A obra de Severiano Mário Porto e o Amazonas
Os projetos e obras de Severiano Mário Porto são a prova óbvia não da possibilidade de um discurso sobre uma região, ou de implicações relacionadas ao aspecto meramente geográfico daquele espaço singular, mas de uma imersão cultural
É possível a arquitetura “falar” sobre uma especificidade, uma recorrência de temas ou fatores relativos a uma área geográfica em particular? Elementos importantes para esta reflexão talvez possam ser indagados a partir das obras realizadas no estado do Amazonas pelo arquiteto Severiano Mário Porto (1930 – 2020), falecido no dia 10 de dezembro: mais uma vítima da Covid-19.
Na inevitável parcialidade do itinerário reflexivo proposto por eu ser amazonense e arquiteto, ressalto que seu traço mais fecundo, mas também o mais abstrato e, talvez precisamente por isso o menos parcial, em comparação com a totalidade da problemática investigada a partir de sua obra, é a sua atividade criativa, em geral como arquiteto, em particular, na articulação de duas tensões. A primeira tensão refere-se ao movimento de conhecimento circular transmitido durante sua formação em 1954 na Faculdade Nacional de Arquitetura, da Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro (hoje UFRJ); a segunda tensão, vertical, vem de sua própria trajetória, enraizada nas contingências do meio ambiente – uma trajetória que investiga a fundo o significado do conceito de contexto ou a pré-existência cultural, já que é nascido em Minas Gerais e, nos anos 1980 mantém viagens intermitentes entre o Rio de Janeiro e o Amazonas.
Severiano Mário Porto aterrissa no estado do poeta Thiago de Mello (1926), cuja casa em Barreirinha fora projetada pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa (1902-1998). Ressalto, por exemplo, que nesse Estado algumas obras modernas da capital exibiam e exibem murais do artista plástico Moacir de Andrade (1927-2016), assim descritos por João Guimarães Rosa:
“(…)Moacir de Andrade submete, em disciplinados espaços de arte – galos de tapeçaria, cintilação de mosaicos e magia de presépios – os paroxismos de seu diluviano zoorama, feérico epos de fauna: peixes, leviatãs, dragões, harpias, perlados de fria espuma e ocelados de recordações oníricas, à luz de um amarelo a um tempo telúrico e transcendente, apanha assim em tensa ronda a vida do grande rio e grava nos olhos de xerimbabos abissais a desmesura e selva, a cósmica, calada essência da Amazônia[1].
A experiência do arquiteto envolvido no profundo silêncio da Amazônia não indica apenas que o significado da construção no ambiente pré-existente pressupunha uma sensibilidade para perceber as sugestões da natureza – característica já presente na cultura do Movimento Moderno, como é observado na obra de arquitetos como Le Corbusier, mas a responsabilidade de fazer o projeto remeter ao meio cultural local. A consciência de um ambiente cultural local está relacionada à necessidade catártica que caracterizou o mundo intelectual a partir do segundo pós-guerra, e significava, de fato, a abertura do esquema moderno abstrato do homem ideal para a consideração de cada individualidade distinta; uma abertura que, por si só, permitiria alcançar o sentido de uma história humana.
Os projetos e obras de Severiano Mário Porto são a prova óbvia não da possibilidade de um discurso sobre uma região, ou de implicações relacionadas ao aspecto meramente geográfico daquele espaço singular, mas de uma imersão cultural. Os lugares e projetos por ele concebidos não respondem apenas a questões impostas pelo meio ambiente, mas são fatores de importância primordial para a construção do sentido de lugar, uma vez que, agindo nos níveis individual, social e cultural, corroboram, ao menos em parte, para a interpretação de uma possível identidade da região.

Progressivamente, seu pensamento teórico assume o caráter original que o tornou uma referência fundamental da cultura arquitetônica e, nos anos de 1980, é internacionalmente reconhecido, quando o conjunto de sua obra é premiado na Bienal Internacional de Arquitetura de Buenos Aires e quando, em 1987, é prestigiado com o título de arquiteto do ano pela revista francesa L’Architecture d’Aujourd’hui.
Falar em sentido local, em pertencimento e identidade, de certo modo, significa falar ‘regionalismo’ ou “regionalismo crítico”, termo cunhado em 1981, no ensaio The Grid and the Pathway, pelos teóricos de arquitetura Alexander Tzonis e Liane Lefaivre, ou ainda por Keneth Frampton, no livro Towards a Critical Regionalism: six points for an architecture of resistance, de 1983.
A ideia de regionalismo, porém, parece redutiva, folgada, obsoleta ou incongruente quando aludida às obras do arquiteto na região em questão, pois seu trabalho levantou uma série de problemas, colocando-os dentro de um raciocínio crítico entre a arquitetura do Movimento Moderno e a arquitetura contemporânea, raciocínio esse que, na verdade, explora o potencial de flexibilidade e continuidade de redefinição do lugar. Por um lado, o aperfeiçoamento das ferramentas técnicas destinadas a traduzir a linguagem figurativa do projeto em construção física e, por outro, o aprofundamento dessa linguagem a partir do aprendizado de técnicas locais. Sua obra versa sobre a viabilidade técnica e funcional e a adaptação da forma ao meio físico, cultural e histórico em que está inserida. O objetivo final é a síntese dos dois problemas. Este último compromisso diz respeito mais especificamente às pré-existências ambientais, pois não pode ser cumprido sem que a linguagem da obra inclua os valores culturais – com os quais as novas formas dialogam – e absorva a priori os conteúdos particulares característicos, sugeridos pelo meio ambiente.



O interesse pela arquitetura local como matriz, dentro da qual se busca a origem arquetípica da arquitetura, é uma ideia essencial e, do ponto de vista técnico, capaz de dar ao projeto a medida necessária de adesão à realidade concreta dos fenômenos, para além de qualquer abstração de princípios. A pesquisa sobre o ambiente e a relação entre arquitetura e natureza, construindo o conhecimento cíclico da tradição, explora a sedimentação de noções a serem construídas a partir da comparação de diferentes respostas, no espaço e no tempo, com problemas semelhantes. A inclusão de elementos da cultura local em atenção à tradição teria sido, de fato, não apenas o sinal do amadurecimento de uma consciência política social, mas também da disposição de ampliar as possibilidades do projeto arquitetônico.
Nesse sentido, sua obra não se limitou a escolhas linguísticas folclóricas, um viés arriscado que levaria a um formalismo estilístico. Estamos diante de uma arquitetura que se coloca no encontro das duas necessidades: a de experimentar o conhecimento eterno da tradição arquitetônica e a de especificá-la a partir das expectativas contingentes do local onde esse conhecimento é aplicado.
Apesar do nome de Severiano Mário Porto estar sempre associado a uma ideia datada de pré-existência ambiental, hoje, mais do que nunca, seu legado pode ser reinterpretado à luz de questões relacionadas com a ecologia, a paisagem e à ligação entre construção e energia, em um momento em que ecologia e arquitetura compartilham os resultados da chamada crise do meio ambiente.
“Faz mormaço na floresta” é uma referência ao livro “Faz escuro, mas eu canto” (1965), do poeta amazonense e tradutor Thiago de Mello (1926), um dos poetas brasileiros mais conhecidos e ícone da literatura regional, com obras traduzidas em mais de trinta idiomas. O título remete à necessidade de lutar sempre pela vida, apesar das circunstâncias.
Adalberto da Silva Retto Júnior, é professor na Universidade Estadual Paulista (Unesp). Coordenador do Curso Internacional de Especialização Lato Sensu em Planejamento Urbano e Políticas Públicas: Urbanismo, Paisagem, Território. Foi Professor-pesquisador Visitante no Master Erasmus Mundus TPTI (Techiniques, Patrimoine, Territoire de lIndustrie: Histoire, Valorisation, Didactique) da Universitè Panthéon Sorbonne Paris I (2011-2013). Possui pós-doutorado no Istituto Universitario di Architettura di Venezia – Itália (2007); Doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo FAUUSP e pelo Departamento de História da Arquitetura e Urbanismo do Istituto Universitario di Architettura di Venezia (2003).
[1]João Guimarães Rosa KAWALL, Luiz Ernesto Machado. Artes reportagem. Prefácio de Luís Arrobas Martins. Apresentação de Francisco Luís de Almeida Salles. São Paulo: Centro de Artes Novo Mundo, 1972.