A produção do espaço urbano-periférico: barracos, ocupações e puxadinhos
Terceiro artigo da série “Periferias de São Paulo: cotidianos, conflitos e potências” analisa os arranjos espaciais para a moradia nas periferias, em que um mesmo núcleo familiar pode transitar entre ser inquilino, ocupante e proprietário à morador de rua. Este especial é uma parceria entre Le Monde Diplomatique Brasil e Fundação Tide Setubal
A vida da população trabalhadora é marcada por estratégias de sobrevivência, principalmente, no âmbito da moradia. A fim de apreender os meios encontrados pela população para se abrigar, os processos de transformação no padrão de autoconstrução, bem como a reconfiguração do espaço urbano nas periferias da cidade de São Paulo, especificamente no extremo leste paulistano, em que tal apreensão se objetivou pela pesquisa “Periferia de São Paulo: Heterogeneidade e novas formas de vida coletiva”, analiso aqui a transitoriedade dessa população e um dos aspectos para sua sobrevivência: o puxadinho na moradia.
Historicamente são os trabalhadores e as trabalhadoras por seus próprios meios e organização que constituem suas moradias e buscam a garantia de direitos como de infraestrutura, saúde, educação. O famoso “se virar” é a principal universidade da população brasileira. E é em períodos de crise política, econômica, social e sanitária, como o que estamos vivendo no Brasil, que se aprofundam o assolamento da pobreza e da busca da população por condições mínimas de subsistência. E isso se verifica na realidade concreta a partir do cenário da cidade de São Paulo nas suas calçadas do centro velho tomadas pelos cobertores e caixas de papelão, pelas barracas nas praças, as lonas pretas embaixo dos viadutos e nos terrenos vazios ao longo de estradas, nas várzeas de rios e ao redor dos muros dos trilhos dos trens. Nesses espaços encontramos ainda barracos de madeirite, paletes e algumas construções iniciadas com os blocos vermelhos, principalmente, na periferia da cidade.
Em meio à pandemia da Covid-19 o contingente de trabalhadores que perderam suas casas, que foram morar na rua pela dificuldade de custear o aluguel, vemos nessas situações formas novas de ocupações de moradia que são reintegradas e a população entra num movimento constante de se realocar em outros lugares. Não ter o lugar definido e seguro é a condição estabelecida para eles, assolada pela pobreza e miséria, sem moradia, sobrevivendo a um custo de vida altíssimo que tem o provisório e transitório permanentes.
A saga em busca por moradia, entre as várias formas encontradas, é narrada por Genilda dos Santos (2018), pernambucana, com três filhos e que, atualmente, mora numa casa na ocupação da Souza Ramos, na Cidade Tiradentes.
Eu morava em Embu das Artes, nós saímos de lá e viemos para Luiz Matheus, depois nós fomos embora para Recife. A casa que nós tínhamos meu marido vendeu, a mãe dele deu um terreno em Recife pra ele construir com o dinheiro que nós levamos, aí a gente foi e construiu. Tínhamos uma menina e um menino, depois de um ano ele endoidou pra vir embora. Eu engravidei do terceiro. Eu deixei minha casa lá e vim pra cá morar de aluguel, passei oito anos no aluguel, nós moramos em várias casas em Embu das Artes, depois compramos uma casinha que fica ali em Sapopemba, num lugar chamado Buraco do Tatu, que teve desabamento e afetou um monte de casa, a gente tava lá na época, foi uma batalha, aí foi quando a gente invadiu e a prefeitura tirou todo mundo, deu cinco mil reais e eu vim parar aqui na comunidade Souza Ramos, a gente comprou um barraquinho de madeira com esse valor, era área de invasão. Agora os filhos cresceram, agora já não tenho marido. A casa que a gente tinha meu ex-marido dividiu, era um sobradinho, um fica na parte de cima e outro na parte debaixo. Aqui é um terreno particular não é garantido, uma hora o dono pode vir e você perde tudo. Então eu vim procurar uma coisa que tenha um documento pra me sentir garantida, foi quando eu entrei no movimento (Genilda dos Santos, 2018).
Em termos de habitação, a história de Genilda envolve a produção de moradias agregadas e com familiares, aluguel de um imóvel, ocupação de terrenos vazios, compra ou construção de barraco na favela/comunidade, compra e/ou divisão de um lote, organização em movimentos de moradia e mutirões de habitação. Observamos que os arranjos espaciais para a moradia são as mais diversas e que um mesmo núcleo familiar pode transitar entre todas essas possibilidades passando de inquilina, ocupante e proprietária à moradora de rua.
Nesse sentido e considerando o cenário atual da cidade de São Paulo, podemos destacar dois aspectos principais dessa busca por moradia: o primeiro se relaciona a esse trânsito constante no acesso à terra; o segundo, envolve os territórios periféricos já consolidados que tem o puxadinho, divisão da casa, assim como a sua ampliação para abrigar mais pessoas ou fazer usos do espaço para outras funções, inclusive para fins de trabalho e renda, como característica transitória na formação desses espaços.
Partindo do primeiro aspecto, a história de Genilda demonstra esse trânsito de busca pela moradia. Ela, que morou na “favela do Buraco do Tatu”, ressalta os riscos que sofreu com desabamento e que, na época, a prefeitura tirou todos de lá e “deu cinco mil reais” para cada família, então eles compraram um terreno na “invasão” onde dividiram com outra pessoa cada qual pagou R$ 2.500,00 reais na parte do terreno que é particular.
O medo de ocupar um território, construir, melhorar as condições da casa e perder a moradia são frequentes na vida do povo, seja por enchentes, deslizamentos ou por medidas de reintegração de posse, como ocorre no relato de Gilmara:
Meu pai ele nunca tinha esse cuidado de construir bem feito, porque sempre achava que ia derrubar. Então vivemos 25 anos numa casa onde achava que ia derrubar. Meus pais se separaram, aí a gente vendeu a casa muito barato pra dividir. Com o dinheiro meu pai comprou um terreno e fez a casa dele toda impecável, claro que nas condições humildes, mas tipo azulejo, reboco, pintura, tal. Aí ano passado derrubaram a casa dele. E era uma coisa que a gente temia né, porque, uma pessoa que se dedicou tanto, gastou todo dinheiro dele para ter uma moradia, a gente falou assim: meu o pai não vai viver depois disso. (Gilmara de Souza, 2018).
“Meu pai não vai viver” é a condição no relato de Gilmara que evidencia a expectativa do pai em 25 anos morando numa casa, mas que com a irregularidade do imóvel gerava medo e insegurança em investir na moradia e perdê-la. Mas a compra de um terreno talvez tivesse dado a segurança que ele não teve e ocorre, justamente aquilo que o fez tanto temer ao longo de tantos anos: a reintegração de posse.
Essa dinâmica gera processos de instabilidade, insegurança e um custo elevadíssimo material e subjetivo para a vida da população. Uma grande parcela da população, muitas vezes, detém a posse da moradia, mas não a propriedade dela. A titularidade da casa, a escritura, um documento que demonstre que é “seu” aquele imóvel modifica a condição de moradia e as instabilidades geradas por conta dela.
A condição material e subjetiva desse sujeito e de tantos outros é o que chamamos de transitoriedade urbana-periférica, uma expressão da condição objetiva do trabalhador precarizado e pauperizado de nossa formação societária. Essa concepção que apresentamos se baseia na noção de Raquel Rolnik (2015) sobre a transitoriedade permanente na égide do capital e o processo de periferização tratado por Ermínia Maricato (1999), identificando o movimento, a condição material e subjetiva a que estão submetidos esses trabalhadores e trabalhadoras numa determinada territorialidade, a periferia, ou seja, demonstra uma condição de indefinição constante na falta de alternativas e políticas de habitações estruturais.
No Estado de São Paulo as políticas habitacionais são ínfimas ou inexistentes para atender a demanda habitacional. A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) tem realizado as parcerias público privado para produção de unidades habitacionais, voltadas para a população com recursos acima de três salários mínimos. Também a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (COHAB), na gestão Dória/Covas (2017-2020), tem feito parceria com construtoras e licitado os terrenos da COHAB para construção de habitações, sem nenhum programa habitacional há anos, apenas com o lançamento do Programa “Poder Entrar”, mas que foi suspenso em decorrência da pandemia da Covid-19. Essas medidas expulsam a população que ocupava os terrenos do município como vem ocorrendo mesmo em meio à pandemia como demonstra o mapeamento do labcidade.
Além dessas “políticas”, o governo federal no período do lulismo, com o Programa “Minha Casa Minha vida” (PMCMV) foi o que mais promoveu habitação para as populações de baixa renda, caracterizadas na faixa I e II do programa, conforme dados indicados pela Caixa Econômica Federal foram cerca de 3,857 milhões de habitações populares até 2016. Ainda assim, ela não foi suficiente para sanar o déficit habitacional que no Brasil chegou a 7,770 milhões de domicílios em 2017 conforme a pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV) com o Sindicato da Indústria da Construção do Estado de São Paulo (SindusCon-SP). Somente no Estado de São Paulo a mesma pesquisa indica um déficit de 1,8 milhões de moradia, o que representa 23% do déficit nacional.
As políticas de habitação realizadas pelos governos, principalmente, o PMCMV, reproduzem a lógica de acumulação capitalista com base na valorização da terra, assim os proprietários dos terrenos vazios da cidade especulam para que possam entrar nessa lógica de produção e valorização, tornando mais caro o acesso à terra. Assim a permanência nas casas dos familiares e/ou a locação de cômodos (puxadinhos) são formas predominantes que temos encontrado nas periferias de São Paulo.
Daí o segundo aspecto abordado, que aparece também na narrativa de Genilda, se refere a divisão da casa para abrigar o novo arranjo das relações estabelecidas. Ela diz que a insegurança com a sua condição fez com que ela encontrasse no movimento de moradia o espaço coletivo de luta para conseguir acesso a casa própria, o que a levou a se separar do marido. De certo modo, os movimentos de moradia, estabelecem uma segurança maior, empoderamento e autonomia financeira para as mulheres. A separação levou o marido a dividir a casa que moram na comunidade Souza Ramos de modo que, o ex-marido ficou na parte debaixo da casa, enquanto ela divide os três cômodos da parte de cima com os três filhos, mais o namorado da filha.
Uma grande parcela da população que conquistou sua moradia através da compra de um lote e/ou em um processo de ocupação das chamadas “invasões” de terra, construiu sua casa por meio da autoconstrução. Isso significa que a produção da moradia e os recursos utilizados para que a mesma fosse efetivada, partia dos próprios trabalhadores no tempo que lhe sobrava após o trabalho, o que Francisco de Oliveira (2006) chamou de supertrabalho. Porque segundo ele, a autoconstrução extraia uma espécie de sobreproduto do trabalhador, uma vez que rebaixava os custos dessa reprodução e também da força de trabalho, desta maneira a autoconstrução contribuiria com o processo de reprodução ampliada do capital, até porque o salário não contemplava a necessidade de moradia.
No processo de autoconstrução as famílias iniciam suas moradias, produzindo de um a dois cômodos para conseguir entrar o mais rapidamente na casa e, ao longo da vida, vão ampliando conforme suas necessidades e condições. Entre as necessidades, o que verificamos são as formas, funções e usos atribuídos à casa com a sua ampliação e divisão para determinados fins, como agregar filhos e familiares ou até mesmo amigos próximos. Da divisão da casa, passa para uma construção de outra moradia no mesmo terreno, ou ainda, acima da casa inicial. Não por acaso é recorrente nas periferias da cidade moradias com três e quatro andares, o que gera um adensamento no território. Desta maneira, podemos dizer que o puxadinho é uma extensão do processo de autoconstrução, no qual ele amplia os usos dos espaços da casa, ele surge tanto como uma estratégia e meio de subsistência da população, mas também, tende a precarizar a precariedade.
Os puxadinhos também são utilizados como um fator de capital, seja a partir de sua locação ou por meio do uso enquanto um espaço de comercialização. Este é o caso de Iara Oliveira, moradora do Jardim Nazareth, que narra a dinâmica da sua casa em conjunto com o bar que abriu. No terreno conquistado por compra de lote, ela levantou dois cômodos, em um deles ela vivia com o marido e os três filhos, ainda pequenos, no outro cômodo ela tinha o bar. Enquanto o marido trabalhava fora de casa, Iara cuidava do bar, depois da pizzaria e agora no mesmo espaço com outras estruturas está sua filha de trinta anos com o salão de cabelereiro. O que percebemos é o fato do puxadinho, enquanto ponto comercial, ter uma característica de ser provisório e temporal no tocante aos usos, funções e necessidades. O que pode apontar também as dificuldades de conseguir manter um comércio no mesmo ramo à longo prazo. Deste modo a casa, a sua divisão e ampliação para fins de trabalho, significa o complemento de renda e ou única fonte de renda para uma parcela da população. Devido as crises conjunturais e os rearranjos do modo de produção, a casa não é somente um espaço da “reprodução da força de trabalho”, mas também o meio de enquanto proprietário se apropriar de uma renda para a produção e reprodução da própria vida.
Contudo, a conquista da moradia é compreendida como uma fonte segura de investimento que a população mais precarizadas pode adquirir e fazer dela um bem a longo prazo. Mas a dificuldade de acessar a terra ou um bem móvel faz com que a população passe a ocupar determinadas áreas, expulsa das áreas centrais por um processo de segregação, o qual tanto a localização da população, assim como a centralidade da cidade é determinada pelo controle da produção do espaço pelas elites. Para Flávio Villaça (2001) elas detêm o controle do espaço através do poder econômico, uma vez que controlam o preço da terra pelo mercado imobiliário; do poder político, de modo que influenciam o Estado a investirem em determinado lugar que se valoriza, e que torna mais caro o custo de vida, fazendo com que uma camada da população se realoque, porque com os salários rebaixados não conseguem arcar com os custos desta valorização. Daí se expressa o padrão de segregação socioespacial existente na cidade, que faz com que co-exista de forma combinada espaços concentrados de riqueza em contraposição a espaços escassos dessa mesma riqueza socialmente produzida, e isso não necessariamente está cindido por territorialidades distantes, mas pode ser observada através dos condomínios fechados ou enclaves fortificados como nos termos de Teresa Caldeira (2000).
Daí os modos encontrados pela população para a sobrevivência, tanto no aspecto da moradia quanto do trabalho são os mais diversos e criativos, no entanto, vemos também o crescente aumento das garagens da casa se tornarem um comércio. A moradia amplia esse leque de possibilidades criativas da sobrevivência, mas ela entra como um fator de capital que só é possível por parte daquele que é proprietário, ou ainda, tem a terra como posse dele.
Porém o puxadinho não se delimita apenas pela forma arquitetônica em que as moradias vão tomando, mas também pelo modo de vida. Tampouco ele traduz uma forma homogênea, ao contrário disso, ele demonstra a diversidade, a heterogeneidade pulsante de uma determinada camada de trabalhadores, sobretudo, os mais pauperizados que vivem através dos arranjos espaciais que o contexto econômico, político e sociocultural lhe infere.
Portanto, a transitoriedade urbana-periférica se expressa tanto pelas estratégias da população de se abrigar, quanto através do puxadinho que revela os arranjos espaciais da moradia de forma heterogênea e predominantemente em territórios já consolidados. Essas estratégias se combinam e se intensificam em períodos de crise econômica e social, seja pela dificuldade da população em conseguir moradia própria, e tendem a se aglomerar em espaços improvisados dos familiares, seja pela necessidade emergente de gerar renda o que faz com que utilize, em muitos casos, do único bem que detém como fator de capital: a casa que gera as condições de sobrevivência por meio da insurgência do uso.
Renata Adriana de Sousa é cientista social, educadora popular e articuladora cultural. Graduada em Ciências Sociais pela Fundação Santo André, mestre também em Ciências Sociais pela Unifesp, integrante do coletivo de pesquisadores periféricos do CPDOC Guaianás.
Referências bibliográficas
MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo. Ilegalidade, desigualdade e violência. Capital & Class, v. 23, n. 3, p. 182-185, 1999.
BONDUKI, Nabil; ROLNIK, Raquel. Periferias: ocupação do espaço e reprodução da força de trabalho. São Paulo: USP, Faculdade de Arquitetura e Urbanismo: Fundação para Pesquisa Ambiental, 1979a.
_____. Periferia da Grande São Paulo: Reprodução do Espaço como expediente de Reprodução da força do trabalho. In: MARICATO, E. (Org.). A produção capitalista da casa (e da cidade) no Brasil industrial. São Paulo: Editora Alfa-Omega, 1979b.
CALDEIRA, Teresa P. do Rio. Cidade de Muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000.
KOWARICK, Lucio. A espoliação urbana. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
___________. Escritos urbanos. São Paulo: Editora 34, 2000.
LEFEBVRE, Henri. A revolução urbana. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999.
OLIVEIRA, Francisco de. “O vício da virtude”. In. Novos estudos 74. São Paulo: Novos Estudos Cebrap, 2006.
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo: Studio Nobel/FAPESP, 2001.