A pantera: uma introdução à luta dos povos oprimidos nos EUA

RAÇA, CLASSE E REVOLUÇÃO

A pantera desenjaulada: uma introdução à luta dos povos oprimidos nos EUA

por Gabriel Landi Fazzio
15 de setembro de 2020
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Reunindo diversos escritos do Partido dos Panteras Negras e de seus membros, a coletânea Raça, classe e revolução: a luta pelo poder popular nos Estados Unidos (Autonomia Literária, no prelo) oferece um amplo panorama das ideias que ocupavam as mentes da geração de militantes radicais negros ativos no período imediatamente posterior à luta pelos direitos civis

Seu olhar, de tanto percorrer as grades,

Está fatigado, já nada retém.

É como se existisse uma infinidade

de grades e mundo nenhum mais além.

A Pantera, por Rainer Maria Rilke (Cia. das Letras, 2012)

 

Nos Estados Unidos, o idealizado berço da democracia formal moderna, a situação do povo negro é – ainda hoje e há muito tempo – um sintoma escancarado da desigualdade social. Proclamada a República (1787), fez-se ainda necessária uma guerra civil pela abolição da escravidão (1865). Abolida a escravidão, o povo negro precisou ainda lutar mais de um século pela obtenção da igualdade jurídica e política plena (1964). E, mesmo assim; mesmo após a eleição de um homem negro à presidência; a chamada “tensão racial” segue uma marca permanente da vida política.

Então, na verdade, não deveria ser surpresa que, mais uma vez, ressoe pelo mundo a denúncia da violência estatal racista contra o povo negro dos Estados Unidos. A história só surpreende quem de história nada entende, já dizia um filósofo vermelho. Sendo assim, para que possamos compreender os motivos pelos quais a conquista dos direitos civis conduziu não à igualdade social, mas a uma luta social cada vez mais aberta e acentuada, nada melhor do que a história.

Por um lado, é a isso que se propõe o segundo volume da coleção Quebrando as Correntes: possibilitar ao público brasileiro um vislumbre histórico da luta antirracista nos Estados Unidos. Reunindo diversos escritos do Partido dos Panteras Negras e de seus membros, a coletânea Raça, classe e revolução: a luta pelo poder popular nos Estados Unidos (Autonomia Literária, 2020) oferece um amplo panorama das ideias que ocupavam as mentes da geração de militantes radicais negros ativos no período imediatamente posterior à luta pelos direitos civis. As concepções teóricas, organizativas e programáticas dessa emblemática organização revolucionária de negros e negras estadunidenses podem ser observadas em movimento, conforme evoluem no tempo – e conforme a organização atravessa as inúmeras cisões que levariam à sua dissolução.

Ademais, o volume é aberto por um prefácio dos organizadores, que introduz o leitor à história contemporânea da luta antirracista no país, com especial enfoque sobre alguns expoentes de sua ala esquerda – figuras como o intelectual W.E.B. Du Bois, os comunistas Cyril Briggs e Claudia Jones, entre outras. Expondo as bases históricas de opressão e brutalidade contra os povos negros e indígenas, sobre as quais se alicerçou a construção da democracia dos proprietários na América do Norte, o prefácio tenta desconstruir toda a “mitologia democrática” da historiografia dominante sobre os Estados Unidos. Um esforço que, evidentemente, buscar provar-se de maneira ainda mais precisa com base em todos os relatos e discursos contidos na sequência da coletânea.

Mas esta obra não busca contribuir apenas para o debate em torno da chamada “questão negra”. A coletânea reúne também artigos de diversas organizações “irmãs” do Partido dos Panteras Negras: os porto-riquenhos Jovens Senhores, os Jovens Patriotas dos Apalaches, os mexicanos Boinas Marrons, os militantes asiáticos do I Wor Kuen, entre tantos outros. Com isso, não só revela-se de forma contundente toda a penetração das concepções dos Panteras Negras entre os povos “de cor” (expressão utilizada entre estes movimentos para se referir a todos povos oprimidos não brancos), mas o esforço comum desses movimentos em forjar alianças uns com os outros, para uma luta unificada contra o racismo e a exploração.

Esses esforços pela unidade – expressos com nitidez na articulação da chamada Coalizão Arco-Íris de Solidariedade Revolucionária e da Conferência por uma Frente Única contra o Fascismo – guardam íntima relação com as próprias concepções teóricas dos Panteras Negras sobre as bases e o significado histórico-social do racismo. E essa é, sem dúvida, uma das principais contribuições que as reflexões dos Panteras têm a nos oferecer, nos dias de hoje.

Após a conquista dos direitos civis, uma divergência cada vez mais acentuada se abria, no seio do movimento negro, entre sua ala socialista e sua ala nacionalista-cultural. Vale lembrar que, não muitos anos antes, Malcom X havia adquirido cada vez mais proeminência na opinião pública estadunidense, após sua ruptura com a autodenominada Nação do Islã, atacando os métodos e concepções desta organização. Aqui, Malcom lançava as sementes de uma crítica que, sob os Panteras, floresceria e vicejaria. Polemizando duramente contra os seguidores de Marcus Garvey e contra a Nação do Islã, os Panteras Negras podem ser considerados os grandes pioneiros da crítica ao que hoje chamamos de política identitária: a busca pela emancipação por meio da performance estético-cultural, do “empoderamento” de mercado e do isolamento e hostilidade em relação aos movimentos progressistas dos trabalhadores brancos. Denunciando o caráter reacionário dessas tendências, os Panteras Negras buscavam forjar, na luta, laços com as organizações de todos os povos oprimidos, com o movimento operário radical e com as organizações socialistas de vários matizes.

Para os Panteras, como os textos da coletânea evidenciam, o empoderamento do povo negro não podia ser limitado ao resgate de sua autoestima, de suas vestimentas, de seus símbolos tradicionais. Nesse campo, inclusive, a própria estética do Partido dos Panteras Negras dá testemunho do esforço destes em criar uma nova identidade negra, associada ao engajamento político, em detrimento da identidade baseada na idealização das tradições africanas. A África à qual os Panteras Negras voltavam suas esperanças e sonhos não era a África das rainhas e reis escravistas e feudais, das antigas sociedades de classes antigas, mas a África contemporânea, aquela das lutas pela libertação nacional e pela construção do socialismo.

Assim, quando falavam na luta pelo poder, os Panteras Negras não se referiam à mera representação do povo negro no seio da democracia parlamentar burguesa – se referiam à conquista da efetiva democracia para o povo negro pela luta, mediante sua auto-organização independente, mas em aliança com todas as demais camadas exploradas e oprimidas das massas estadunidenses. Na concepção destes, a luta pelo poder negro dizia respeito à construção dos próprios instrumentos de poder da massa negra, para além do Estado dos proprietários, tomando em suas mãos a solução dos inúmeros problemas que afligiam a população das periferias das grandes cidades: a saúde, a educação, a alimentação e, em especial, a sua autodefesa.

Era essa a lição histórica do povo negro que os Panteras expressavam com particular nitidez: a defesa da autodefesa. Pudera: a despeito da vitória na luta pelos direitos civis, os anos subsequentes foram de intensa ofensiva reacionária. Em 1965, Malcom X seria assassinado. Em 8 de fevereiro de 1968, a morte de três estudantes em meio às manifestações em Orangeburg, na Carolina do Sul, produziriam uma onda de indignação. Em 4 de abril do mesmo ano, o assassinato de Martin Luther King também contribuiria para deflagrar uma onda de revoltas em mais de 115 cidades, notadamente em Louisville, Baltimore e Washington.

Bem quando o movimento de massas conquistava a igualdade formal para o povo negro; ao mesmo tempo, lideranças destacadas eram assassinadas, e seguiam em alta os linchamentos contra negros, em especial no Sul, e a brutalidade policial nos grandes centros urbanos. Não deveríamos nos espantar, então, que em 1966 venha à tona o Partido dos Panteras Negras para Autodefesa, pregando o armamento geral do povo negro e a mais obstinada luta direta contra a polícia reacionária e as organizações supremacistas brancas – e que esse exemplo tenha se disseminado entre todos povos oprimidos dos Estados Unidos, como um rastilho de pólvora.

Mas nem toda a autoconsciência e preparo dos Panteras Negras evitaria que estes tivessem o mesmo fim de seus antecessores. Os assassinatos políticos de promissores dirigentes se contam às dezenas, e a morte de Fred Hampton (que envolveu diretamente o próprio FBI, além da polícia de Chicago) é apenas o caso mais emblemático.

Ainda assim, suas reflexões e experiências nos legam diversas lições. Em uma época em que, fartamente financiado pelos thinks tanks do empresariado liberal, prolifera o identitarismo anticlassista entre os movimentos dos povos oprimidos; e em que todo o tipo de ilusão jurídica e promessa constitucional, incrustadas no senso comum progressista, bloqueia a visão da profundidade da crise social que vivemos e da radicalidade revolucionária necessária à sua solução; nesta época em especial, vêm a calhar os ensinamentos que podemos extrair dos Panteras Negras.

Para que possa quebrar as correntes de sua jaula, a pantera oprimida de Rilke (que abre em epígrafe este artigo) precisa antes perder suas ilusões sobre sua situação. Só assim – marchando ao lado de toda a fauna das criaturas exploradas que habitam esse mundo, feito em cativeiro de muitos em benefício de uns poucos – poderá fazer ecoar e triunfar seu clamor por justiça, dignidade e poder popular.

 

Gabriel Landi Fazzio é metroviário e advogado trabalhista, bacharel pela USP. Assíduo leitor de Lênin, atua como editor e tradutor no blog Lavra Palavra e milita no Partido Comunista Brasileiro.



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