A perversa economia política da pandemia no Brasil
É fundamental se refletir sobre esta situação e atuar em prol de relações coletivas que priorizem o bem comum e uma vida digna para todos. Mas enquanto continuarmos a ver governantes defendendo interesses privados em detrimento do pensar coletivo, permaneceremos como uma sociedade anestesiada, que cultiva relações individualistas, antissociais e contrárias ao nosso próprio bem comum
Após Keynes escrever sua célebre frase de que “no longo prazo todos estaremos mortos”, ele passou a ser acusado de se preocupar somente com as benesses que o uso de políticas econômicas expansionistas poderiam proporcionar no curto prazo, relegando às gerações futuras o ônus dessas decisões. Posteriormente, quando publicou sua teoria geral, resgatou a ideia para enfatizar que o longo prazo importa muito, pois existe a possibilidade de que uma economia venha a ficar presa numa terrível situação de “equilíbrio de subemprego” – situação na qual existe excesso de oferta e insuficiência de demanda no mercado de trabalho. Esse contexto é sempre indesejável porque causa os mais diversos prejuízos econômicos, sociais e psicológicos aos indivíduos, dificultando seu reposicionamento no mercado de trabalho e contribuindo para desacelerar a engrenagem de funcionamento da economia nacional.
Keynes reconheceu a importância do longo prazo para o alcance de uma melhor dinâmica para a economia interna de um país, mas não deixou de reconhecer que são as ações tomadas em prol da manutenção da renda dos trabalhadores, no curto prazo, que poderão garantir o seu melhor funcionamento posteriormente. Afinal, o cenário futuro nada mais será do que o fruto de decisões que podem parecer equivocadas por “só se preocuparem com o momento presente”. Contudo, como os equilíbrios de pleno emprego não ocorrem naturalmente, os governos ocupam papel central no manejo de políticas que possam conduzir a economia para tal direção. O fato é que os governos podem recorrer ao déficit para não permitir o aprofundamento do desequilíbrio, sobretudo em momentos de crises sistêmicas. Mas esse nunca foi um ponto pacífico no debate econômico e político.
Curiosamente, a crise de 2008 produziu proezas e registrou a dissimulação contraditória de muitos defensores da visão neoliberal do Estado mínimo, ao terem que justificar a necessidade de políticas econômicas de orientação keynesiana. Uma das justificativas que se destacou naquele momento foi dita pelo economista conservador e neoliberal Robert Lucas, da Universidade de Chicago, ao afirmar que “todos somos keynesianos quando estamos na trincheira”. E, novamente, as ideias de Keynes têm sido “relembradas” por muitos de seus críticos devido à crise provocada pelo coronavírus.
Estado mínimo
Economistas de diferentes correntes ideológicas, inclusive neoliberais, vêm resgatando os ensinamentos de Keynes para produzir recomendações a respeito dos impactos que a crise sanitária tem causado no mundo todo. Mesmo em países onde predomina, há muito tempo, a visão neoliberal a favor do Estado mínimo e do livre mercado parece haver um consenso de que todos estão nas trincheiras de uma guerra. Têm sido recorrentes as falas de conservadores e anti-keynesianos de que os governos precisam fazer o que for necessário para salvar a economia no curto prazo. São muitos os exemplos de outros países em que há ações econômicas vultosas, por parte de governos, de modo a assegurar o funcionamento da economia e garantir certo fluxo de renda aos trabalhadores. Afinal, como argumentou Keynes: o Estado deve agir com seus instrumentos para impedir que a economia nacional regrida mais e se afaste perenemente de uma situação de funcionamento com pleno emprego. Não à toa que no mundo todo há defesas, dos mais distintos naipes, por ações urgentes e coordenadas pelos governos para minimizar os profundos prejuízos econômicos e sociais. O problema é que nada disso pode ocorrer de forma conflituosa perante a garantia da saúde e das vidas humanas.
Curiosamente, o que se observa no Brasil é que aqui há outras peculiaridades que têm ficado mais evidentes neste período da pandemia do coronavírus. Na verdade, ocorre a negação da necessidade de se deslocar para a trincheira. Diferentemente do que se vê em muitos outros países, onde ainda existem traços de civilidade e respeito a vidas humanas, no Brasil não há consenso de que o Estado deve atuar de forma intensiva para conter a queda livre da economia e o salto do número de mortes, sem estabelecer uma dicotomia entre economia e saúde. Enquanto o mundo observa de longe, chocado, as decisões do presidente brasileiro, nós vivenciamos tudo isso de forma letárgica.
Saúde X economia
A dicotomia entre garantir a saúde dos cidadãos e forçar a marcha da economia, nunca poderia ter sido posta pelo presidente brasileiro porque ela é completamente equivocada. Não deveria existir dificuldade em se compreender que os valores que regem a economia não podem estar dissociados daqueles que garantem a existência humana. Ademais, essa crise provocada pela pandemia do coronavírus tem escancarado o funcionamento da perversa economia política que opera no Brasil e na qual atuam agentes e interesses sem qualquer compromisso alinhado à promoção de uma sociedade que garanta efetiva dignidade aos seus cidadãos.
A desfaçatez de agentes do setor financeiro chegou ao ponto de saírem por aí analisando riscos de seus investimentos a partir dos impactos diferenciados do contágio do coronavírus por recortes de classes sociais. Junta-se a isso o fato de o governo federal estar atuando de forma a promover a contradição a partir de suas próprias decisões. Desde que a pandemia começou a se mostrar presente no país, vê-se ações desconexas e que geram mais insegurança à população. O governo brasileiro tem optado por negar a crise de saúde e por encampar a defesa dos interesses capitalistas ad nauseam usando como camuflagem a justificativa da manutenção dos empregos, os quais, aliás, já andavam escassos.
Não há problema algum em se defender e lutar por empregos. A verdade é que essa posição é usada para dissimular o verdadeiro aprisionamento ideológico com o qual a equipe do governo federal está abraçada. Sua essência se caracteriza pela mesma visão conservadora e neoliberal de mundo, na qual não cabe ao Estado usar as ferramentas necessárias de que dispõe para garantir vidas dignas e seguras aos seus cidadãos. Prevalece, portanto, a visão de Estado mínimo e de livre mercado cada vez mais anacrônica e que tem sido “superada”, momentaneamente, até por economistas e governos neoliberais de outros países como forma de minimizar os estragos econômicos e sociais causados pela pandemia.
Ao invés de o governo brasileiro estar focado e comprometido com o planejamento de ações coordenadas junto aos estados e aos municípios de modo a garantir formas mais eficazes para a travessia desse momento difícil, vê-se o presidente do país usar sua posição e a estrutura de Estado para defender a dicotomia irracional entre saúde e economia. Ao determinar ações que contrariam os especialistas em saúde e o que tem sido feito no resto do mundo, o presidente anuncia o seu aprisionamento ideológico, a partir do qual só cria mais estardalhaços em defesa de seus “princípios” falaciosos. Não foi à toa que o presidente forçou uma visita surpresa e midiática ao Supremo Tribunal Federal, levando consigo 15 lobistas de diferentes setores econômicos, no intuito de compelir uma retomada à “vida normal”. Ele atua para sua plateia e faz querer crer, desta forma, que essa ação representaria sua contribuição para solucionar a crise instaurada. Isso representa, na verdade, o verdadeiro “lavar de mãos” para os problemas que o país enfrenta.
Ideologias anacrônicas
As dificuldades econômicas são, de fato, um grande problema que deve ser resolvido. Contudo, ao se revestir de ideologias anacrônicas para defender interesses econômicos em detrimento aos impactos na saúde pública, o presidente e seu governo recusam-se a fazer uso intensivo das ferramentas econômicas e mecanismos legais que dispõem para reverter esse quadro, o que traria mais tranquilidade para a população. Enquanto a equipe econômica encaminha ao Congresso a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) para 2021, seduzida pelo cântico da austeridade fiscal, ela reforça a sua ojeriza pela realidade social do Brasil.
O desafio está em se implementar uma política fiscal socialmente comprometida e justa (a estrutura tributária que o diga) porque as ações pelo lado da política monetária serão enviesadas e insuficientes para se chegar, efetivamente, até os mais desfavorecidos na sociedade. A garantia de renda básica e perene à população que vive no limbo da economia capitalista (a ampla maioria) é uma obrigação ética por parte do Estado. As políticas públicas não podem ser somente aquelas que garantam a manutenção do fluxo de caixa das empresas, mas que também se preocupem em garantir a inserção daqueles que têm vivido sem qualquer garantia de uma vida digna.
Muito tem sido dito que após “tudo isso” passar, poderemos ver o florescimento de uma sociedade ambientalmente preocupada e solidariamente mais engajada. Quanto a isso não há certezas, somente dúvidas. No entanto, é fundamental se refletir sobre esta situação e atuar em prol de relações coletivas que priorizem o bem comum e uma vida digna para todos. Mas enquanto continuarmos a ver governantes defendendo interesses privados em detrimento do pensar coletivo, permaneceremos como uma sociedade anestesiada, que cultiva relações individualistas, antissociais e contrárias ao nosso próprio bem comum. Por fim, não poderia ser mais adequada para o momento que vivemos a frase de Bertolt Brecht resgatada por Lima Duarte na homenagem que fez ao seu amigo Flavio Migliaccio: “os que lavam as mãos, o fazem numa bacia de sangue”.
Wellington Pereira é professor do Departamento de Economia e do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas da UFPR.