A Previdência e a proposta de regimes múltiplos
Apesar da necessidade de olhar esse processo com a cautela necessária para manter sua capacidade de financiamento no longo prazo, o sistema de previdência é, antes de tudo, uma grande massa de recursos públicos cobiçada pelo mercado, e este tem orientado o sentido das reformas desde a instauração do governo Temer
O sistema previdenciário brasileiro é uma conquista da Constituição de 1988. Ancorada pelo eixo da solidariedade, é composta de uma parte contributiva, financiada por trabalhadores e empregadores, uma parte de financiamento coletivo por meio de impostos e uma parte não contributiva, acessada via Assistência Social. Em 2015, o sistema inteiro pagou 40 milhões de benefícios diretos, sendo que aproximadamente 70% desses benefícios correspondem ao salário mínimo. Segundo dados do IBGE, a cobertura previdenciária hoje está ao redor de 73% da população ocupada até 59 anos, e o sistema foi o responsável pela saída de 26 milhões de pessoas e pela queda de 13% na pobreza, contribuindo para o aumento de 23% da renda e 15% de redução da desigualdade no Brasil.
A Previdência Social é a parte mais representativa do gasto primário, praticamente metade do orçamento público é direcionado para ela. Esses recursos são majoritariamente obrigatórios e, pela dinâmica demográfica das próximas décadas – que colocará certamente mais pressão sobre o sistema –, estima-se que somente o Regime Geral de Previdência Social (RGPS) será responsável por gastos equivalentes a 15% do PIB, em cinquenta anos. Apesar da necessidade de olhar esse processo com a cautela necessária para manter sua capacidade de financiamento no longo prazo, o sistema de previdência é, antes de tudo, uma grande massa de recursos públicos cobiçada pelo mercado, e este tem orientado o sentido das reformas desde a instauração do governo Temer.
Fracassada a proposta de reforma da Previdência de Temer, a alternativa defendida pelo mercado está centrada na criação de múltiplos regimes, e não mais na reforma do regime único. Entre as propostas, a mais elaborada é a da candidatura de Ciro Gomes, que, de forma resumida, está centrada em três grandes mudanças: a separação do regime de Assistência Social (Benefício de Prestação Continuada (BPS), a Lei Orgânica de Assistência Social) e a Previdência Rural do RGPS, com fontes próprias de financiamento; a reforma do RGPS, com introdução de idade mínima e redução do teto para três salários-mínimos; a separação das rendas acima desse novo teto do RGPS, em regime de capitalização, com um custo de transição de aproximadamente R$ 300 bilhões e emissão de títulos previdenciários comercializáveis aos membros desse grupo que já tiveram tempo de contribuição entre o novo teto e o teto atual do RGPS.

Deixando para outro espaço a importante discussão sobre os regimes próprios de previdência (servidores públicos), a complexidade dessa proposta de múltiplos regimes impede uma leitura clara de suas consequências. O suposto equacionamento do déficit do RGPS terá como preço a pagar não somente o alto custo fiscal de transição, como também um forte processo de mercantilização da parte alta do RGPS, entregando as aposentadorias da classe média à especulação financeira.
Ademais, retirar a parte não contributiva (BPC e rurais) do RGPS destrói o laço solidário da Seguridade Social e é implicitamente um caminho para a desvinculação do salário mínimo desses benefícios, mesmo entendendo que a proposta afirme claramente que a vinculação permaneceria. A reforma trabalhista, ao diminuir o potencial de formalização do mercado de trabalho no longo prazo, produzirá uma enorme fila por acesso de pobres idosos ao BPC. A pressão sobre esse benefício será insuportável, e sua separação do sistema previdenciário, portanto da dinâmica contributiva dos trabalhadores e empregadores em idade ativa, vai enfraquecer o poder desse programa em se vincular ao salário mínimo.
Outro ponto que merece atenção é a retirada das altas rendas do RGPS por meio da redução do teto de contribuição. Apesar de parecer uma medida em direção à equidade, ela na verdade enfraquece a arrecadação do sistema e imporá no médio prazo regras de acesso muito mais rígidas que a proposta pela reforma atual. O RGPS possui um financiamento altamente progressivo pelo lado contributivo: o trabalhador contribui com base no teto do RGPS, mas o empregador contribui com base no salário bruto do empregado. Isso leva a uma participação maior no financiamento das rendas altas do que as rendas baixas, corrigindo distorções no mercado de trabalho em favor do trabalhador que recebe um salário próximo ao mínimo.
Por fim, capitalizar as rendas altas, acima de três salários mínimos, em forma de títulos da dívida previdenciária, pagando um valor de face no momento da aposentadoria, criará um mercado secundário imenso para esses títulos, com prováveis implicações sobre os seus valores de face. Como ocorrido durante a experiência ditatorial chilena, a classe média vai antecipar a renda de aposentadoria aprovisionada para trinta anos em menos de quatro anos de especulação financeira, vendendo os títulos no mercado a um preço muito inferior ao de face. Esse processo criará demanda no curto prazo, e uma sensação de enriquecimento da classe média, no entanto, no longo prazo o resultado não é promissor. O cidadão de classe média terá consigo uma aposentadoria de RGPS a um teto reduzido e o risco de ter poupado parte de seus recursos durante a vida laboral em uma previdência complementar, cujo valor de aposentadoria estará ao sabor dos ciclos econômico-financeiros. Somente um grupo de agentes ganhará com certeza, com essa proposta: os bancos e financeiras que operarem nesse novo mercado secundário de dívidas e nos fundos de previdência complementar. E não há garantia de que o problema estrutural de financiamento da previdência possa ser equacionado.
*André Calixtre é economista, mestre em Economia Social e do Trabalho e doutorando em Economia Política.