A perfeitamente resistível ascensão de Jair e Hamilton
Diversamente de 1964/1968, o Brasil não encara uma conjuntura de crescimento interno e internacional, mas uma crise econômica estrutural e uma desaceleração internacional na véspera de uma nova recessão. O programa econômico do governo militarizado a ser empossado em 2019 é o de um neoliberalismo privatista rampante, eivado de contradições
Os mecanismos políticos que permitiram a chegada da extrema direita ao governo do Brasil foram deflagrados em 2015, no primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, em reuniões de parlamentares opositores e situacionistas, além de juristas e economistas de todas as cores políticas e ideológicas, organizadas por um deputado federal piauiense do PSB, Heráclito Fortes. A iniciativa, como se sabe, culminou na apresentação da moção de destituição da presidenta. No mesmo ano, Jair Bolsonaro, que votou no impeachment em nome e em memória do principal torturador da ditadura militar, anunciou sua intenção de concorrer ao Planalto em 2018. O semidesconhecido parlamentar democrata cristão só tinha até então se notabilizado por ter defendido, em 1999, em entrevista à TV, o fechamento do Congresso e o assassinato de 30 mil pessoas (não sabemos se inspirado pelos 30 mil desaparecidos da Argentina), o que foi visto como uma extravagância própria de um país que elegera como deputado o palhaço Tiririca. No mesmo ano de 2014, o presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do MDB que compartilhava o Poder Executivo com o PT, criava o “blocão” de 214 deputados que em 2016 foi ampliado no “centrão”, a tropa de choque de 280 deputados que votou o impeachment de Dilma. A movimentação era uma resposta tardia da coluna vertebral da “classe política” brasileira às mobilizações populares que em 2013 tinham abalado o país. João Doria, ora eleito governador do estado mais rico e de maior colégio eleitoral (22%) da União, conduzia então um programa na TV que, dentro de sua peculiar concepção da vida e do jornalismo, só entrevistava empresários.
No auge das mobilizações de rua pelo impeachment de Dilma, em 2016, dirigentes políticos do MDB e do PSDB, que esperavam colher institucionalmente (com Michel Temer) e eleitoralmente os frutos da empreitada golpista, subiram no palanque montado na Avenida Paulista em frente à Fiesp e ao “pixuleco” de Lula, só para ouvir uma sonora vaia e vivas a Bolsonaro, manifestação que os obrigou a descer apressadamente do palco imaginário de sua glória. Os aprendizes de feiticeiro, herdeiros da ala civil do golpe militar de 1964, tinham soltado o gênio da garrafa e não sabiam como reintroduzi-lo. Como os Bourbon, que passaram merecidamente à história por ter dado seu nome a uma bebida alcoólica mais do que por suas virtudes como estadistas monárquico-absolutistas, eles nada tinham aprendido. A base política do direitista não tinha sido construída por nenhum marqueteiro, mas pela progressiva criminalização da política e das lutas sociais, e por sua aproximação às Forças Armadas, conquistada pela intermediação dos generais e brigadeiros Augusto Heleno, Oswaldo Ferreira, Aléssio Ribeiro Souto e Ricardo Machado, aposentados. Bolsonaro construiu seu caminho como continuação da Minustah no Haiti (chefiada por Augusto Heleno, cabeça do programa de governo de Bolsonaro), da intervenção política brasileira (via PSDB paranaense) na deposição cívico-militar do governo de Fernando Lugo no Paraguai, da intervenção militar no Rio (saudada por alguns como um ataque estratégico à “banda podre” da polícia carioca), do assassinato de Marielle Franco (não esclarecido nem em via de esclarecimento), da tropa de choque nas favelas e dos assassinatos de jovens negros, da judicialização e militarização das lutas sociais e políticas. As igrejas evangélicas, que em 2002 firmaram um pacto com Lula e indicaram seu candidato a vice, mudaram de lado. As manifestações em favor da intervenção militar e de Bolsonaro (promovidas frequentemente pelos mesmos grupos) que salpicaram a greve dos caminhoneiros de maio foram pavimentadas por esse processo político.
O que entrou em fase terminal na crise de maio foi o golpe parlamentar-institucional-militar de 2016 e sua base política, que foi a grande derrotada nas eleições. Depois de anunciar uma recuperação econômica em 2017, a realidade da crise econômica mundial e continental bateu à porta por meio do preço dos combustíveis, justamente em ano eleitoral. Até um mês antes das eleições gerais, a candidatura presidencial (cassada) de Luiz Inácio Lula da Silva encabeçava as sondagens com percentuais situados entre 37% e 40%. O crescimento de Bolsonaro, qualificado de “surpreendente”, não obedeceu a uma captação maciça de “indecisos” e não se baseou exclusiva nem principalmente na degringolada das candidaturas de Marina Silva (Rede), abandonada pelos evangélicos ao seu nicho ecológico original (menos de 1%), e Geraldo Alckmin (PSDB); o deslocamento de entre 10 milhões e 13 milhões de eleitores em direção da candidatura do capitão reformado captou amplamente eleitores iniciais de Lula. Se seu apoio cresceu conforme se ascende na escala da renda familiar (atingindo 70% na faixa superior a cinco salários mínimos), fato notável é que ele também cresceu na escala ascendente dos níveis de escolaridade, superando 60% entre os detentores de diploma de ensino superior, que tinham apoiado majoritariamente as chapas e governos encabeçados pelo PT na década precedente. Esse setor, que cresceu espetacularmente com programas como o Prouni e o Fies, ostenta hoje, no entanto, recessão e desemprego mediante uma taxa de inadimplência superior a 50%. Aqui também, e graças à crise econômica, o feitiço virou-se contra o feiticeiro. O fator político estrutural da ascensão de Bolsonaro, porém, foi a cassação e a prisão de Lula.
Apoiadores de Bolsonaro realizaram pelos menos cinquenta manifestações violentas de rua em todo o país nos três dias posteriores ao primeiro turno, no qual a chapa militar obteve um percentual de 46%: esse foi seu verdadeiro “voto”. Em 7 de outubro, as abstenções, votos nulos e em branco não atingiram 9% (eles tinham atingido 19% em 1998, na última eleição de FHC). Nesse quadro, o pouco mais de 29% obtido por Fernando Haddad (PT), que deveria ser transformado em 30% se considerados os votos presidenciais do Psol (um fiasco eleitoral de 0,5%) e do PSTU, não podem ser considerados como a perda de 10 pontos percentuais (ou de 20% a 25% do total de seus votos) pelo “lulismo”, na operação de transferência de seu caudal eleitoral para o “poste” da vez (que teria funcionado nas duas eleições de Dilma Rousseff). As sondagens revelaram que a “influência de Lula” foi responsável só por 11% dos votos de Haddad. Dadas as características da situação política e a polarização político-emocional da campanha eleitoral, os votos pelo PT, Psol e PSTU foram votos para a esquerda em condições políticas reacionárias e repressivas. Isso é corroborado por algumas boas votações obtidas pelo Psol para governo de estado (São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo) ou para cargos proporcionais (o Psol passou de seis para dez deputados federais, a maioria de seus votantes votou pelo PT – Haddad – para presidente) e pela relativa recuperação eleitoral do PT em relação às eleições municipais de 2016.
Não foi, tampouco, uma “barragem nordestina” a uma ascensão fascista que conquistou 99% dos redutos tucanos, alimentada pela Bolsa Família: em que pese Haddad ter sido vitorioso na região Nordeste (e só nela, dentro das cinco regiões brasileiras), Bolsonaro venceu em cinco de nove capitais nordestinas, incluindo Recife. Ainda assim, a chapa PT/PCdoB/Pros, que tinha só 4% das intenções de voto no início de setembro, ficou só 2 pontos percentuais abaixo da chapa Lula/Leonel Brizola em 1998. Na Câmara dos Deputados, o PT ficou com 56 eleitos (as sondagens prévias lhe atribuíam 52), contra os 69 obtidos em 2014 (reduzidos a 61 depois da fuga provocada pelo afundamento da sigla na lama da corrupção). Ou seja, praticamente manteve suas posições, embora caindo de 21% para 18% em votos totais para deputados federais. Depois da varrida da Lava Jato, o desempenho deve ser considerado bom, justificando a observação de Jânio de Freitas na Folha de S.Paulo (7 out. 2018): “Com a exceção relativa do PT e mais do Psol, os partidos desapareceram, fosse por falta absoluta de expressão, fosse porque dissolvidos nas inúmeras traições”. O PT manteve o governo de quatro estados do Nordeste e, considerados individualmente todos os partidos, ficou como o maior partido da Câmara pela primeira vez na história, devido ao afundamento dos partidos neoliberais/fisiológicos e do chamado “centrão”, que perdeu 22 deputados.
Desde setembro, diante da ascensão de Bolsonaro, FHC tentou unificar o vasto “centrão”, a base política da Nova República, desde o PSDB até a Rede, passando pelo MDB, o PPS de Roberto Freire e tutti quanti, colhendo um fracasso político, e depois eleitoral, espetacular. O PSL (a sigla de aluguel transformada da noite para o dia em fourre-tout do bolsonarismo) obteve 52 cargos de deputado, mas sua única “coerência” está dada pelo fato de 21 deles serem policiais, além de alguns militares aposentados, ou seja, uma unidade não política, mas corporativa, acompanhada de uma cambada heterogênea de “traidores”. O acompanhante do antigo capitão de artilharia na chapa presidencial é um general aposentado (que provavelmente passará à história – com “h” minúsculo – como autor da proposta de “Constituinte de Notáveis”, “notavelmente” desastrada) filiado ao ignoto PRTB. A base parlamentar do governo Bolsonaro serão as bancadas BBB (Bíblia, boi e bala), espalhadas em diversos partidos e que já controlavam (inclusive sob os governos petistas) quase 50% da Câmara e do Senado, e pleiteiam até o último centavo das verbas públicas, acrescidas da contribuição policial/militar do PSL, que passou a comandar o governo de três estados.
A Bolsa de Valores reagiu com uma alta de 4,57% e um volume recorde de negócios no day after do primeiro turno presidencial. O entusiasmo já existia antes: nos últimos meses de campanha, as doações do empresariado à dupla Jair e Hamilton e ao seu hit “é melhor Jair se acostumando” compensaram largamente sua falta de tempo na propaganda eleitoral gratuita na televisão, indicando o caminho aos candidatos empresariais (como João Doria, que apunhalou pelas costas Geraldo Alckmin em favor de Bolsonaro) e pentecostais. Empresários (serão investigados?) bancaram, com contratos de até R$ 12 milhões, o disparo maciço de calúnias e fake news contra a chapa PT/PCdoB via WhatsApp. Para uma concentração na Paulista, Bolsonaro transmitiu sua intenção de varrer do país e até da vida seus opositores “vermelhos”. Os fiscais eleitorais e a polícia se entusiasmaram, invadindo mais de trinta universidades públicas, centros acadêmicos e sindicatos docentes, sob o pretexto de combater “propaganda política” (retirando, por exemplo, uma faixa antifascista da Faculdade de Direito da UFF, que não mencionava nenhum partido ou candidato), provocando atos estudantis massivos e a manifestação contrária até de autoridades das universidades e do próprio STF. A resistência antifascista militante ganhou dimensões de massa com o #elenão e as mobilizações e atos de rua convocados por coletivos feministas e movimentos sociais, realizados inclusive em outros países. Bolsonaro fugiu dos debates eleitorais e, alertado, iniciou um discreto movimento em direção de um “Jairzinho paz e amor”.
Para o segundo turno presidencial, o PT convocou uma “frente democrática” dos partidos, inclusive adversários, que se reivindicassem da democracia. A “frente” fracassou de modo ensurdecedor e os “democratas notórios” (o PSDB de FHC, o PSB de Márcio França e o PDT de Ciro Gomes) ficaram democraticamente em cima do muro, revelando menos uma vontade suicida do que o desejo voluptuoso de se somar ao carro previsivelmente vitorioso da extrema direita, demonstrado de modo exemplar pelo PSDB do “Bolsodoria”. O pouco importante apoio de Marina Silva a Haddad mais pareceu uma cusparada em sua cara. A “democracia brasileira” fracassou miseravelmente quando posta de nariz diante do fascismo. Nessas condições limítrofes, não foi graças à sua aproximação com as igrejas católica e evangélica e com o Estado-Maior, ou ao rebaixamento de seu já moderado e conciliador programa, mas a despeito disso, que a chapa PT/PCdoB obteve no segundo turno 44,9% dos votos válidos, pouco menos de 47 milhões, contra 55,1% (57,8 milhões) de Bolsonaro, uma diferença bem inferior aos 18-20 milhões de vantagem com que a chapa de extrema direita pensava contar. Na ballotage, Haddad cresceu em quase 16 pontos percentuais; Bolsonaro, só 9.
O movimento para a direita do eleitorado é indubitável, mas inferior aos 60% dos votos que as sondagens iniciais lhe atribuíam. Os quase 16 milhões de votos suplementares de Haddad/Manuela resultaram dos atos públicos e da mobilização de rua e do impacto que eles provocaram no eleitorado mais relutante. Estamos, com Bolsonaro, diante de um “Lula de direita”, como alguns aventuraram, cuja simbologia eleitoral “tirou do armário” a alma mal (ou jamais) lavada da escravidão, do machismo homofóbico e antifeminino e do autoritarismo de uma maioria dos brasileiros? Estamos diante da perspectiva iminente de um AI-5 cívico/militar/parlamentar? Seria suicida descartar essa possibilidade. Os cérebros mais lúcidos do establishment, no entanto, não celebraram o 28 de outubro chamando a “varrer a petralhada vermelha”, mas exortando (inclusive a Bolsonaro) à “reconciliação” e à “unidade” nacionais.
Diversamente de 1964/1968, o Brasil não encara uma conjuntura de crescimento interno e internacional, mas uma crise econômica estrutural e uma desaceleração internacional na véspera de uma nova recessão. O programa econômico do governo militarizado a ser empossado em 2019 é o de um neoliberalismo privatista rampante, eivado de contradições. A eliminação do déficit fiscal e a reforma da Previdência, clamadas urbi et orbi pelo empresariado interno e externo, se estraçalham contra o tamanho da dívida pública (que beneficia o grande capital financeiro) e contra o fato de que 44% dos gastos previdenciários da União correspondem às Forças Armadas, opostas a uma privatização completa da Petrobras. O Brasil não está dividido pelo irracionalismo (embora Bolsonaro tenha se esforçado em demonstrar o contrário), mas por uma polarização econômica, social, regional, étnica e até sexual (com recorde de feminicídios e assassinatos de homossexuais), uma polarização de classe sem paralelos no mundo. O enorme voto pelo PT no Nordeste não é o de um “saudosismo lulista”, mas o da região que mais sofreu a crise econômica e o crescimento da pobreza extrema nos últimos dois anos. Bolsonaro deverá passar por várias crises para resolver essas contradições com os métodos de extrema violência que propõe. E essas crises abrirão outras possibilidades, baseadas na intervenção direta dos trabalhadores e do povo, cujo fantasma em carne e osso já percorre o Brasil.
*Osvaldo Coggiola é professor titular de História Contemporânea e chefe do Departamento de História da USP.