‘A partir da Amazônia posso escrever sobre o mundo’: uma literatura para além do eixo
O meu projeto literário é só uma das opções possíveis: ficção fantástica e especulativa tendo por base a cultura e a história da Amazônia, essa região situada na periferia da periferia do capitalismo mundial. Mas que para nós, amazônidas, é o centro da nossa forma de vida.
A Amazônia é uma floresta de símbolos, mitos e histórias quase inesgotável para a criação literária. Escrever literatura na Amazônia não significa pensá-la como mero pano de fundo para a ficção. Ela não é só cenário, é também a protagonista. Trata-se de ter uma posição epistemológica diante do que esse lugar situado no tempo e no espaço representa.
A região sempre teve papel importante na construção do mundo moderno. De acordo com Renan Freitas Pinto, as categorias como natureza/cultura e civilização/barbárie foram formuladas a partir das descrições que os cronistas faziam do Novo Mundo. Hoje, categorias como sustentabilidade, devastação ambiental e o lugar dos povos originários estão no centro dos debates globais e a Amazônia tem papel preponderante.
Essa é a bússola criativa de A Lança de Anhangá, meu novo livro de contos recém-publicado pelo selo Cachalote, iniciativa da Editora Aboio. As consequências da modernidade, a barbárie do genocídio, do epistemicídio e do fim de todas as coisas. Sou um decadentista amazônico: falar sobre a destruição e a decadência é também falar sobre recomeços e possibilidades de futuro. Essa conclusão eu cheguei em 2020, quando defendi meu doutorado na área do pensamento político na UNESP e queria voltar a escrever. Um amigo escritor disse que eu deveria me concentrar em usar a região como matéria-prima para construir meu mundo ficcional.
Aqui não há romantismo sobre o processo literário. Escrever é uma atividade como qualquer outra. Requer planejamento, dedicação, meticulosidade, estudo e pesquisa. Eu escrevo como um carpinteiro faz um móvel ou um pedreiro faz uma casa. Eu sou um operário da palavra.
A literatura regional é muito mais variada e plural do que era há cinquenta anos. No passado, quando se falava em ficção regional, pensava-se numa forma narrativa que dialogava com a vida no interior, o modo de vida tradicional do ribeirinho e a vida em pequenas cidades. É um projeto válido. Um dos meus heróis no conto, Arthur Engrácio, tinha essa proposta. Mas agora há um leque maior de possibilidades. Há a literatura marginal, com Aritana Timbira e Márcia Antonelli; há o romance Terra Úmida, da premiada Myriam Scotti; há Madnaus, da Susy Freitas com sua literatura urbana e irônica; e há Milton Hatoum, que mistura memorialismo com críticas ao contexto político e social do Brasil durante o período autoritário.
O meu projeto literário é só uma das opções possíveis: ficção fantástica e especulativa tendo por base a cultura e a história da Amazônia, essa região situada na periferia da periferia do capitalismo mundial. Mas que para nós, amazônidas, é o centro da nossa forma de vida.
O que quero dizer com isso, é que a partir da Amazônia posso escrever sobre o mundo. Usar como ponto de partida toda essa floresta de símbolos e histórias é ser, ao mesmo tempo, universal e regional, local e cosmopolita. Porque a melhor literatura é aquela que reflete a contradição sistêmica, a anomia universal e os dramas vividos que assombram todos nós, tanto os vencedores quanto os perdedores.
Ricardo Kaate Lima é doutor em Ciências Sociais pela UNESP (Interpretações da Amazônia: o pensamento conservador em Arthur Cézar Ferreira Reis e Leandro Tocantins), professor do Instituto Federal do Amazonas, autor de O Fim de Todas as Coisas (2021) e A Lança de Anhangá (2024) e vencedor do prêmio literário Cidade de Manaus (2022).