A política externa de Trump: imperialismo menos agressivo?
A administração republicana minou todos os pontos positivos e todas as conquistas progressistas alcançadas pela administração anterior. Aí entra a sutileza do imperialismo trumpista, que muitos se negam a acreditar
Em 2016, a disputa eleitoral entre Donald Trump e Hillary Clinton pela presidência dos EUA desencadeou uma série de debates pelo mundo. As discussões movimentaram personalidades distintas como Slavoj Zizek e Noam Chomsky. Ambos, à sua maneira, se se tornaram exemplos emblemáticos dos polos que se formaram na esquerda acerca desse debate. A cisão consistia em, de um lado, acreditar numa política externa menos agressiva (até mesmo menos imperialista) a favor de Trump; e do outro lado, acreditar numa política doméstica mais favorável às reivindicações progressistas, a favor de Hillary.
Muitos não mediram escrúpulos ao demonstrar apoio ao seu facínora preferido, ao invés de priorizarem o questionamento sobre o porquê de a máquina eleitoral américa permitir apenas candidatos pró-establishment. Já os intelectuais públicos, muitas vezes, tentam tornar suas posições mais palatáveis. Zizek, por exemplo, ao defender Trump, disse: “Eu apenas penso que Hillary é o verdadeiro perigo”. Já Noam Chomsky encontrou em Hillary uma alternativa menos grosseira. “Não gosto nem um pouco de Clinton”, afirmou na época, “mas suas posições são muito melhores do que as de Trump em todas as questões que consigo imaginar.”
Ambos enxergaram em seus oponentes “o perigo real”. Dentro da esquerda, os defensores de Hillary viam em Trump um irresponsável, negacionista das mudanças climáticas e inimigo dos direitos civis. Hillary, nesse caso, seria a solução progressista. Já defensores esquerdistas de Trump viam na oponente o empreendimento da máquina de guerra imperialista em ação – que nas mãos dos democratas teria sido responsável por uma série de episódios de destruição em países como a Líbia e Iêmen. Trump, nesse caso, seria a solução anti-imperialista. Hoje, depois do mandato republicano, podemos reavaliar a validade dessas posições.
O discurso de Trump, desde o início da campanha, marcado pela defesa do protecionismo e nacionalismo econômico, atraiu o interesse de algumas figuras de esquerda [como visto]. Com o lema “América em primeiro lugar” em punhos, Trump defendeu que os Estados Unidos deveriam olhar para dentro, para a política interna, e direcionar seus recursos para a reconstrução da infraestrutura doméstica. Estava implícito nessa posição uma diminuição de esforços em intervenções e assuntos externos, o que levaria, para alguns, a uma política menos imperialista ou a um “imperialismo menos agressivo”.
Durante o seu mandato, Trump de fato buscou isolar os EUA de compromissos internacionais. A lógica foi adotar uma postura unilateral, ignorar os compromissos com organizações internacionais e redirecionar a atenção aos assuntos internos, como infraestrutura e emprego.
Dessa forma, Trump ameaçou retirar tropas militares americanas da Otan no exterior, argumentando que os europeus deveriam arcar mais com as despesas de sua própria proteção. Isso sinalizou um abalo entre a relação histórica dos EUA com os países mais influentes da Europa. A Alemanha, por exemplo, foi considerada uma nação rica que gasta pouco em sua defesa, deixando os custos da Otan ao encargo dos EUA.
“A Otan está nos custando uma fortuna e, sim, estamos protegendo a Europa com a Otan, mas estamos gastando muito dinheiro.” Trump em 2016.
A ordem liberal global desenvolvida pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra não valia mais aos propósitos de Trump. A estratégia foi isolar o país, e a administração Trump se retirou dos acordos de livre comércio, como o Tratado Transpacífico, do Conselho de Direitos Humanos da ONU, da Unesco e do Acordo de Paris. Principalmente nos últimos três casos, a falta de compromisso e responsabilidade dos EUA com a comunidade internacional estava confirmada. Em 2016, a entrada do governo Obama no Acordo de Paris firmou pela primeira vez um compromisso histórico dos EUA com a mudança climática, o que foi desfeito por Trump.
Na verdade, a administração republicana minou todos os pontos positivos e todas as conquistas progressistas alcançadas pela administração anterior. Aí entra a sutileza do imperialismo trumpista, que muitos se negam a acreditar. Nos últimos momentos do governo Obama, os EUA buscaram uma aproximação amigável com o governo cubano. Obama estava determinado a estabelecer relações diplomáticas com o país e até defendeu o fim do embargo à Cuba. A decisão de Trump foi desfazer essa conquista histórica, reforçando a postura usual e agressiva dos EUA de fustigar a pequena ilha. O restabelecimento das relações diplomáticas foi abandonado e sem necessidade, por sadismo, Cuba ainda sofre com o bloqueio comercial injustificável.
Também, em relação ao Irã, o governo Obama buscou uma reaproximação diplomática. Um feito notável, Teerã concordou em restringir seu programa nuclear em troca da suspensão de sanções econômicas que infligiram à sua nação. Porém, o povo iraniano não teve tempo de respirar aliviado. Trump se retirou do Acordo Nuclear com o Irã, impôs novas sanções contra o país e reforçou a agressividade típica dos EUA no Oriente Médio. Claro, o clima de paz que poderia ser alcançado não foi preocupação para Trump, e embora alguns considerem seu imperialismo como light, as sanções econômicas são responsáveis por estrangular a economia do Irã e prejudicar seu povo. A agressividade e irresponsabilidade de Trump foi muito bem demonstrada com o assassinato de Qasem Soleimani. Porém, apesar da disposição a agredir e matar de Trump, segmentos da esquerda apostaram numa falsa visão de “presidente menos imperialista”.
Além dos cubanos e iranianos, podemos ter certeza de que os venezuelanos também não concordam com a tese ilusória do republicano menos imperialista. Foi Trump que iniciou as sanções econômicas à Venezuela, na sua tática de atacar seus inimigos não pela guerra, mas por meio do estrangulamento econômico. Seria isso menos agressivo? Incentivar um presidente fantoche como Juan Guaidó, apostar na instabilidade política e queimar um caminhão de ajuda humanitária seria menos imperialista?
Outra decisão com consequências profundas e agressivas na vida de milhares de pessoas foi em relação a Israel. A Embaixada dos Estados Unidos foi realocada para Jerusalém, legitimando o expansionismo israelense em detrimento dos palestinos. Reconhecer Jerusalém como capital de Israel permitiu que os conflitos recentes no bairro de Sheikh Jarrah acontecessem com mais facilidade, intensificando o conflito entre judeus e palestinos e perturbando a busca pela paz.
“a decisão dos Estados Unidos deu luz verde a Israel para prosseguir com suas políticas atuais em relação aos palestinos na Cisjordânia e em Gaza. É provável que Israel prossiga com a reivindicação de terras palestinas adicionais por meio de assentamentos ilegais. Além disso, espera-se que Israel continue perpetrando violações dos direitos humanos contra os palestinos, especialmente aqueles em Gaza.” Inside Arabia
Fica claro que a política externa de Trump foi extremamente reacionária e o apoio que recebeu por parte de supostos esquerdistas é injustificável. Exemplo claro do abandono aos princípios políticos que dizem advogar.
Além disso, não podemos esquecer do apoio ao governo saudita durante o grave episódio do assassinato do jornalista Jamal Khashoggi, uma violação hedionda dos direitos humanos; do aumento de ataques com drones dos EUA na África; do empreendimento norte-americano contra a China; e das contínuas operações violentas no Oriente Médio. O fato de Donald Trump não ter declarado novas guerras durante o seu mandato não o torna menos imperialista e nem menos agressivo. A tese do republicanismo menos imperialista criou essa ilusão, mas isso pertence ao catálogo de fantasias, seletividade e amnésia de segmentos de esquerda – que contribui a apagar o caráter profundamente reacionário e violento da gestão republicana.
Trump não causou guerras como os democratas na Líbia, na Síria e no Iêmen, mas sua política externa foi responsável por impactar negativamente a vida de milhares de pessoas, incentivar conflitos e perturbar a busca pela paz. Em Cuba, na Venezuela, no Irã e na Palestina, países que despertam tanto a afeição da esquerda, o povo ainda sente a consequência dessas decisões.
Gabriel Dantas Romano é estudante de História da Universidade de São Paulo.