A omissão de Arthur Lira em relação aos pedidos de impeachment
Não cabe ao presidente da Câmara dos Deputados antecipar juízo de admissibilidade do processo de impeachment. Essa prerrogativa é da casa legislativa. Menos ainda tecer considerações de mérito. Da mesma forma, o não recebimento motivado enseja recurso ao plenário
Sob a égide da democracia, é inconcebível que uma autoridade pública avoque poder absoluto de impedir tramitação legítima de pedidos de impeachment contra um presidente da República. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), se recusa a analisar os pedidos de impedimento protocolados perante a casa legislativa, alegando não haver “disposição política” (sic) para fazê-lo.
As omissões de Lira são sustentadas na interpretação falaciosa de ser prerrogativa do presidente da Câmara dos Deputados analisar esses pedidos exercendo convicção pessoal sobre sua conveniência política. E, ainda, analisá-los a qualquer tempo, diante da ausência de previsão de prazo na legislação pátria.
No dia 02 de julho de 2021, Fernando Haddad e Rui Falcão impetraram, perante o Supremo Tribunal Federal, mandado de segurança contra omissão no processamento do pedido de impeachment apresentado há mais de um ano pelos impetrantes. Esse pedido denunciou três condutas supostamente criminosas praticadas pelo presidente da República e, hoje, inclui-se no total de 126 pedidos engavetados, que narram mais de 20 condutas igualmente aptas a configurar crimes de responsabilidade.
O artigo 86 da Constituição Federal dispõe que é competência da Câmara dos Deputados apreciar a admissibilidade do processo de impeachment e é competência do Senado Federal o seu julgamento. O papel do presidente da Câmara dos Deputados, pela lei, limita-se a uma prévia conferência do cumprimento de requisitos formais da denúncia, sem adentrar às condições de admissibilidade, nem ao mérito dos argumentos formulados.
Conforme determina expressamente o artigo 16 da Lei 1.079/1950, combinado com o artigo 218, §1º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados (RICD), para autorizar o processamento da denúncia, a peça deve estar “assinada pelo denunciante com firma reconhecida” e “acompanhada dos documentos que a comprovem”.
Do §2º do mesmo artigo do RICD extrai-se que a denúncia deverá ser remetida ao presidente da Câmara dos Deputados, para analisar se ambos os requisitos mencionados foram cumpridos no pedido.
Verificada a existência dos requisitos formais, o pedido deverá ser lido no expediente da sessão seguinte e despachado à Comissão Especial eleita, da qual participem representantes de todos os Partidos.
Caso Arthur Lira entenda pelo indeferimento da denúncia apresentada, deverá fundamentar sua decisão, limitado a demonstrar que os requisitos formais não estavam preenchidos.
Contra o indeferimento, o §3º do artigo 218 do RICD assegura o direito de recurso ao Plenário, para deliberação sobre o tema.
Como se vê, não cabe ao presidente da Câmara dos Deputados nada além de um juízo sumário para posterior deliberação colegiada. Não pode ele antecipar juízo de admissibilidade do processo que é prerrogativa da Casa. Menos ainda tecer considerações de mérito. Da mesma forma, o não recebimento motivado enseja recurso ao plenário.
Apesar das tantas denúncias apresentadas terem sido devidamente instruídas com documentos, vídeos, notícias jornalísticas e atos oficiais do presidente Jair Bolsonaro, ainda não houve sequer exame dos requisitos meramente formais pela autoridade competente.
A Constituição Federal garante o direito de petição no artigo 5º, inciso XXXIV. Por óbvio, essa disposição presume o direito de se obter a respectiva resposta. É dever da Administração Pública pronunciar-se sobre o teor das petições, proferindo em prazo razoável decisões fundamentadas.
Por isso, o agente responsável pela análise dessas petições, ao se omitir, no mínimo, viola seu dever funcional de desempenhar “com zelo e dedicação as atribuições do cargo”, exposto no artigo 116, I, da Lei 8.112/1990.
A ausência de previsão legal sobre prazo para análise das denúncias não pode ser entendida como brecha para frustrar o direito político dos cidadãos, previsto no artigo 14 da Lei 1.079/1950, de denunciar seu governante ao Poder Legislativo, que na estrutura republicana é o representante do povo.
Eventual lacuna no direito, como é da melhor exegese, deve ser resolvida por analogia. Os artigos 48 e 49 da Lei 9.784/1999, v.g, estabelecem que a Administração Pública Federal tem prazo de até trinta dias para proferir decisão em processos de sua responsabilidade.
Todavia, Arthur Lira já demonstrou, em comentários, que sua omissão é fruto consciente de seu posicionamento político. Essa concentração indevida de poder desvirtua a função representativa de seu cargo público e se contrapõe às regras democráticas.
Durante sessão plenária da Câmara dos Deputados, Lira afirmou que todos os pedidos de impeachment que havia lido eram “inúteis”, “risíveis” ou “inócuos” (sic). Posteriormente, disse faltar materialidade às condutas denunciadas. Questionado, ainda, em entrevista, sobre o chamado superpedido, aduziu que não o analisaria.
Surpreende que ele tenha ousado emitir juízo de valor sobre esses pedidos, função privativa e indelegável do Senado Federal. E surpreende mais sua confissão de que deixaria de cumprir obrigação legal.
A lei, como está posta, não dá margem à interpretação de que é prerrogativa do presidente da Câmara dos Deputados fazer vista grossa a qualquer petição. Pelo contrário, a redação dos dispositivos legais é clara no sentido de que o encaminhamento da denúncia de crime de responsabilidade é ato vinculado, que não se submete ao exercício discricionário da referida autoridade.
Espera-se que o Supremo Tribunal Federal se mantenha firme na guarda da Constituição ao analisar o mandado de segurança impetrado. As Cortes costumam invocar, em casos envolvendo atribuições de outros poderes, o fundamento de que se trata de matéria interna corporis, isto é, própria e exclusiva de outro poder da República.
O caso, no entanto, é singular. Não pode a Suprema Corte correr risco de, indiretamente, negar jurisdição. A competência administrativa deve ser exercida conforme os ditames constitucionais, legais e regimentais e não pode ser objeto de barganha política ou abuso de poder.
O que o mandado de segurança pleiteia não é a intervenção do Poder Judiciário no mérito da questão em pauta, mas tão somente obrigar o presidente da Câmara dos Deputados a agir conforme a Lei, processando os pedidos de impeachment recebidos.
Sob outro prisma, há quem acredite que melhor estratégia contra Bolsonaro seria aguardar para derrotá-lo nas eleições de 2022.
Argumenta-se que mais um impeachment na história do país traria instabilidade política e abriria um mau precedente à República, por ser tão recente em relação ao último. Isso incentivaria, de acordo com esse raciocínio, o uso frequente do instrumento constitucional, em tese excepcionalíssimo, para forçar alternâncias de poder, por interesses políticos.
Mas não se pode temer aplicar a Constituição Federal quando é necessário. Se o Poder Legislativo se mostra inerte quando há base factual robusta e até apoio popular, a conclusão é exatamente o oposto da preocupação mencionada.
A falta de responsabilização do atual presidente da República atestaria que o Brasil só é capaz de acionar o instituto do impeachment quando há incitação golpista. Até hoje se discute a legitimidade do impedimento sofrido pela ex-presidente Dilma Rousseff. Por outro lado, quando o alerta vermelho é inafastável, como agora, surge, curiosamente, uma relutância de traumas anteriores.
O julgamento de Bolsonaro, como certamente acontecerá com a repercussão e os efeitos do relatório da CPI da pandemia, ficaria registrado na história como a justa reação defensiva das instituições brasileiras na proteção da democracia.
Lilian Assumpção Santos é advogada, especialista em Direito Penal e Direito Processual Penal pela PUC-SP. Graduada em Direito pela mesma instituição.