A obsessão da saúde perfeita
O sistema médico cria incessantemente novas necessidades terapêuticas. Mas quanto maior a oferta de saúde, mais as pessoas crêem que têm problemas, necessidades, doenças. Elas exigem que o progresso supere a velhice, a dor e a morte. Isso equivale à própria negação da condição humana.Ivan Ilich
Quando se considera a dimensão histórica da medicina — ou seja, a medicina na história do mundo ocidental — é inevitável começar pela cidade de Bolonha, na Itália. Foi lá que a ars medendi et curandi se separou, enquanto disciplina, da teologia, da filosofia e do direito. Foi lá que, a partir da seleção de uma pequena parte dos textos do médico grego Galeno (131-201), o corpo da medicina estabeleceu sua soberania sobre um território distinto daquele de Aristóteles ou de Cícero. Foi na cidade de Bolonha que a disciplina que tem por objetivo o estudo da dor, da angústia e da morte foi reintegrada aos domínios da sabedoria; e que se deu a fragmentação, jamais feita no mundo islâmico, onde o título de Ha-kim significa, simultaneamente, o cientista, o filósofo e o curandeiro.
Concedendo autonomia universitária ao saber médico e instituindo ainda a autocrítica da sua prática graças à criação do protomedicato, Bolonha construiu os alicerces de um empreendimento social eminentemente ambíguo, uma instituição que, gradativamente, fez esquecer as situações nas quais deve-se enfrentar o sofrimento, ao invés de eliminá-lo, e aceitar a morte, ao invés de recusá-la.
É verdade que a tentação de Prometeu desde cedo esteve presente na medicina. Antes mesmo da fundação da Universidade de Bolonha, em 1119, médicos judeus da África do Norte contestavam o distanciamento dos médicos árabes na hora fatal. E foi preciso muito tempo para que essa regra desaparecesse. Em 1911, data da grande reforma das escolas de medicina norte-americanas, ainda se ensinava como reconhecer a “face hipocrática”, os sintomas que fazem um médico saber que ele não tem mais um paciente diante de si, mas um moribundo.
Este realismo pertence ao passado. No entanto, visto a quantidade de não-mortos graças a tratamento médico, bem como sua angústia modernizada, já está passando da hora de renunciarmos à tentativas de curar a velhice. Seria preciso tomar uma iniciativa, preparar o retorno da medicina ao realismo que subordina a técnica à arte de saber sofrer e de saber morrer. Poderíamos fazer soar o alarme, para que se compreenda que a arte de celebrar o presente ficou totalmente paralisada por aquilo que se tornou a busca da saúde perfeita.
A aversão pela arte do sofrimento
Para falar dessa “saúde” metáfora, deve-se levar em conta dois aspectos. Assim como a noção de saúde, também a metáfora é histórica. O primeiro aspecto deveria ser evidente. Foi o ensaísta Northrop Frye que me fez compreender o segundo. A metáfora tem uma conotação completamente diferente para o grego, que a associa à deusa Higéia, para o cristão primitivo, que a associa à deusa Hígia, e para o cristão medieval, convidado por ela à salvação através de um único Criador e Salvador crucificado. Mas ela é ainda diferente na medida em que cria necessidades de medicação num mundo impregnado pelo ideal instrumental da ciência. Na medida em que aceitamos tamanha historicidade da metáfora, convém perguntar se, nesses últimos anos do milênio, ainda é legítimo falar em metáfora social.
Eis a minha tese: em meados do século XX, aquilo que implica na noção de uma “busca da saúde” tinha um sentido totalmente distinto daquele que tem hoje. Segundo a noção que prevalece hoje, o ser humano que precisa de saúde é considerado um subsistema da biosfera, um sistema imunológico que é preciso controlar, regrar, otimizar: “uma vida”. Não se trata de esclarecer o que constitui a experiência de “estar vivo”. Por sua redução a “uma vida”, o indivíduo cai num vazio que o asfixia. Para se falar de saúde em 1999, é necessário compreender a busca da saúde como o oposto da busca pelo sadio, como uma liturgia social a serviço de um ídolo que extingüe o sujeito.
Em 1974, escrevi o livro Nêmesis da medicina. No entanto, eu não havia escolhido a medicina como tema, e sim como exemplo. Com esse livro, eu queria prosseguir um discurso já começado sobre as instituições modernas enquanto cerimônias criadoras de mitos, de liturgias sociais que celebram certezas. Examinei a escola (Nota dos editores: ler “Uma sociedade sem escolas, de Ivan Ilich), os transportes e a habitação, para compreender suas funções latentes e inevitáveis — aquilo que proclamam, bem mais do que aquilo que produzem: o mito do Homo educandus, o mito do Homo transportandus, enfim, o homem enclausurado.
Escolhi o exemplo da medicina para ilustrar diferentes níveis da contra-produtividade característica de todas as instituições do pós-guerra, de seu paradoxo técnico, social e cultural. No plano técnico, a sinergia terapêutica que produz novas doenças; no plano social, o desenraizamento produzido pelo diagnóstico que assombra o doente, o idiota, o ancião e até o moribundo. E principalmente, no plano cultural, a promessa do progresso que leva à recusa da condição humana e à aversão pela arte do sofrimento.
Do corpo físico ao corpo fiscal
O livro Nêmesis da medicina começava com estas palavras: “A empresa médica é uma ameaça à saúde.” Naquela época, uma afirmação dessas podia por em dúvida a seriedade de seu autor, mas tinha também o poder de provocar o estupor e a raiva. Hoje, vinte e cinco anos depois, eu não utilizaria mais aquela frase, por dois motivos. Os médicos perderam completamente o controle do sistema de saúde. Se porventura houver um clínico entre seus dirigentes, ele aí estará para legitimar a reivindicação do sistema, de melhorar as estatísticas da saúde. Além do mais, essa “saúde” nem sequer é percebida. Trata-se de uma “saúde” paradoxal. A “saúde” significa uma excelência cibernética. Ela é concebida como um ponto de equilíbrio entre o macro-sistema socio-ecológico e a população de seus subsistemas de tipo humano. Submetendo-se à otimização, o sujeito nega a si próprio.
Hoje, eu começaria minha argumentação dizendo: “A busca da saúde tornou-se o fator patogênico predominante.” E eis-me frente a frente com um tipo de contra-produtividade com a qual eu nem poderia sonhar quando escrevi o Nêmesis.
Este paradoxo torna-se evidente quando se examinam os relatórios sobre os progressos no sistema de saúde. Eles exigem uma leitura dupla, como se o leitor fosse um Janus, o deus romano de duas caras. Com o olho direito, fica-se estarrecido pelas estatísticas da mortalidade e da morbidade, cuja queda é interpretade como resultado do atendimento médico; com o olho esquerdo, não conseguimos evitar a leitura de estudos antropológicos que sempre propõem respostas à pergunta: como vai?
Não é mais possível deixar de perceber o contraste entre a saúde pretensamente objetiva e a saúde subjetiva. O que se observa? Quanto maior a oferta de “saúde”, mais as pessoas respondem que têm problemas, necessidades e doenças, exigindo garantias contra os riscos. Enquanto isso, nas regiões ditas iletradas, os “subdesenvolvidos” aceitam sem problema a sua condição. A resposta que dão à pergunta “Como vai?” é: “Até que para minha condição, minha e idade e meu carma, eu vou bem…” E tem mais: quanto mais a oferta de toda a parafernália clínica resultar num engajamento político da população, mais intensamente é percebida a falta de saúde. Ou seja: a angústia mede o nível de modernização, e mais ainda o de politização. A aceitação social do diagnóstico “objetivo” tornou-se patogênica do ponto de vista subjetivo.
E são precisamente os economistas que defendem uma economia social orientada pelos valores da solidariedade que tomam como objetivo promordial o direito igualitário à saúde. Logicamente, eles são forçados a aceitar patamares econômicos para todos os tipos de cuidados individuais. E neles que se encontrauma interpretação ética da redefinição do patológico se produz no interior da medicina. A redefinição da doença acarreta, segundo o professor Sajay Samuel, da Universidade de Bucknell, “uma transição do corpo físico para um corpo fiscal”. E, de fato, os critérios selecionados que classificam este ou aquele caso como passível de tratamento clínico-médico são cada vez parâmetros financeiros.
Auscultar no lugar de ouvir
Do ponto de vista histórico, o diagnóstico teve, durante séculos, uma função eminentemente terapêutica. O fundamental do encontro entre o médico e o paciente era verbal. Até o início do século XVIII, a consulta era basicamente uma conversa. O paciente falava, contando com uma escuta privilegiada da parte do médico. Ele ainda sabia falar do que sentia — um desequilíbrio em seus humores, uma alteração no fluxo sangüíneo, uma desorientação nos sentidos ou o surgimento de perigosos coágulos. Quando se lê o diário de um médico qualquer da época barroca (séculos XVI e XVII), descobre-se em cada pequena anotação uma autêntica tragédia grega. A arte médica era a da escuta. O médico assumia o comportamento que, na sua Poética, Aristóteles — divergindo de seu mestre, Platão — exigia do público presente à apresentação da peça. Aristóteles era trágico pelas inflexões que dava à sua voz, pela sua melodia e por seus gestos, e não apenas por suas palavras. É dessa forma que o médico responde mimeticamente ao seu paciente. Para o paciente, esse diagnóstico mimético tem uma função terapêutica.
Mas essa ressonância não tardaria a desaparecer: ouvir deu lugar a auscultar. A ordem dada dá lugar à ordem construída — e isso, é claro, não somente na medicina. A ética dos valores substitui a do bem e do mal, a segurança do saber desclassifica a verdade. Na música, a consonância escutada, que poderia revelar a harmonia cósmica, desaparece sob o efeito da acústica, uma ciência que ensina como fazer sentir as curvas sinusoidais nos tons médios.
A transformação do médico que escuta uma queixa em médico que atribui uma patologia alcança seu ponto culminante a partir de 1945. O paciente é levado a olhar para si próprio em escala médica, é obrigado a se submeter a uma autópsia (no sentido literal da palavra): olhar para si com seus próprios olhos. Ao se autovisualizar, ele renuncia a se sentir. As radiografias, as tomografias e mesmo a ecografia da década de 70 ajudam-no a identificar-se com os quadros anatômicos que, na sua infância, via nas salas de aula. A consulta a um médico passa, portanto, a servir para desencarnar o ego. Seria impossível passar a analisar a saúde e a doença, enquanto metáforas sociais, às vésperas do ano 2000, sem que compreendêssemos que essa auto-abstração imaginária do ritual médico também pertence ao passado. O diagnóstico já não se limita a fornecer uma imagem que se pretende realista, mas um emaranhado de curvas de probabilidades — tudo organizado de perfil.
O trabalho frio do cálculo
Não basta ter olhos para ler um diagnóstico. Agora, exige-se do paciente um frio cálculo. Em sua maioria, os elementos que compõem o diagnóstico não medem mais este indivíduo concreto. Cada informação situa o seu caso numa “população” diferente e indica uma eventualidade sem denominar o sujeito. A medicina colocou-se fora daquela área em que se seleciona o que é bom para um paciente concreto. Para decidir o tipo de serviço que lhe oferecerá, ela obriga o diagnosticado a uma espécie de jogo de pôquer.
Vou tomar como exemplo a consulta genética pré-natal, tema estudado a fundo por uma colega, a pesquisadora Silja Samerski, da Universidade de Tübingen. Eu não teria acreditado no que vi se não fosse pelo estudo de dúzias de prontuários referentes a consultas feitas pelas mais variadas categorias de mulheres na Alemanha. As consultas são feitas por um médico com quatro anos de especialização em genética. Ele se abstém rigorosamente de toda e qualquer opinião para não ter o destino de um médico de Tübingen, condenado pela Corte Suprema em 1997 a subsidiar, por toda a sua vida, a criação de um menino deficiente: antes do parto, ele havia dito à mãe da criança que a probabilidade de que ela nascesse deficiente não era grande, quando deveria ter se limitado a informar-lhe numericamente quais os riscos.
Nas entrevistas a que me referia antes, passa-se da informação sobre a fecundação e de uma síntese das leis de Mendel à construção de uma árvore genético-heráldica, para chegar ao inventário dos perigos e a um passeio por um jardim de “monstruosidades”. E a cada vez que a mulher pergunta se isso poderia acontecer com ela, o médico lhe responde: “Minha senhora, nem isso pode ser excluído com absoluta certeza.” Mas é evidente que uma resposta dessas deixa inquietações. A cerimônia tem um efeito simbólico inevitável: força a mulher grávida a tomar uma “decisão”, identificando-se ela própria e o feto que carrega com uma configuração de probabilidades. Não falo da decisão pró ou contra a continuação da gravidez, mas da mulher ser forçada a identificar a si própria e à criança que ainda não nasceu com uma “probabilidade”. Ou seja: identificar essa opção com um bilhete de loteria. Reduzir a sua decisão a um oxímoro, a uma escolha que se pretende humana mas que é enclausurada na inumanidade dos números. E eis-nos frente a frente a uma situação que já não é a da desencarnação do ego, mas a da negação da unicidade do sujeito, do absurdo que consiste em assumirmos riscos como se fôssemos um sistema estatístico, um modelo contábil.
A pessoa que busca a consulta torna-se o psicopompo (o condutor das almas dos mortos) de uma liturgia de iniciação ao grande saber estatístico. E tudo isso em nome da “busca pela saúde”.
No ponto a que chegamos torna-se impossível tratar a saúde como metáfora. As metáforas são trajetos de uma a outra margem da semântica. Por sua natureza, elas mancam. Mas, por sua essência, lançam luz sobre o ponto de partida da travessia. E isso deixa de ocorrer