A patologização do fascismo
Esses que fomentam e participam de movimentos neofascistas não são doentes e nem loucos
Dezembro de 2022. Há um movimento neofascista em curso no Brasil. E não é de hoje. Indivíduos, coletivos e instituições têm usado a violência como estratégia, e um projeto de governo baseado no ódio e na exclusão estimulou o uso de armas de fogo, rechaçou direitos humanos, dizimou indígenas e perpetrou discursos e práticas racistas, sexistas e homofóbicas. Nos últimos anos, não foram realizadas políticas públicas de proteção social, e as que existiam foram duramente atingidas. E mais de 600 mil pessoas morreram em decorrência de uma pandemia – propositalmente – sem controle. Até a fome voltou, e atinge 15% dos domicílios e 33 milhões de pessoas no país.[1]
O projeto de governo vigente dividiu e separou, sob a égide do pensamento rasteiro de pessoas e grupos ligados à extrema direita e à ideologia bolsonarista. Se não bastasse, esses mesmos grupos, passada a eleição presidencial, que sacramentou a vitória democrática de Luiz Inácio Lula da Silva, agora pedem a volta da ditadura militar, que violentou, torturou e assassinou milhares de pessoas há pouco mais de quatro décadas.
Acampamentos em frente a quarteis militares e bloqueio de rodovias dão o tom. Mas não fica nisso. Tem sido comum atos pedindo a volta da ditadura por meio de orações à Deus; pedido de socorro a extraterrestres; pessoas penduradas em para-brisa de caminhão; batendo continência a pneus; chorando; gritando ajoelhadas na chuva e no frio; fazendo saudação nazista, com fome, se amordaçando e entoando frases estúpidas de atentado à democracia. Nunca havíamos presenciado greve em frente à quartel general, nem o uso dos próprios filhos como cordão humano. Uma sandice.
Entretanto, sandice – ato que representa ignorância, tolice ou falta de inteligência – não é sinônimo de doença ou transtorno mental, como tem sido caracterizado aqueles que praticam ou estimulam os atos – suicidas – pela volta da ditadura militar. Não são loucos e nem doentes. São fascistas, que buscam pela força, pelo autoritarismo e por atos ilegais descaracterizar um pleito eleitoral para seguir violentando grupos populacionais. São práticas fascistas oriundas de um processo de subjetivação que utiliza religião, ideologia, notícias falsas, redes sociais, robôs e mentiras para criar uma realidade paralela. Vale tudo.
Esses atos são oriundos da subjetivação individual e coletiva colocadas em prática pelo que Foucault[2] denominou de governamentalidade, na qual o poder é operacionalizado pela ordem do governo por meio de procedimentos e táticas que permitem conduzir a conduta dos indivíduos. Envolve as estruturas do Estado, a micropolítica das relações, o governo de si, o individual, o coletivo e as macroestruturas institucionais.[3]
Se antigamente isso era feito através do poder infinito do Rei, depois com a conduta regulada da disciplina, o que se observa é uma ampliação do poder, que atua de modo cada vez mais profundo e imperceptível. Governar, nesse caso, é conduzir a conduta do outro, exercer ação sobre suas ações possíveis, pensar a melhor maneira de conduzir a população. Para isso, dispõe não de virtudes principescas, mas de estratégias, de dispositivos de poder que buscam a destruição da democracia. Dessa forma, por mais absurdo que pareça, o fascismo segue vivo. Um neofascismo social e político.
O fascismo, aqui, é caracterizado como um regime de relações de poder exercidas no âmbito da sociedade que concede à parte mais forte a prerrogativa de veto sobre a vida do outro e decide o modo de existência dos mais fracos. Historicamente, a aparição do fascismo como força dominante ocorreu em 1922, com a emergência do Partido Nacional Fascista italiano, e “terminou” em 1945, com a derrota e morte de Benito Mussolini e Adolf Hitler. Além da Itália e da Alemanha, há registros de movimentos fascistas na Áustria, Bélgica, Grã-Bretanha, Finlândia, Hungria, Romênia, Espanha, África do Sul e Brasil.[4]
Nos últimos anos, grupos neofascistas ressurgiram na sociedade contemporânea, adotando um regime social de distinções estabelecidas por linhas radicais que dividem a população em dois grupos: “deste lado” versus o “outro lado” da linha.[5] O “outro lado” desapareceu como realidade para aqueles que detinham o poder político e social, constituindo um universo condenado à sub-humanidade, onde vivem os excluídos: negros, pobres, gays, lésbicas, travestis, mulheres, indígenas ou simplesmente quem não se identifica com a política bolsonarista. Frases ditas pelo presidente Jair Bolsonaro como “vamos fuzilar a petralhada”, no Acre, e “você não merece ser estuprada”, à Maria do Rosário, são exemplos claros. E não tem nada de loucura nisso.
Esses que fomentam e participam de movimentos neofascistas não são doentes e nem loucos, e não se deve patologizar esse tipo de prática social. Loucura é oposta ao fascismo. Justamente o contrário. Loucura é potência, é uma condição de viver que se opõe radicalmente às normas e às convenções sociais. É diversa e foge da normalização, do padrão de como se comportar em uma sociedade excludente. Loucura é afeto e sensibilidade. E não violência.
Não são necessárias intervenções psiquiátricas, como se tem bradado, e patologizar o fascismo em curso é abrandá-lo, descaracterizá-lo e amansá-lo à condição vulnerável de doente. Apologia à ditadura é crime segundo a Lei de Segurança Nacional, a Lei dos Crimes de Responsabilidade e o Código Penal brasileiro. Na verdade, esses que clamam pela volta da ditadura não precisam de cuidado, como é primordial aos doentes. Precisam que a lei seja cumprida.
E, por favor, respeitem os loucos.
Roger Flores Ceccon é professor na Universidade Federal de Santa Catarina.
[1] Rede Penssan. Inquérito nacional de insegurança alimentar no cenário da Covid-19. Rio de Janeiro: Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, 2021.
[2] Foucault, M. O sujeito e o poder. In Filosofia, diagnóstico do presente e verdade (A. Chiaquieri, Trad., pp. 118-140). Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.
[3] Foucault, M. Segurança, território e população. Tradução: Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
[4] Neuhauser, S. Wir werden ganze Arbeit leisten: Der austrofaschistische Staatsstreich 1934: Neue kritische. Norderstedt, GERM: Books On Demand, 2004.
[5] Santos, B. S. (2007). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Novos Estudos (Cebrap), 79,71-94, 2007.