A paisagem como brado ambiental do cinema
Tempos de obscurantismo ambiental exigem um novo olhar para a paisagem, como construção estética e política, dentro e fora das telas. No segundo texto da série sobre Cinema & Meio Ambiente, o diretor de fotografia e professor Camilo Soares evidencia a paisagem como elemento fundamental para a construção da percepção da realidade
Enquanto as chamas devastam a Amazônia e o Pantanal, o presidente Jair Bolsonaro, com os olhos tensos mas robotizados, afirma na abertura da 75ª Assembleia Geral da ONU que o Brasil é líder na preservação de florestas tropicais e que mantém sua política de tolerância zero para crimes ambientais. Argumentos que logo viram cinzas, distantes que estão dos fatos, como alumiam os dados da Global Forest Watch, que colocam o país entre os dez que mais perderam áreas de florestas primárias tropicais em 2019, ou como esclarece de vez o Índice de Desempenho Ambiental (EPI), divulgado em 2020 pelas universidades de Yale e Columbia, pelo qual o Brasil fica atrás de todos os países amazônicos com dados aferidos (Bolívia, Colômbia, Equador, Venezuela, Guiana, Peru e Suriname). Há também informações de fontes nacionais igualmente alarmantes, como os do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que denunciam o recorde de focos de queimadas no Pantanal em setembro. Visivelmente, o discurso de Bolsonaro não está atrelado à ciência, mas na composição de narrativas que tentam construir uma representação que o favoreça politicamente em detrimento dos fatos, tentando encobrir com uma cortina de fumaça a agenda anti-ambiental de seu governo. Contudo, tal guerra simbólica torna mais evidente a percepção da paisagem como potência política, o que resvala fortemente no cinema e outras artes nas quais a construção do espaço é fundamental.
A capacidade expressiva do espaço nas artes figurativas nos leva ao que Hannah Arendt desdobrou de sua releitura de Kant, para destacar o valor inerentemente político da estética. A faculdade de julgar nos permite, para ela, ver as coisas não somente de um ponto de vista pessoal, mas nos orienta no domínio público, em ações cotidianas concretas. Leituras do real surgem desses julgamentos estéticos do mundo ao redor e compõem comunidades do sensível, lavrando o que Jacques Rancière chama de topografias do possível. Quando, por exemplo, atravessamos as nove horas do documentário A Oeste dos Trilhos (2002), experimentamos nessa viagem territorial proposta pelas lentes de Wang Bing um fluxo terrível de destruição atreladas ao desenvolvimento econômico. Ao nos banhar nesse filme-rio, conhecemos uma topografia na qual avistamos finalmente sonhos e dores de indivíduos apagados pela poeira de suas ruínas. O Documentário Muribeca (2020), que co-dirigi com a fotógrafa Alcione Ferreira, acaba sendo, no limite da devida proporção, uma metonímia desse processo, ao observar lembranças e afetos de uma comunidade específica transformada em cidade-fantasma, em razão de uma tecnicidade econômica desumana e insensível.
Martin Warnke (filho de pastor de uma colônia alemã, nascido no município gaúcho Ijuí e mandado para fazer os estudos na Alemanha) nos lembra que toda característica topográfica vem de decisões políticas concretas (planos verdes, política agrária, delimitações de pastos, reservas florestais, tombamentos históricos ou valores de mercado). Para ele, a expressão de paisagens nunca foi inocente. O contraste entre as opressivas estradas modernas de Edvard Munch e Ferdinand Hodler com a transparente continuidade entre interior e exterior nos quadros de Jan van Eyck (como no exemplo de Virgem com chanceler Rolin, onde os arcos das janelas estão em plena harmonia com a curvatura da ponte vista no fundo) é para Warnke prova de que a representação do espaço é sempre condicionada por uma visão política, expressa pela sensibilidade do artista em formas apreensivas ou amenas. Vale lembrar que o século XV de Van Eyck foi marcado pela formação e fortalecimento dos países-nações, cujas estradas e interiores deveriam ser pacificados e controlados entre fronteiras. No entanto, nas pinturas pré-expressionistas, na virada para o século XX, os espaços externos já não eram mais símbolos de segurança e tranquilidade: além da poluição e das condições degradantes de trabalho para a maioria da população, a Guerra Mundial já estava na esquina.
Na técnica cinematográfica, cujas indicialidade e iconicidade a ligam inexoravelmente à mimese realista do mundo em movimento, tal não-inocência espacial é algo mais sutil, ainda mais quando se trata em potencial político. Mesmo numa cinematografia abertamente ideológica como a de Serguei Eisenstein, atrelada à dignificação do homem comum e à montagem de choques, numa proposta de tomada coletiva da consciência, as imagens do mundo ganharam um novo status em recentes interpretações. Didi-Huberman verifica que o diretor soviético entendia que nesse olhar para o mundo havia o princípio de uma imagem sem limites, que ele chamava obraz-sreda, ou imagem-meio, como se “as fronteiras do exterior e do interior, do longe e do perto, ficassem completamente porosas, ou essas espacialidades se tornassem sensorialmente intercambiáveis”.
Um exemplo dessa desorientação buscada nos filmes de Eisenstein, para Didi-Huberman, seria o lamento das brumas na cena do velório do marujo revoltoso Vakulintchuk que, morto no Encouraçado Potemkin, seria chorado pelo povo de Odessa. A anedota é que Eisenstein e seu diretor de fotografia Eduard Tissé aproveitaram uma jornada perdida de filmagem, por causa de um denso nevoeiro que abraçava a cidade costeira ucraniana, para captarem, apenas os dois, essas imagens quase abstratas do porto e suas águas. O diretor teria escrito em suas Memórias que aquelas teriam sido as imagens mais baratas do filme: apenas 3 rubros e 50 kopeks pela voltinha que deram num barco de aluguel. No entanto, seriam decisivas para criar um ambiente anacrônico e mesmo irreal, algo do que acontece nas telas Noturnas de James Whistler, possibilitando, segundo Didi-Huberman, a emancipação dessas imagens de um status puramente descritivo, processando um tipo de migração temporal com efeito de amplificar emocionalmente e simbolicamente essa cena de luto. Um luto que logo viraria luta.
Tal movimento de exteriorização da paisagem liga o revolucionário letão (Eisenstein nasceu em Riga), à iconografia romântica de um Caspar David Friedrich, numa melancolia espacial que seria abraçada pelos expressionistas, seja pelos pintores ou por cineastas como F. W. Murnau, que enfrentou as normas rígidas dos estúdios UFA para filmar seus planos externos em cenários reais. Murnau corria, como Mefistófeles da cruz, do caligarismo de papel-crepom, o que dava a seus filmes um naturalismo aterrorizante pelo grão do real que carregavam. Formado em história da arte, o diretor de Fausto sabia dosar bem a potência das imagens-meio para amplificar a expressão de suas obras, o que o faz, para Lotte H. Eisner (em seu clássico livro A Tela Demoníaca– As influências de Max Reinhardt e do Expressionismo), “o maior diretor que os alemães jamais tiveram”, pois, em seus filmes, “a visão cinematográfica nunca é o resultado apenas da tentativa de estilização do cenário”. A viagem do corretor de imóveis Hutter, em Nosferatu (1922), até o pavoroso castelo do conde Graf Orlock será referência em incontáveis filmes posteriores, como o caminho para o misterioso condado de Sleepy Hollow, em A Lenda do Cavaleiro sem Cabeça (1999) de Tim Burton.
Mas tanto os penhascos de Nosferatu de Murnau, quanto os ambientes industriais de Metrópolis (1927) de Fritz Lang (esse, arquiteto de origem) seriam, para Siegfried Kracauer, parte de uma estética do cinema da República de Weimar que anunciava, de forma inconsciente, a insanidade e o autoritarismo do nazismo em ascensão. Mesmo sendo um argumento que não se sustentasse muito historicamente, Robert Stam o valida cinematograficamente, ao ponderar que o autor do De Caligari a Hitler: uma história psicológica do cinema alemão desloca a questão do realismo de forma interessante, tornando as representações fílmicas “uma forma alegórica, não a história literal, mas as obsessões profundas, perturbadoras e inconscientes do desejo e da paranoia nacionais”. Nada tão atual, diante de significados de discursos e atitudes caligarescas como as do governo brasileiro em relação ao meio ambiente e aos povos autóctones.
Contudo, o cinema mostrou-se capaz de vencer autoritarismos políticos, sejam esses de esquerda ou de direita, mesmo que apenas numa guerra de subjetividades. Um caso de apreciável sutileza é o de Alexandre Dovchenko que, ao contrário de seus colegas futuristas de Moscou, desviou o olhar da cidade para o campo, criando um sentido de espaço que ultrapassava o formalismo soviético para abraçar texturas e formas de uma natureza rica de sentimentos e sentidos para a cultura local. A sensualidade de suas paisagens era mais redentora que o materialismo do Partido Comunista, pois remexiam com memórias e instintos. Para João Labari Bo, filmes de Dovchenko como Zvenigora e Arsenal, ambos de 1928, e Terra, de 1930, ao mesmo passo que defendiam a ideologia socialista, “funcionaram como um poderoso panfleto da espiritualidade panteísta da Ucrânia, seu país de origem, com contornos perigosamente nacionalistas e por extensão anti-stalinistas”. Tal poética seria o alento para gerações futuras de cineastas, como Sokurov, Paradjanov e Tarkovski.
A abertura expressiva da representação paisagística possibilitou, assim, uma possível liberdade diante de imposições. Para a tradição budista, a paisagem chama uma atitude contemplativa capaz de revelar a ilusão das aparências, ou avidya, e fomentar a apreciação de imagens livres. Além de milenar, a tradição paisagística na arte asiática tem reflexos em todos os campos do conhecimento. Yasujiro Ozu com seus planos vazios faz do filme um momento para se contemplar ambientes industriais de um Japão devastado no pós-guerra. Despossuídos de função narrativas, esses planos-vazios aplicaram pausas para a observação de uma nação em plena perda de identidade, como um respiro meio ao frenético ritmo de um modernização imposta. Viagem a Tóquio (1953) traça o belo e resignado olhar de um ancião sobre um tempo em que ele não encontra mais alento e espaço. Tal liberdade semântica de uma temporalidade não estática seria o embrião do cinema moderno, para Gilles Deleuze.
Já Apichatpong Weerasethakul faz na Tailândia atual, à sua maneira, o que Dovchenko fazia na Ucrânia, na expressão estética da espiritualidade como fonte de resistência cultural em uma ditadura. Em país dirigido por uma junta militar, seus filmes marcam fortemente a passagem entre cidade e floresta, como uma passagem que encontra, através de oposições e complementaridades não duais do yin-yang, um caminho para a consciência de si. Tropical Malady costura sensualidade e sensorialidade como uma cantiga mitológica e libertadora.
Já as paisagens provisórias de uma pujante China, cujo desenvolvimento econômico passa por cima de memórias e montanhas, são dissecadas pelo delicado olhar de Jia Zhangke. Seu cinema vai beber na pintura de Shanshui, que se desenvolveu em torno de representação da montanha e seus cursos d’água através da impermanência das formas e da pluralidade de pontos de vista e temporalidades. A referência é clara no Em busca da vida (2006), filmado em cidade milenar nas margens do Rio Yantze que logo engoliria vilas, lembranças e História para a construção da barragem das Três Gargantas, maior projeto de engenharia mundial a fim de alimentar de energia o insaciável desenvolvimento chinês. Em toda sua obra, Jia constrói o espaço como consciência de múltiplas leituras temporais, possibilitando uma visão dialética dentro de um ambiente político unilateral, abrindo o espaço para outros discursos além da visão oficial. Suas paisagens possibilitam uma visão cosmológica, onde o indivíduo reencontra o meio através do olhar de si a partir do mundo. Nesse espaço imaterial, feito de memórias, identidades e afetos, o meio não é mais objeto da visão do eu, mas parte integrante da consciência de si.
Para Jia Zhangke, a crise existencial de sua geração, de perda de referenciais culturais e éticos, está intrinsecamente ligada à crise da relação entre humanidade e mundo. Em As Montanhas se Separam (2015), a explosão da dinamite nas margens do Rio Amarelo parece também esfacelar velhas amizades. Ao passar do tempo, tanto os monumentos locais foram transformados em não lugares descaracterizados na cidade barulhenta, como os velhos amigos se tornam tipos de não pessoas à deriva de seus tristes e solitários destinos. Não por acaso, o título original do filme 山河故人 (Shanheguren) significa algo como velhos amigos como a montanha e o rio, numa expressão que lembra a importância de laços de fidelidade e amizade na cultura chinesa, valores esvaziados na paisagem atual.
No Brasil, a crise espacial é tema recorrente na cinematografia recente, bastante combativa contra um sistema caracterizado pela especulação e desdém social, histórico ou ambiental. Não há como não ver hoje a simples mas impactante cena do pescador margeando o rio em sua canoa em Brasil S.A., filme de Marcelo Pedroso de 2014, sem pensar no atual desmonte da regulamentação ambiental pelo ministro Ricardo Salles, retirando a proteção de 1,6 milhão de hectares de restinga e manguezais do país, abrindo as porteiras para o turismo predatório, a especulação imobiliária e as nocivas fazendas de camarão. O brado retumbante dos bichos, suplicando por ajuda, ouvido pelo atento barqueiro é calado pela estridência de serras-elétricas e britadeiras, tudo sob a sombra de uma assustadora bandeira nacional que aparenta querer tampar toda a luz do sol.
Em Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, o pequeno povoado de Bacurau (no filme homônimo, de 2019) some literalmente do mapa virtual, o que já aponta para a submissão da elite local a interesses estrangeiros. O desaparecimento é remediado pelo mapa afetivo desenhado pelos próprios moradores, um sinal da força da representatividade espacial que alimentará a resistência da comunidade contra o ataque inimigo. Mas é na paisagem urbana que Mendonça parece tecer um olhar mais profundo, traçando uma continuidade histórica entre a casa grande e a senzala de engenhos escravocratas com o urbanismo e a arquitetura das cidades atuais no Brasil, o que fica claro em O Som ao Redor (2012).
Não parece coincidência que, paralelamente ao desmonte das leis e dos órgãos de proteção ambiental, Bolsonaro ataque fortemente a produção cinematográfica e a Cinemateca Brasileira. De fato, tais representações cinematográficas não descrevem inocentemente o mundo exterior, revelando novos horizontes e sensibilidades, novas maneiras de julgar e agir. Por meio dessa força estética, a paisagem no cinema é um brado de sentidos e sentimentos que devolve ao meio ambiente tudo o que um discurso obscurantista como o do atual presidente do Brasil tenta retirá-lo: ser uma parte inalienável de nossa dignidade.
Camilo Soares é fotógrafo, doutor em Cinema pela Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne e professor do curso de Cinema & Audiovisual na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Tem participado como diretor de fotografia de diversos filmes, como King Kong en Asunción, vencedor do Festival de Gramado deste ano.
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Como o cinema tem tratado as diversas faces da questão ambiental? Da crise civilizatória à perda de biodiversidade, do colapso climático à busca da sacralidade da Terra, a realidade ecológica está em ficções e documentários de diferentes formas, sejam distópicas ou apontando caminhos, como elemento central ou paisagem de fundo. Com esta série, o Le Monde Diplomatique Brasil, em parceria com o Observatório Educador Ambiental Moema Viezzer e o Doc Ambiente, convida alguns dos melhores corações e mentes para pensar a interface da produção cinematográfica com o meio ambiente.