A pandemia que não acabou
Milhões de brasileiros ainda convivem com sintomas da covid longa, e uma nova plataforma revela como a desinformação e a negligência agravaram a crise sanitária no país
Em 12 de março de 2025, o Brasil completou cinco anos desde a primeira morte por Covid-19 no país. A pandemia, amplificada por decisões governamentais que ignoraram evidências científicas, atingiu picos devastadores, chegando a matar mais de 3,3 mil pessoas por dia. No total, mais de 715 mil vidas foram perdidas, um número que ecoa como um alerta sobre os impactos de uma crise sanitária mal gerida.
No entanto, a pandemia não ficou no passado. Seus efeitos ainda se fazem sentir em múltiplos aspectos da sociedade brasileira. E, para uma parte da população, a Covid-19 nunca acabou. Perda de memória, dificuldade de concentração, fadiga incapacitante, dores de cabeça constantes e até queda de cabelo se tornaram parte do cotidiano de milhares de brasileiros que convivem com a chamada covid longa – ou síndrome pós-covid. Apesar do crescente reconhecimento dessa condição, suas causas e consequências ainda são um mistério para a ciência e um desafio para o sistema de saúde.
Uma pesquisa de opinião pública conduzida pelo Centro de Estudos Sociedade, Universidade e Ciência (SoU_Ciência), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), revelou que 40,6% dos 1.295 entrevistados relataram ter contraído Covid-19 entre 2020 e 2023. Dentre essas pessoas que tiveram a doença, 33,4% continuaram apresentando sintomas por pelo menos três meses após a infecção.
O estudo de autoria de Celia Cavalcanti, estudante da Escola Paulista de Medicina (EPM), e demais pesquisadores da Unifesp, publicado na revista Ciência & Saúde Coletiva, identificou como sintomas mais frequentes fadiga (44,6%), dor de cabeça (43,7%), queda de cabelo (40,9%), perda de memória (34,7%) e dificuldade de concentração (28,7%). Além disso, mulheres, pessoas sedentárias e não vacinadas tiveram maior prevalência de sintomas persistentes, reforçando a necessidade de acompanhamento médico e políticas de saúde voltadas para esses grupos. “De modo geral, as pessoas ainda desconhecem a covid longa, pois é um tema pouco abordado junto à população. Nossa pesquisa conseguiu identificar os sintomas persistentes, além de informar a sociedade sobre a correlação desses sintomas com a fase aguda da doença”, conta a pesquisadora.
Os achados da referida pesquisa brasileira corroboram resultados de outros estudos internacionais. Um deles, assinado por Benjamin Bowe, Yan Xie e Ziyad Al-Aly, do Centro de Pesquisa, Desenvolvimento e Epidemiologia Clínica, da Universidade de Saint Louis (EUA), e publicado na Nature Medicine, acompanhou, por dois anos, 138.818 indivíduos infectados pelo SARS-CoV-2 e um grupo de controle de quase 6 milhões de pessoas não infectadas para avaliar os impactos da covid longa.
Os resultados mostraram que, embora o risco de morte entre os não hospitalizados tenha diminuído após seis meses, aqueles que foram hospitalizados continuaram com risco elevado por todo o período analisado. Entre os oitenta desfechos de saúde avaliados, 69% dos sintomas deixaram de ser significativos em dois anos entre os não hospitalizados, enquanto apenas 35% dos sintomas desapareceram nos hospitalizados. As sequelas mais persistentes incluíram distúrbios cardiovasculares, neurológicos, de saúde mental, metabólicos e pulmonares. O estudo alerta para o peso cumulativo da covid longa, evidenciado pelo impacto significativo na qualidade de vida e na necessidade de assistência médica prolongada.
Para os pesquisadores do SoU_Ciência, o apoio das autoridades de saúde para os indivíduos que passaram por reinfecções de Covid-19 é fundamental, e deve ser visto como prioridade, com cuidados ofertados por equipes multiprofissionais. “Ao aumentar o debate público sobre o tema, a sociedade é capaz de cobrar as autoridades de todas as esferas de poder, demandando melhores cuidados e políticas efetivas para que esse problema seja enfrentado com seriedade”, afirmam.

Responsabilização: evidências da negligência governamental que agravou a crise
O aumento dos casos de covid longa no Brasil evidencia que os efeitos da pandemia não terminaram com o fim do estado de emergência. Compreender esses desdobramentos exige mais do que estudos clínicos: requer o resgate da história recente, das decisões tomadas durante a crise sanitária e dos discursos públicos que moldaram a resposta, ou a ausência dela, por parte das autoridades. Foi com esse propósito que o Centro SoU_Ciência criou o Acervo da Pandemia de Covid-19 — uma plataforma digital que sistematiza e disponibiliza registros sobre a condução da pandemia no Brasil, com base em critérios científicos, curadoria coletiva e participação social.
“Necropolítica” foi o termo adotado pelos pesquisadores para designar as ações tomadas no período pelo poder público. O termo significa, etimologicamente, política da morte. O conceito foi proposto por Achille Mbembe, cientista político camaronês, e refere-se à ação do Estado no controle direto ou indireto sobre segmentos da população que devem viver ou morrer.
Segundo Soraya Smaili, coordenadora-geral do SoU_Ciência, o Acervo não é apenas um repositório de documentos, mas “um testemunho do que ocorreu no Brasil durante um dos períodos mais críticos da nossa história recente”. A iniciativa nasceu do esforço de reunir evidências sobre a conduta de diferentes atores institucionais ao longo da pandemia, com especial atenção à desinformação, ao negacionismo e aos seus impactos na saúde pública. “Estamos plenamente seguros de que esse trabalho é feito com base em evidências científicas, com base em documentos, com base em todas as colaborações que já fizemos”, afirmou durante a cerimônia de lançamento da plataforma.
O Acervo é resultado de uma construção coletiva iniciada em 2021, envolvendo pesquisadores e estudantes da Unifesp, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP), além de coletivos de mídia e da Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil). “Fizemos e fazemos um trabalho mais aprofundado da compilação e da reunião de dados sobre o negacionismo científico e sobre a disseminação da desinformação”, explicou Smaili. Segundo ela, o material disponível na plataforma inclui “pronunciamentos oficiais, entrevistas, publicações em redes sociais do então presidente e de membros do seu governo, que são evidências de que essa política não foi aleatória”.
Organizado com o software livre Tainacan, o Acervo permite a catalogação de diferentes tipos de registros, como pronunciamentos, vídeos, postagens em redes sociais, documentos oficiais e reportagens, todos acompanhados por metadados que informam o contexto, a data, o tipo de conteúdo, os agentes envolvidos e os links para a fonte original. Os materiais estão organizados em dezessete temas principais, como “vacinação”, “uso de máscara”, “isolamento e aglomerações”, “tratamento precoce” e “memória, verdade, justiça e reparação”, entre outros.
Um dos recursos centrais da plataforma é a seção “O que diz a ciência”, presente nos registros que incluem conteúdos classificados como discursos ou condutas contrárias à ciência. Esse item apresenta explicações técnicas, referências teóricas e pareceres fundamentados, que ajudam o público a compreender as recomendações que estavam em vigor à época e por que elas foram distorcidas ou ignoradas.
O Mapa da Necropolítica é um dos destaques visuais do acervo. Trata-se de uma representação gráfica que traduz, de forma crítica, como se estruturou a desinformação durante a pandemia. Com estética de um tabuleiro representando uma “Terra plana”, o mapa conecta decisões políticas, discursos públicos e efeitos concretos na vida da população – tudo acompanhado por áudios com declarações originais de autoridades, que ajudam a compreender como discursos públicos foram usados para minar a ciência e confundir a população. “O negacionismo teve consequências concretas e, para que erros semelhantes não se repitam, é essencial que a sociedade tenha acesso a esses registros”, defende a coordenadora.
A proposta do trabalho é servir de base para pesquisadores, jornalistas, gestores públicos e a sociedade em geral, contribuindo para a formulação de políticas públicas mais transparentes, fundamentadas em evidências e comprometidas com a justiça. Como destaca Smaili, “não é apenas um momento de registro: é um momento de memória e de reparação”.
Mariana Ceci é mestranda em Divulgação Científica e Cultural (Unicamp) e jornalista científica no Centro SoU_Ciência.
Tamires Tavares é jornalista científica no Centro de Estudos SoU_Ciência e especialista em Jornalismo de Dados.