocêntrica”.
Isso fica patente ao verificar que a defesa ou recusa das propostas de mudanças apontam particularmente para a maneira pela qual ocorre a participação de empresas privadas no uso do dinheiro público, de um lado, e para os critérios de seleção e aprovação dos projetos encaminhados para captação de recursos, de outro. Numa relação entre meios e fins – em que o meio é a captação e o fim a disponibilidade para o público de variadas obras culturais –, o fim é claramente mais importante.
Assim, há quem afirme que as medidas propostas pelo MinC não são claras ou “objetivas” e caminham para o dirigismo e a ingerência. Mas há também quem diga que não se deve imputar às empresas a responsabilidade de gestão do dinheiro público – acusando a lei, em sua base, de permitir um princípio privatista de uso do que é público.
O que sobressai dessa polêmica é que há uma forte correlação de sentido entre as críticas quanto à forma como se dá a presença da iniciativa privada (via renúncia fiscal) no uso do dinheiro público e as críticas que acusam mecanismos de controle público sobre os critérios de seleção e aprovação de projetos – critérios que, sim, devem aparecer explicitados e definidos no texto da própria lei.
Suspeito que essa correlação de sentido é ideológica em ambos os casos. E tampouco se afirma, aqui, que uma crítica anula a outra; ao contrário, percebo que uma alimenta a outra, uma vez que as posturas de ambos os lados parecem ser de mútua defesa, o que faz com que se caminhe paralelamente num mesmo sentido. E sabemos que duas retas paralelas nunca se encontrarão no espaço (e no tempo) em qualquer ponto.
Nesse aspecto, temos que desarmar os espíritos e diminuir a cólera, de maneira a voltarmo-nos para a questão do interesse público e geral, este sim o “ponto de encontro” que precisa ser avistado, evitando um festival de obviedades e conveniências partidaristas. O primordial é o debate técnico, imbuído de acento político e reforço ético.
Mudanças em pauta
É legal e legítima a consecução de uma lei de fomento mais democrática, que corrija as propaladas distorções, de maneira a assegurar, por exemplo, um ajuste – por mínimo que seja – na distribuição da produção cultural entre as várias regiões do país; que trabalhe a renúncia fiscal aliada à contrapartida empresarial; que contribua para ampliar e aprimorar o uso do Fundo Nacional de Cultura (FNC) e para efetivar o Fundo de Investimento Cultural (Ficart), que ainda não viu a luz do dia por parte da iniciativa privada.
Mas também é legal e legítimo, além de imprescindível e justo, que algumas questões sejam observadas. No caso, que o princípio democrático esteja inscrito no próprio texto da lei, não ficando para decisão a posteriori os critérios de seleção e aprovação de projetos, já que é necessário o aprimoramento na apreciação dos trâmites burocráticos; que se contribua para o interesse e a ampliação do perfil e número de empresas patrocinadoras de eventos (e este ponto não é irreal, pois seria objetivado por meio de pactos aprimorados ao modo de “parceria público-privada”); que se criem indicadores para acompanhar quais os méritos e deméritos da lei – o que segue pari passu com a obrigação, pertinente ao Estado, de gerenciar adequadamente as decisões tomadas sobre o uso do dinheiro público; e que haja, ainda, transparência na relação entre os objetivos almejados com a lei e os efeitos de alocação de recursos públicos, o que leva em conta a criação de indicadores de controle e monitoramento desses mesmos recursos. Reforço que não devemos esquecer a imprescindível proposta de ampliação de verbas para a área cultural, não somente em nível federal, como também estadual e municipal.
Atuação pública
Recentemente, a Folha de S.Paulo apurou quais seriam os critérios de seleção e aprovação de projetos, a partir de indicações do ministro da Cultura, Juca Ferreira.1 Em que pese o imperativo de clareza e premência de teor democrático desses critérios, é preciso repetir que eles não devem abrir caminho para qualquer tipo de dirigismo. O que a população brasileira precisa é de uma atuação pública que seja ativa, mas não dominante; precisamos de leis que garantam a participação cidadã para ampliar a cultura (e justamente a cultura política), sem deixar de reconhecer o imperativo da liberdade de escolha. Que isso valha para a Nova Rouanet.
Há duas questões que, unidas, são de fundamental importância para as políticas públicas de cultura em uma sociedade democrática.2 A primeira é de natureza ética e está calcada em Max Weber. Quem atua em prol da cultura em nosso país (tanto o poder público quanto a iniciativa privada), atua politicamente em prol de um espaço público, no qual as ações e criações artísticas se dirigem para a vida das pessoas e nelas geram impactos. Nesse sentido político de atuação, espera-se que aquele que define instituições e toma decisões estratégicas o faça sob a égide de uma “ética da responsabilidade”, ou seja, que tenha consciência e leve em consideração as consequências de suas decisões. Novamente, é o “interesse geral e de cada um” que conta. Na fórmula da relação entre meios e fins, não se deve ser radical nem com os meios nem com os fins. Há um fator de gradação na escolha dos fins e dos meios que obedece ao espírito democrático e republicano.
A segunda diz respeito ao que podemos aprender com a postura política anglo-saxônica, que utiliza um critério “consequencialista” na avaliação das decisões a serem adotadas. Antes de fincar raiz unilateralmente na arena dos princípios que se procura sustentar, os quais, sabemos bem, geralmente sofrem influência de toda sorte de subjetivismo e de insuflações partidárias e emocionais, convém investigar quais seriam as consequências mais prováveis de uma escolha ou de outra sobre o comportamento dos interessados. Eis um critério de razoabilidade que pode ser seguido sobre o que vem a ser “a melhor coisa a fazer”, determinando “a ação que convém”, também a par do espírito democrático e republicano.
Com essas reflexões sobre a ética da responsabilidade e o critério “consequencialista”, talvez o limite a que aduzi inicialmente não repousasse sobre os impasses que a adoção de mudanças na Lei Rouanet gerou, embora não evitasse o acalorado das discussões. No campo de forças da política, cada ator define o lugar de onde fala, a visão de mundo e o engajamento prático que o enredam, assim como os pensamentos e intenções que o direcionam. Cada ator ocuparia bem o seu lugar, em adequação ao que lhe compete dizer e o que lhe é pedido. Agora, resta-nos avaliar as mudanças que tomaram corpo na Nova Rouanet, verificar quais impactos serão gerados e rediscutir, dentro dos mesmos parâmetros democráticos, os rumos que o fomento à cultura terá em nosso país.
*Ivan Paulo Giannini sociólogo, é superintendente de Comunicação Social do Departamento Regional do SESC São Paulo.