“A própria ausência de si”: gramática, voz e o corpo
Confira resenha de A nudez extinta, livro de Isabela Sancho lançado em 2022 pela Editora Urutau
Para ler um livro é preciso criá-lo dentro de si. Colocar as palavras do texto para transigir com o próprio vocabulário. Em A nudez extinta, de Isabela Sancho, somos apresentados à polifonia de seus dezesseis contos curtos: cada um comparece com sua própria voz narrativa, suas próprias palavras.
A voz é algo que vem do corpo, e o corpo é criado, cresce e se tensiona na escritura de A nudez extinta. O corpo aparece nu, observado por um grupo de estudantes de arte no conto “Modelo vivo”, empenhando-se à perturbação artística daqueles que o veem. Ele pertence a uma modelo que parecia “transformar os limites da sala em verdadeiros horizontes com suas pálpebras entreabertas, ou criava a própria ausência de si fechando-as”. Assim, Isabela Sancho nomeia um hiato que fascina e opera um desmonte em nós, que transitamos a linguagem: o vazio deixado pela pergunta “quem sou eu?”. O vazio criado pela inconformidade do corpo com o eu.
Já mais adiante no livro, outra voz narrativa reocupa o tema do corpo em “Então a noite foi aberta”. Belamente somos convidados adentrar a carne dessa personagem que tem “atravessada no peito a troca da noite pelo dia”. Ser trespassado pelo tempo é, afinal, uma das vicissitudes do corpo.
Para essa voz narrativa é preciso “recobrar algum senso de si, como quem metesse as tripas adentro”, lembrando-nos de que, como em “Modelo vivo”, ainda estamos no campo da ausência, esticando-nos na direção daquilo que cremos poder ser. Ainda estamos falando de um eu que não habita o corpo com naturalidade.
Nesse “Então a noite foi aberta”, testemunhamos uma carne que briga com Eros, que o mostra como experiência perturbadora e protagoniza esse limite entre o eu e a ausência do eu, o dentro e fora das vísceras. Meter “as tripas adentro” mostra uma tensão fronteiriça do corpo entre a “ausência” e o “recobrar” de si.

Isabela Sancho mantém os olhos escuros e bonitos de seu projeto poético pairando no texto e continua a discussão do limite também no conto que dá título ao livro: “A nudez extinta”. Através do desfrute erótico da pele, incentivado por uma “ausência de si” narcótica, a protagonista trata essa pele quase como meio poroso com que tenta absorver o outro e, até mais importante, desfazer-se de si. Desfazer-se das marcas que carrega, trocando-as por uma nudez fantástica. A protagonista fica, então, pinçada entre o se despir e o misturar da própria pele com a de outrem, com quem quer estar identificada.
O livro nos dá ainda mais uma ilustração dos limites da linguagem, que é apresentada pela autora no conto “Souvenirs”: o falar de uma língua estrangeira. Nesse conto, o protagonista está deslocado de seu país de origem; habitar um país estrangeiro é o que tensiona a questão de limite entre o eu e outro dessa vez. A voz narrativa dá nome ao problema, a língua materna: “Queria aprender o francês de verdade, tão bem que começasse a confundir as premissas da minha língua materna, esquecendo suas regras e deixando para trás a maior parte das palavras que me acompanham”.
A gramática de Isabela Sancho nesse livro captura a da nossa língua materna, inscreve-se nela. As vozes narrativas, afinadas por um mesmo projeto poético, treinam os ouvidos do leitor. Adquirimos no próprio “A nudez extinta” o vocabulário que permite que o leiamos. E, mesmo ao fim, continuamos a habitar seu mundo à nossa revelia. As vozes ecoam, reaparecendo nas narrativas que criamos para nós mesmos com a tinta de que todos dispomos: nossos próprios corpos.
Lureen Asei é graduada em Ciências Econômicas pela UNESP-FCLAr. Estudante de Tradução e Psicanálise. Escreve. Natural e residente de São Paulo, SP.