A potencialidade transgressora da estética funkeira
Último artigo da série “Periferias de São Paulo: cotidianos, conflitos e potências” busca destrinchar as origens e os mecanismos que tornaram possível a criminalização do funk enquanto gênero musical. Este especial é uma parceria entre Le Monde Diplomatique Brasil e Fundação Tide Setubal
Para além dos “perturbadores” picos de decibéis, qual a potencialidade transgressora presente na estética e no circuito funkeiro? Que elementos dos fluxos de rua são capazes de confrontar certos aspectos hegemônicos presentes no ordenamento do espaço público? Todos os conflitos e tensionamentos que constituem o universo funk – suas relações com o espaço público; seus usos e abusos no consumo de drogas (lícitas e ilícitas); a maneira como experimentam e vivenciam suas sexualidades; suas ações e reações diante das desigualdades e dos enfrentamentos em torno das relações de gênero, classe e raça -, transcendem o baile e atravessam a vida cotidiana das periferias de São Paulo como um todo.
Como veremos, é sob uma brutal política de criminalização que o baile funk de rua resiste e emerge como espaço de lazer para uma juventude preta e periférica. Talvez aqui se vislumbre o seu potencial transgressor: sua capacidade de escapar às estratégias de gestão e controle sociais empreendidas pelo Estado e moralmente legitimadas por setores conservadores da sociedade. Embora este artigo procure dar ênfase ao baile e sua marginalização, não desejamos, no entanto, negar as contradições e ambiguidades presentes no seu interior. Entre a “tolerância cultural liberal” e o “recuo horrorizado e intolerante” (ver Acauam Silvério de Oliveira, 2015), procuro esboçar uma abordagem que apreende o universo funkeiro na sua complexidade.
Um adendo ao cenário imposto pela pandemia
Diante do quadro imposto pela Covid-19 e a adoção do distanciamento social como principal medida para o seu enfrentamento, houve uma radical redução na realização dessas festas. Ainda sob os escombros de incertezas e mortos que a pandemia, e sua má gestão por parte do Estado, vem produzindo, é ariscado avaliar quais serão seus impactos sobre o circuito funkeiro, em especial os bailes de rua, já tão criminalizados. No entanto, convém prestarmos atenção à tragédia ocorrida em dezembro de 2019 no baile da d17, Paraisópolis, periferia da Zona Sul da capital. Esse episódio nos insere na temática central do funk, não sob a ótica de um mundo que, dizem, “virá pós-pandemia”, mas sim da perspectiva que se constitui em meio à crise sanitária, em plena consonância com o nosso passado colonial. Como se sabe, a intervenção da Polícia Militar (PM) na dispersão do fluxo daquela madrugada acabou numa “confusão” generalizada, resultando na morte de nove jovens por asfixia. Diante das acusações por parte da comunidade de violência e abuso policial, dois inquéritos para apuração do caso foram instaurados.
Em fevereiro deste ano, a Corregedoria da PM, uma das instâncias responsáveis pela investigação do ocorrido, concluiu que a conduta dos 31 policiais envolvidos no episódio foi lícita, alegando que eles agiram dentro da “legalidade” e em “legitima defesa”. O inquérito militar inocenta os PMs, solicita o arquivamento do mesmo e, como sugere a defesa dos agentes públicos, provoca o Ministério Público (MP) a promover novas investigações para que se identifique os “verdadeiros” responsáveis pela realização do baile e, consequentemente, das nove vidas perdidas. Fato que desconsidera a própria estrutura de realização dessas festas. O MP ainda não se manifestou sobre o caso (ver G1).
Ouça o episódio com os pesquisadores Luiz Paulo Ferreira Santiago e Artur Santoro
Enquanto isso, no âmbito da Polícia Civil, o Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) começou, no início de julho, a colher os depoimentos dos PMs. Para facilitar as investigações e cumprir o distanciamento social, provocado pelo Estado de emergência, a Polícia Civil criou uma Paraisópolis virtual. De acordo com o delegado responsável pela investigação, mais de 70% da comunidade foi mapeada com o auxílio de drones e um scanner virtual. Em dimensões 3D e imagens de alta definição, o bairro inteiro pode ser visto do alto, em diversos ângulos, panoramas e detalhes. À luz dos depoimentos, é possível se deslocar virtualmente para qualquer localidade, gerando imagens de ruas, vielas, fachadas de casas e prédios. Esse sistema digital de mapeamento, usado pela primeira vez em uma investigação de homicídios, será, avalia o chefe da divisão, utilizado em outras futuras investigações (ver G1).
Em suma, se, por um lado, o processo de criminalização dos bailes funks segue, sem nenhum constrangimento, sua marcha de perseguição política, limitando-se a individualizar as más condutas policiais sem problematizar o modus operandi da PM enquanto instituição; por outro, se evidencia um fenômeno relativamente novo, propiciado e acelerado pelo Estado de exceção provocado pela pandemia: o avanço e a sofisticação de dispositivos tecnológicos de vigilância e controle de bairros inteiros à serviço do aparato policial em circunstâncias inéditas (ver Michel Foucault, 1987).
Por mais paradoxal que possa parecer, o estado de exceção nos territórios periféricos é, sobre diversos ângulos e do ponto de vista da violência policial em especial, algo permanente. Quase dois anos antes da tragédia no baile da d17, nossa pesquisa já demonstrava o quanto determinadas ações policiais extrapolavam todos os limites da razoabilidade, tratando-se de investidas violentas pura e simplesmente. As intervenções policiais nos bailes rua – capturadas em relatos e observadas durante o trabalho de campo -, são os principais focos de insegurança e medo do público funkeiro. As práticas militares na dispersão das festas são desesperadoras e causam intenso corre-corre, um verdadeiro campo de batalha marcado por um embate desigual entre as forças de (in)segurança e o público funk que, numa estratégia arriscada, aposta no desgaste dos policiais e retomam o fluxo minutos após a dispersão.
Para compreendermos melhor como chegamos a essa situação e qual o pano de fundo dessa disputa, olhamos para um passado recente, destrinchando as origens e os mecanismos que tornaram possível a criminalização do funk enquanto gênero musical.
A criminalização do funk
Embora a origem do funk, assim como a do rap, esteja ligado ao soul, música negra norte-americana que embalou as lutas contra a segregação racial nos EUA, na segunda metade do século XX (ver Micael Herschmann, 2005), a trajetória atual do funk tem como ponto de partida o momento em que, já difundido por meio da indústria cultural nos subúrbios cariocas, ele é incorporado ao imaginário social da cidade como símbolo da violência urbana. O funk passa a representar um Rio de Janeiro que “não deu certo”, ancorando uma série de atributos morais negativos e legitimando a perseguição política, no âmbito jurídico-criminal, dos sujeitos que fazem parte desse circuito.
Para Hermano Vianna (2006), a emergência do funk como símbolo da violência urbana no Rio de Janeiro tem início em 1992, durante o fenômeno que ficou popularmente conhecido como “arrastões”. Embora este termo já tenha figurado nos noticiários em meados de 1984, fazendo referência, ironicamente, às ações de grupos de “pivetes” nas praias do Arpoador e Ipanema, ele reaparece com força a partir dos anos 90 associado ao funk. O que ocorreu na praia do Arpoador no domingo de 18 de outubro de 1992 foi uma disputa/briga entre as galeras de diversas favelas cariocas que encenaram na areia o “teatro da violência” criado nas pistas de danças dos bailes na favela. No entanto, à época a imprensa apresentou os “arrastões” como uma espécie de tumulto realizada por grupos de jovens pobres e negros que praticavam roubos de forma violenta, realimentando a sensação de medo e caos presentes no imaginário coletivo da cidade.
Os “arrastões”, afirma Vianna (2006), funcionaram como uma espécie de “operador lógico” que de repente transformou o funk exótico, relativamente desconhecido, num funk familiar, uma familiaridade profundamente marcada, em sua relação com o restante da cidade, pelos sentimentos de oposição e inimizade. Se o outro é desprovido de cultura e visto como criminoso, toda e qualquer ação para a sua contenção, subjugo e colonização, mesmo que sob condições de exceção e violência, será legitimada. A participação dos meios de comunicação de massa foi, e ainda é, fundamental nesse processo.
Forjados neste período, os principais estigmas e estereótipos preconceituosos que ainda são associados ao funk, contudo, não foram suficientes para inibir a sua disseminação pelo país afora, muito pelo contrário. À medida em que o funk foi se nacionalizando e se revelando como um fenômeno de mercado, diversos setores da sociedade foram construindo uma relação ambígua, quando não hipócrita, em relação a ele. Enquanto determinada corrente do funk, considerada “legal” e aceita pela indústria fonográfica, era entoada em rádios e programas de televisão ao longo dos anos 1990-2000, os bailes de favela eram proibidos, MCs foram perseguidos e presos por associação ao crime organizado e ao tráfico de drogas.
Em Onda negra, medo branco (1987), Célia Maria Marinho de Azevedo faz uma análise de como o medo, enquanto afeto, influenciou o debate que a elite branca colonial travou no decorrer do século XIX sobre que fim dar à escravidão. A imagem de uma população negra revoltada destruindo a ordem púbica e provocando todo o tipo de caos foi incorporada ao imaginário dessa elite, que conduziu o país a uma saída conservadora do sistema escravocrata. Traços desse imaginário não só se perpetuaram ao longo do tempo como se expandiram. Toda e qualquer prática de lazer da população preta e pobre nos anos posteriores à abolição não devidamente assimilada pelos mecanismos de controle social resultantes deste mesmo imaginário, sofrerá as mais variadas formas de perseguição política. O fenômeno dos rolezinhos é o caso mais recente ligado ao universo funk que se enquadra nesse amplo processo (ver Danilo Cymrot, 2011 e Alexandre Barbosa Pereira, 2015).
A emergência de um “novo personagem” no cenário artístico-cultural periférico
A despeito do dramático quadro histórico e do atual dispositivo legal que proíbe bailes de rua (ver Lei nº 16.049, de 10/12/2015), a estética e o circuito funkeiro resistem, aglutinando uma parcela significativa da juventude preta e pobre que se espalha pelos muitos fluxos de rua que estouram pela cidade aos finais de semana, provocando os mais variados conflitos.
Nesse contexto, o mapeamento e a identificação dos afetos que mobilizam o público funkeiro nos pareceu de fundamental relevância. Ao longo de nossas entrevistas foi possível constatar uma confluência de interesses que gira sempre em torno daquilo que o baile pode oferecer: música alta, dança, possibilidades de encontros, paqueras e acesso facilitado ao consumo de drogas (lícitas e ilícitas). O baile proporciona uma sensação de descontração, autonomia e liberdade. Trata-se de uma explosão festiva e lúdica, ritualizada de forma coletiva, e que revela um espaço marcado pelo sentimento de pertencimento.
Ao explorarmos as outras esferas da vida desses jovens que frequentam o funk, identificamos que o baile se revela como espaço de fuga, tanto do mundo do trabalho e seus processos de precarização no âmbito da lógica capitalista, quanto das relações sociais vivenciadas em outros ambientes, como a família, a escola, a faculdade, muitas vezes descritos como espaços que não os escutam, revelando, em diversos níveis, a crise dessas instituições, em que a convivência é marcada pela heteronomia.
Como bem salientou Acauam Silvério de Oliveira (2015), o funk é, antes de tudo, um gênero musical rítmico voltado para o pulso, área da música que mexe diretamente com o corpo e, neste sentido, com os desejos, no plural. Em nossas incursões pelos bailes de fato se vislumbra um público funkeiro desejante, comungando num mesmo ambiente festivo marcado pela intensidade, exageros e transgressões de normas, seja no âmbito da sexualidade, seja nos usos, abusos e apropriações da rua enquanto espaço público. Contudo, esse mesmo movimento também é constituído por ambiguidades e conflitos, onde há reprodução de vários aspectos que estruturam nossa sociedade, como o machismo, o racismo e o sexismo.
Ao longo de nossa pesquisa, os subgêneros ostentação e putaria protagonizaram o discurso sonoro dessas festas. Algumas palavras, no entanto, sobre a vertente putaria se fazem necessárias.
Como se sabe, a vertente putaria veicula uma representação estereotipada sobre o feminino, onde a mulher é simbolicamente violentada e transformada em objeto de desejo sexual a serviço do prazer masculino. Paralelamente, a figura do homem é a de um sujeito que domina de forma agressiva – símbolo de virilidade -, a cena erótica, revelando a face machista presente no funk. Todas as jovens entrevistadas pela pesquisa criticaram a representação feminina contida no funk putaria, demonstrando uma não passividade diante deste discurso. Mas ao mesmo tempo revelaram que, muitas vezes, ignoravam as letra machistas para aproveitarem a sensualidade contida no ritmo deste subgênero durante os momentos de dança.
Numa entrevista coletiva (duas jovens e um rapaz), o grupo chegou a afirmar que o funk putaria entoado por mulheres tem outro significado, onde o eu lírico feminino sugere reivindicar para si o direito sobre seus próprios corpos, evidenciando uma disputa pela representação das mulheres no interior do funk. O aumento da presença de mulheres (cis e trans) negras, moradoras da periferia, em todo o ciclo de produção funkeira revela o fortalecimento desse discurso feminista cada vez mais crítico, provocando deslocamentos nas relações de gênero, tensionando as masculinidades machistas imersas nesse processo (ver Beat é Protesto – O funk pela Ótica Feminina, 2019). Na prática, os relatos demonstram que as mulheres que frequentam o baile tem exigido mais respeito dos homens durante a dança e a paquera, assim como se sentem mais seguras para defender a postura de quem deseja utilizar roupas curtas, mostrando a “polpa da bunda”, ou beijar mais de uma pessoa durante a noite.
O potencial transgressor do baile de rua: dilemas e conflitos sobre uma cidade desigual e segregada
A (in)segurança e o medo são elementos centrais para compreendermos as distinções entre os bailes fechados e abertos. Na perspectiva das pessoas entrevistadas, o baile de rua é descrito como um espaço do caos, uma “bagunça” que, a despeito dos aspectos positivos e motivadores – livre trânsito das pessoas, baixo custo das bebidas alcóolicas e a ausência de pagamento de ingresso – desperta um sentimento de insegurança, sobretudo pela violência policial sempre eminente. Outros aspectos constituem esse espaço, como falta de infraestrutura, intenso fluxo de pessoas obstruindo e sujando as ruas, uso ilimitado de drogas (lícitas e ilícitas), som alto e controle local do tráfico.
Embora a descrição do baile, sob a insígnia do caos, sinalize para uma negação desse espaço, sugerindo contradições entre os diversos afetos em jogo – como um ambiente que causa insegurança e medo pode proporcionar uma sensação de descontração, autonomia e liberdade? -, a impressão é que essas sensações vão coexistindo umas sobre as outras, num arranjo complexo de emoções. Todas as pessoas entrevistadas se dizem familiarizadas com este ambiente e apostam em uma possível aceitação do fluxo, com a incorporação de regras para diminuir os conflitos gerados na sua realização, sobretudo com a comunidade local. Este último aspecto, que sinaliza para uma possível regulação da festa, pode atenuar o seu potencial transgressor, mas a que custo? Os processos de regulamentação dos bailes de rua por parte do poder público quase sempre vem acompanhados de mudanças, muitas delas de cunho moral, como não tocar funks com palavrões ou com conteúdo sexual, na tentativa de instituir uma espécie de “baile modelo” (ver Pâmella Passos e Adriana Facina, 2015).
Diante da tragédia no baile da d17, a percepção de que os fluxos de rua são espaços “perigosos” e “violentos” cresceram. Contudo, o público funkeiro não se intimidou com o cenário, retornando suas práticas festivas e demonstrando que o baile de rua é, antes de qualquer coisa, um espaço de celebração e afirmação da vida. De fato, diante da emergência e consolidação da extrema direita no poder, do fortalecimento de uma visão de mundo conservadora e reacionária em diversas camadas da população, inclusive entre as mais pobres, e o aprofundamento das condições que facilitam a política de gestão da morte executada pelo Estado, qualquer espaço que procure celebrar a vida se constituirá num ato de transgressão. Por isso, segue o baile!
Luiz Paulo Ferreira Santiago é graduado em Pedagogia pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e participa, como educador social, da coordenação da Casa dos Meninos, instituição localizada no Jardim São Luís, zona sul de São Paulo. Atualmente é bolsista CNPq no projeto Serviço Brasileiro de Respostas Técnicas, na Agência USP de Inovação – AUSPIN.
Referência Bibliográfica
AZEVEDO, Célia Maria Marinho. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites – século XIX. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
Barbosa-Pereira, A. (2016). Os “rolezinhos” nos centros comerciais de São Paulo: juventude, medo e preconceito. Revista Latinoamericana de Ciencias Sociales, Niñez y Juventud, 14 (1), pp. 545-557.
CYMROT, Danilo. A criminalização do funk sob a perspectiva da teoria crítica. 2011, 205 f. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
FACINA, Adriana; PASSOS, Pâmella. ‘Baile modelo!’: reflexões sobre práticas funkeiras em contextos de pacificação. VI Seminário nacional de políticas culturais. Fundação Casa de Rui Barbosa, v. 26, 2015.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Leya, 2014.
HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Editora UFRJ, 2000.
OLIVEIRA, Acauam Silverio de. O fim da canção? Racionais MC’s como efeito colateral do sistema cancional brasileiro. 2015, 412 f. Tese de Doutorado em Letras. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
VIANNA, Hermano. O funk como símbolo da violência carioca. Cidadania e Violência, p. 178-187, 1996.