A palavra supérflua
Quando o resto do mundo se assemelha aos Estados Unidos, a “exceção americana” deixa de ser excepcional e os que ainda não foram seduzidos pela nova corrente são tachados de “antiamericanismo”Serge Halimi
Essa palavra é extraordinária. O historiador André Kaspi fez um levantamento: “No total, o dicionário Grand Larousse arrola trinta e dois verbetes anti. O único que se refere a uma nação estrangeira é antiamericanismo”. [1] Após algumas páginas, o autor, já esgotado pela minúcia de sua pesquisa, complementa: “A recente campanha de opinião contra as execuções[…] toma a via do antiamericanismo, pois infelizmente os Estados Unidos não são os únicos a não terem abolido a pena capital.” [2]No entanto, até 1981, quando a guilhotina foi finalmente aposentada, quem teria qualificado a oposição à pena máxima de “antifrancesismo”?
“Confesso que na América, eu vi mais do que a América”. [3] Inspirando-se na célebre frase de Tocqueville, o que vê hoje quem examina as motivações daqueles que denigrem o “antiamericanismo”? Nem a sustentação de um país ameaçado de alguma forma; nem a solidariedade a um povo oprimido por qualquer ocupação. Aliás, os pró-americanos mais ferrenhos são os estrangeiros, aqueles para quem o amor pelos Estados Unidos é tão puro quanto a pouca importância dada ao conhecimento de seu objeto de paixão. O que lhes resta é a simpatia por um modo de organização social, um tipo de articulação entre direitos da pessoa e direitos do cidadão, um sistema político (descentralizado, despolitizado, permeável) que assimila o interesse geral, “os direitos individuais” e o mais sagrado deles, o da propriedade. Admitamos, isso é pouco.
A crítica estigmatizada
O que talvez até explique a conclusão do semanário neoliberal The Economist ao fazer a lista das “reformas” que beneficiariam a França (“modernizar” o setor público, “flexibilizar” o mercado de trabalho etc.): “Muitas mudanças obrigariam os franceses a adotar certas características do modelo americano.” [4]Isso também explica que a compreensível oposição do general de Gaulle à hegemonia diplomática e monetária dos Estados Unidos seja ainda qualificada de “antiamericana”, mesmo por autores sérios: “O termo é apropriado em se tratando de um homem de Estado que pretendeu por um fim a uma ordem construída por e para a América.” [5]A crítica do imperialismo, tanto quanto a do neoliberalismo, é, dessa forma, estigmatizada por uma imputação insuportável de xenofobia, pelo único motivo de que tal crítica visa, naturalmente, o país capitalista mais avançado e a metrópole do império.
Brent Scowcroft, antigo assessor para questões de segurança nacional dos presidentes Ronald Reagan e George Bush, declarou recentemente: “Nós não pensamos o suficiente no efeito de nossas ações sobre os outros. Nós não consultamos, não prevenimos. Nós nos conduzimos um pouco como uma potência colonial.” [6]Talvez ele estivesse reagindo à recusa de seu país em ratificar o tratado de não-proliferação nuclear. Ou àquela em participar do Tribunal Penal Internacional. Ou em banir as minas anti-pessoais. Ou ainda a recusa em pagar suas cotas nas organizações multilaterais… Ele poderia, igualmente, ter em mente a arrogância peremptória de Zbigniew Brzezinski, seu antecessor na administração Carter, para quem a “única solução de substituição da liderança norte-americana é a anarquia internacional”. [7] Talvez Scowcroft seja, ele próprio, um antiamericano sem sabê-lo.
Há quase meio século, Simone de Beauvoir escrevia: “Os Estados Unidos são o país onde a opressão capitalista triunfou.” E, da guerra fria até os anos 80, o “antiamericanismo” dominante enfatizou o contraste entre o ideal norte-americano da liberdade de expressão e a caça às bruxas; o da igualdade de condições e a segregação racial; o da democracia política e o apoio a regimes tirânicos. Esse antiamericanismo era, no fundo, muito pró-americano. Levava os Estados Unidos a sério e não admitia confundí-lo com a imagem macartista, puritana, feliz e “patriótica” de Bill Rogers, John Wayne ou Ronald Reagan. Ao Alamo e à guerra do Vietnã, opunha outras epopéias: aquelas do romancista socialista Upton Sinclair contra a selva industrial, a dos militantes anarquistas Sacco e Vanzetti, a das Vinhas da Ira, a de Malcom X. Seriam eles também antiamericanos?
O “excepcionalismo americano”
Um estudante de ciência política medianamente aplicado não ignora a abrangência do conceito de “excepcionalismo americano”, caso contrário, prateleiras inteiras de bibliotecas universitárias o instruiriam. Não se trata da extensão do país, nem de sua riqueza, nem do folclore de seu povo, porém essencialmente dos vestígios de uma história pouco transformada por um projeto revolucionário. Sem um exagero indevido, a característica, a especificidade, a exceção americana foi a de jamais ter abrigado um movimento socialista forte e duradouro, de ter resistido por mais tempo que os outros à construção de um “Estado-Providência” (e de ser o primeiro a desmantelá-lo), de aceitar, sem qualquer angústia inútil, um nível de desigualdade superior ao do país com maior desigualdade da Europa. [8]Se é disso que trata o excepcionalismo americano, ou seja, a tranqüilidade de uma classe social que transforma a sociedade e o mundo à imagem de seus interesses particulares, então compreende-se melhor o tipo de universalismo que os conservadores pró-americanos defendem quando estigmatizam o particularismo – ou o nacionalismo – de seus adversários “retardatários”.
Atualmente, o nacionalismo tem a particularidade de ser efetivamente recusado por toda parte… a não ser quando expressamente manifestado por Washington, com os Estados Unidos dispondo, simultaneamente, do poder ideológico de o banir e dos meios militares de o subjugar. O chefe de redação da edição internacional de Newsweek admitiu recentemente: “Para a maioria dos norte-americanos, o desprazer suscitado, entre os não-americanos, pelos aspectos imperialistas do poder e da globalização, permanece um verdadeiro mistério. Pois para eles é um artigo de fé: uma das especificidades de seu país é a de não procurar conquistar outros países ou dominar suas culturas.” [9]E ele não o faz porque pensa não ter nenhuma necessidade disso, uma vez que a superioridade de seu sistema lhe salta aos olhos. O editorialista Richard Reeves, ridicularizando seus compatriotas, até sugeriu que a religiosidade dos norte-americanos devia-se “à crença de que são tão superiores aos outros que imaginam ter sido criados por algo maior que o homem ou a química”.
A hegemonia cultural do paradigma neoliberal
Além de fundamentada no desconhecimento da realidade internacional, tão comum nos Estados Unidos, essa segurança ou embriaguez consolidou-se no contexto do pós-guerra fria. A hegemonia cultural do paradigma neoliberal e a duração, sem precedente histórico, do atual ciclo de crescimento dos Estados Unidos, tiveram o efeito de reafirmar a certeza de que os valores “americanos” levaram a melhor. Não apenas sobre o “coletivismo”, mas também sobre seus supostos sucedâneos (o “colbertismo”, na França, o “meijismo” no Japão). Para os governantes norte-americanos e para suas obcecadas caixas de ressonância nos meios de comunicação, qualquer outro modelo deixou de ser legítimo. A globalização tem, inevitavelmente, as características dos Estados Unidos uma vez que esse país conseguiu a “combinação sutil entre os provedores da Internet e os mísseis de longo curso.” [10]
Porém se o nacionalismo norte-americano também parece marcado pela “excepcionalidade”, se um intenso movimento intelectual e jornalístico populariza as escolhas do império, é também porque tal nacionalismo adquire outros atributos além de potência. Mais ético e ideológico do que territorial, ele pertence ao fundo comum da humanidade inteira. Por isso, somente ele pode tachar seriamente de “xenófobos” os manifestantes chineses que protestaram contra o bombardeio assassino de sua embaixada em Belgrado. Ou de “antiamericanos”, os canadenses que consideram ser excessivo que 60% dos livros, 75% da música que é tocada, 80 % das revistas e 96 % dos filmes venham do exterior, ainda mais quando a grande maioria dessas importações vêm de um único país, ele próprio pouco aberto a culturas estrangeiras, à exceção dos poucos bairros visitados pelos americanófilos. Porém, criticar a “hiperpotência” dos Estados Unidos seria, hoje, opor-se ao mesmo tempo à “modernidade” e ao “melting pot”. Pois nos é explicado que “a multietnicidade americana põe até em causa a homegeneidade lingüística, cultural e étnica que compõem os pilares do etno-nacionalismo.” Nessas condições, contestar “o pluralismo à americana” só pode desembocar em um forma de “fusão ideológica entre a esquerda comunista e a direita nacionalista.” 11 À espera da guerra. O raciocínio binário, como se pode ver, é maravilhosamente desconfortável: ou democratas à americana, ou “vermelhos-amarronzados” E tudo em nome do “pluralismo”…
A tentação do modelo universal
Por que os Estados Unidos resistiriam à tentação de aumentar a vantagem num momento em que deixaram de ser excepcionais, tornando-se praticamente o modelo universal? Efetivamente, como lembra o célebre cientista político Seymour Martin Lipset, “à medida em que os partidos social-democratas se viraram para o mercado, as diferenças entre os Estados Unidos e as outras democracias européias tornaram-se diminutas. […] A eleição britânica de 1997 constituiu um momento chave dessa virada. […] Marcou o final de um século de esforços socialistas visando a eliminar, na Europa, a propriedade privada dos meios de produção. […] As sociedades do Velho Continente seguem o rastro americano: sua consciência e sua organização de classe esmorecem.” Ora, deve-se lembrar que era justamente a ausência de contestação do modo de propriedade dominante que diferenciava os Estados Unidos.
“Há duas exceções européias a esse abandono do socialismo”, acrescenta Lipset. “Uma é a Noruega […] e a outra é a França.” É compreensível, portanto, por que os caprichos destes últimos retardatários aborreçam tanto. Até os norte-americanos que, como os jornalistas da Newsweek, se mostram solícitos: “No fundo, há menos antiamericanismos do que cremos. […] Os europeus não são idiotas. Além dos membros do comitê de redação do Monde Diplomatique, são raros os que sonham em rivalizar com o poder militar ou político dos Estados Unidos e dispensar, para isso, os bilhões de euros necessários.” [11]E o grande semanário conclui sua pesquisa com esta frase plena de comiseração: “Os que detestam a América, destestam-se a si próprios.” Um bom psicanalista acaba com isso.
Leia mais sobre o tema, nesta mesma edição:
Serge Halimi é o diretor de redação de Le Monde Diplomatique (França).