A pauta é uma arma de combate
Leia um trecho do livro da jornalista Fabiana Moraes, “A pauta é uma arma de combate”, publicada pela editora Arquipélago em setembro.
É bastante comum, quando falo sobre o jornalismo de subjetividade, concepção teórica-prática ouvir as perguntas: “mas como isso se aplica no dia a dia? Como fazer um exercício de reflexão na correria cotidiana do jornalismo?” São questionamentos mais que pertinentes, principalmente quando pensamos em um ambiente profissional entrecruzado por mudanças radicais no modelo de negócio, sobrecarga de trabalho, precarização de postos e muita competição. Há também quem me interpele comentando que tal possibilidade é privilégio de jornalistas com mais experiência e espaço profissional consolidado ou, ainda, que só grandes reportagens podem comportar tais características, impossíveis de serem exercitadas em gêneros jornalísticos entendidos como mais “modestos”, como a notícia diária.
A pressa, o tempo de exercício profissional e o maior espaço e profundidade nas investigações jornalísticas são assuntos importantes para pensar no resultado do conteúdo noticioso, de fato. Mas eles não explicam questões como a permanência do racismo e do classismo comuns nos veículos diários, tampouco a exotificação de populações indígenas ou nordestinas, para ficar apenas em alguns exemplos. Também consagram somente à reportagem o lugar de um melhor jornalismo, como se a notícia cotidiana não fosse justamente aquela que nos transpassa com maior continuidade, fomentando imaginários, dizeres e saberes. Quero responder melhor a essas questões aqui, a partir de uma contextualização sobre a importância do casamento entre teoria, reflexão e prática. Este livro é resultado dessa tríade. Tive sorte: são mais de duas décadas trabalhando como jornalista, boa parte delas em uma mesma redação e eventualmente colaborando com outros veículos. Mais da metade desse tempo também foi dedicada à pesquisa acadêmica, na qual me interessavam — e interessam — questões como valores-notícia, exclusão, celebrificação do cotidiano, pobreza, epistemologia jornalística, arte, racismo, objetividade e, claro, subjetividade. Assim, enquanto estudava o jornalismo, eu também o exercia diariamente. Esse fazer pensando e pensar fazendo mostraram, para mim, que há espaço para produzir uma abordagem complexificada dos fatos cotidianos, sejam eles inéditos, sejam eles questões sociais com as quais convivemos há tempos e que já nos parecem ordinárias. Penso que estas, pelo grau de naturalização que adquirem ao se perpetuarem no dia a dia, são as que mais desafiam o olho da jornalista.
O “lugar” dessa produção complexificada é a pauta.
Ainda pouco teorizada para além de uma análise não tecnicista e epicentro do objetivismo que impregnou — e ainda impregna, veremos — o fazer jornalístico, a pauta é a consolidação do conceito, da abordagem e das perguntas que uma profissional da imprensa (e da comunicação, de maneira mais ampla) faz das coisas do mundo. É a coluna vertebral da notícia, aquilo que dá forma ao conteúdo jornalístico oferecido ao público. Nesse sentido, é preciso pensar justamente em que conceitos, abordagens e perguntas fazemos sobre as questões que nos interpelam socialmente, ou seja, em como se constitui essa pele da notícia produzida. Ela nasce em (e é constituída por) uma base racializada, generificada, hierarquizada e que se percebe como fiadora de uma humanidade e de uma verdade universais.
A pauta vai enquadrar algo, a partir de um ou poucos olhares, que será compartilhado para um público mais amplo. Ela diz: algo está acontecendo e vocês devem saber. Ouvi o artista chileno Alfredo Jaar falar sobre isso ao discutir as imagens que consumimos diariamente e penso que podemos aplicar o mesmo aqui. As imagens nunca são inocentes, nos diz ele. Bem, as pautas jornalísticas também não.
Assim, tanto os elementos presentes na concepção de uma reportagem quanto aqueles que foram descartados são sempre escolhas políticas e, sim, também arbitrárias. Toda pauta organiza e desorganiza visibilidades e invisibilidades, toda pauta hierarquiza e desierarquiza vozes e representações, toda pauta estrutura e desestrutura discursos. Toda pauta é uma arma e, sendo assim, toda pauta também pode ser uma arma de combate: ela pode servir para ir de encontro a uma desumanização também alimentada pelo próprio jornalismo. É uma tecnologia à disposição de um agir.
Uma vez, durante uma palestra e meio de brincadeira, parafraseei o sociólogo francês Pierre Bourdieu, autor que me animou durante a escrita da tese que realizei sobre mulheres periféricas e o consumo de revistas de celebridades. “A sociologia é um esporte de combate, um meio de defesa pessoal”, cravou ele em uma entrevista filmada para um documentário. Sociólogo afiado que era, Bourdieu pensa aí o pessoal sem abrir mão do coletivo, algo pertinente à sua própria trajetória (de filho de camponeses ao consagrado Collège de France), sempre articulada aos fenômenos que atravessavam a sociedade. A escritora bell hooks fez esse caminho de maneira ainda mais marcada: trazia o “de dentro” (de si, da casa, das relações pessoais) para teorizar o lá fora, algo extremamente importante principalmente quando pensamos, por exemplo, que boa parte da história das mulheres foi e é relacionada ao lar, ao particular, à participação tantas vezes precarizada na vida pública. Digo isso para deixar exposto que este livro traz muito sobre mim, e isso não o faz menos teórico ou acadêmico. A crença em uma atividade reflexiva “pura” e descolada de si é apenas mais uma estratégia que guarda tanto intenções de manter privilégios no campo quanto comporta umas boas doses de racismos e outros preconceitos mantidos escondidinhos por parte do campo acadêmico. Sem a reflexão sobre minha prática, este livro não existiria.
Acredito que o jornalismo e a maioria dos seus gêneros — a notícia, a charge, o editorial, a coluna, e, claro, a reportagem — também podem ser incríveis meios de desmantelar bombas. Foi primeiramente por isso que passei a sentir imenso incômodo, trabalhando como jornalista, com as defesas técnicas sobre questões indesculpáveis da profissão. Eu sabia das escolhas diárias, dos enquadramentos, das violências presentes no material diariamente noticiado dentro de uma embalagem de isenção e distanciamento. Sabia como nos relacionávamos com os ambientes de poder, sabia como reproduzíamos estereótipos. Sabia, finalmente, que as pautas, enquanto armas, apontavam muitas vezes para nossa própria cara. Obviamente, essa não era uma característica específica da redação na qual eu trabalhava, mas uma marca do próprio jornalismo: seguíamos manuais e práticas adotados por várias redações. Assim, escrever a partir de uma perspectiva que procurasse estancar vícios nem um pouco inocentes também passava por pensar nos vícios do próprio campo. Eram esses os combates. Neles não cabia nem cabe um agir heroico, mas um agir crítico, criativo e coletivo.
Há uma questão que precisa ser dita de saída: tema e pauta não são a mesma coisa, apesar de muitas vezes, mesmo entre jornalistas mais experientes, essa confusão ser comum. Racismo, corrupção, meio ambiente são temas guarda-chuvas, nos quais há uma infinidade de possibilidades de pautas, de maneiras de enquadramento. Já um livro mostrando como os bancos e o setor imobiliário dos Estados Unidos impediram ou prejudicaram pessoas negras a ter suas próprias casas (trabalho de Keeanga Yamahtta Taylor, finalista do prêmio Pulitzer em 2020) nasce de uma elaboração não só do tema racismo, mas também do tema corrupção. Esse entendimento da capilaridade dos fenômenos sociais é central para construir artigos, análises, livros, reportagens.
Então reformulo: toda pauta, quando tratada reflexivamente, é uma arma de combate.
A materialização de uma prática mais reflexiva e situada vai se dar, por exemplo, a partir do desenho da pauta, das perguntas que serão feitas, das pessoas que serão ouvidas e vistas na matéria ou reportagem. De um olhar crítico sobre como noticiamos historicamente pessoas, grupos, lugares, temas. Por reflexiva e situada, me refiro a um aspecto fundamental na discussão acerca do jornalismo de subjetividade: a compreensão de que, enquanto agentes sócio-históricos, não produzimos e reproduzimos um saber descorporificado, como sugeria e sugere a perspectiva cientificista-objetivista impregnada no jornalismo. Essa discussão é pertinente a várias correntes nas ciências sociais, entre as quais os estudos feministas (Sandra Harding, bell hooks, Donna Haraway etc.); na educação (Allan da Rosa, Paulo Freire etc.); nos estudos decoloniais (Ramón Grosfoguel, Maria Lugones etc.); na filosofia (Denise Ferreira da Silva); e, felizmente, na comunicação (Marcia Veiga, Erick T. Villanueva, Cremilda Medina, Rosane Borges, Muniz Sodré etc.).
Quero chamar atenção para um ponto central, adentrando ainda mais esse caminho: essa objetividade com cor, gênero, endereço e poder também permeia e se confunde muitas vezes com os procedimentos técnicos necessários ao jornalismo aqui citados, uma vez que os mesmos são instrumentalizados para justificar, frequentemente, o injustificável. Explico melhor a partir de um critério objetivo citado ainda há pouco por mim: a “busca de fontes variadas e compatíveis ao assunto em tela”. Esta ação necessária, realizada por diversas/os e competentes jornalistas, não fez com que, por exemplo, o resultado dessas buscas trouxessem historicamente à praça pública pessoas negras, principalmente enquanto especialistas, como dotadas de um saber socialmente mais valorizado. O mesmo fenômeno se repetiu em relação às mulheres. A elaboração de projetos como Entreviste um Negro (um banco de fontes especializadas fundado pela jornalista Helaine Martins) e portais jornalísticos voltados à cobertura relacionada às mulheres (como Catarinas, Gênero e Número, AzMina) são respostas a um cenário não só de baixa representatividade e apagamento, mas antes a uma realidade na qual o próprio pensar desses grupos não brilhava nos rankings das agendas de fontes jornalísticas. Consequentemente, as suas falas, pensamentos, opiniões, existências, também não. Em resumo, entendo que não é possível realizar uma crítica à objetividade que é fundamental ao jornalismo sem realçar também como a mesma é tantas vezes perpassada por uma racionalidade objetiva profundamente racializada, profundamente classista, profundamente generificada.
Este livro fala sobre como o jornalismo pode servir como meio de se opor a esses cenários de destruição de humanidades. Este livro fala sobre como não há espaço, em um dos países campeões em desigualdade social e concentração de renda no mundo, para posturas “neutras” e falsamente equilibradas no jornalismo. Este livro é engajado e é antirracista; este livro é bicha, é preto, é indígena e é insurgente. Este livro quer pensar junto e não traz fórmulas mágicas. Este livro foi escrito por muitas mãos. Este livro é uma declaração de amor.
Fabiana Moraes é professora do curso de Comunicação Social da Universidade Federal de Pernambuco. É jornalista com mestrado em Comunicação e doutorado em Sociologia, ambos pela UFPE.