A solidão da mulher negra é sobre pertencimento e identidade
Toda mulher negra em ascensão, em alguma medida, está preparada para observar, pairando sobre si, olhares que dizem muito mais do que frases seriam capazes de expressar: “seu lugar não é aqui!”
Recentemente, viajei pela segunda vez a Paris e, embora a viagem tenha sido uma experiência incrível, eu e a Dra. Fernanda Macedo – também mulher negra e especialista na temática racial – pudemos repensar e ressignificar a solidão da mulher negra para além de uma vivência nas relações amorosas, mas sim uma vivência de exclusão em sociedade, um não lugar, seja junto a mulheres brancas, a homens negros e assim por diante.
Nesta viagem, um senhor, branco e francês, nos ofendeu no metrô. Sabemos que as novas gerações são mais abertas, e em geral nos sentimos muito acolhidas, mas o fato é que gerações anteriores persistem com comportamentos discriminatórios. Até aí, nada novo sob o Sol, infelizmente situações como essas são recorrentes.
Toda mulher negra em ascensão, em alguma medida, está preparada para observar, pairando sobre si, olhares que dizem muito mais do que frases seriam capazes de expressar: “seu lugar não é aqui!”. Isso porque, como sempre costumo dizer, o contexto social, econômico e político brasileiro apresenta singularidades que devem ser consideradas ao se observar as relações étnico-raciais, sobretudo a partir das vivências que tivemos com os imigrantes africanos em Paris, quando se trata da forma como o racismo incide sobre essas relações.
A compreensão do panorama complexo da realidade brasileira, a partir de óticas como as nossas, é fundamental para evidenciar a posição da mulher afro-brasileira dentro dessa sociedade. Notamos também que, em toda nossa estadia, homens negros africanos de diversas ancestralidades, provavelmente por causa da nossa miscigenação, nos assediavam de forma extremamente violenta. Houve um que, além de passar por nós na rua falando, segundos depois estava em um carro com um grupo de amigos e retornou gritando palavras que não conseguimos entender, o que nos causou imenso constrangimento.
A partir dessas duas reflexões, fomos lembrando de situações vivenciadas no Brasil em que, ao sofrer assédio de homens, mulheres presentes nos recintos não nos apoiaram, ou quando, ao sofrer assédio e desvalorização sendo fetichizadas, o comportamento vinha dos próprios homens negros. E concluímos, somos mulheres, mas não há respaldo das mulheres brancas. Somos negras, mas não há respaldo dos homens negros!
Vale destacar que esse feito é fruto de um projeto muito bem estruturado e materializado pela diáspora africana, que é o nome dado a um fenômeno caracterizado pela imigração forçada de africanos para escravização. Esse fato nos tirou o pertencimento e a referência, mas também tirou de nativos africanos a identificação e o reconhecimento em relação a nós negros brasileiros como parte de seu povo.
Qual seria então o nosso lugar em sociedade? De onde virá o apoio e acolhimento que todos têm dentro da estrutura social e a nós é relegado? Será das próprias mulheres negras? Pensamos.
Infelizmente nem sempre é assim, além de segregarem as mulheres negras, também lhes foi ensinado a se segregarem entre si. Por isso, embora muitas vezes encontremos apoio e acolhimento entre as nossas, nem sempre essa retórica é verdadeira. Resta a cada uma defender a si mesma com unhas e dentes, e ainda assim ser tachada de negra agressiva, assim como Michele Obama, no começo de seu livro autobiográfico, relatou que aconteceu com ela inúmeras vezes.
O processo de empoderamento negro brasileiro está longe de ser concluído. Precisamos, urgentemente, nos reconhecermos como a unidade que somos: negras afro-brasileiras. Com nossas singularidades, dores e lutas.
Pensei em algum momento que não querem somente nos exterminar e matar socialmente. Querem também, como êxito final, que nos matemos umas às outras e uns aos outros, enquanto população negra.
Liliane Rocha é mestre em Políticas Públicas pela FGV, CEO e fundadora da Gestão Kairós e Conselheira de Diversidade.
Muito pertinente esse tipo de conteúdo que vem trazendo luz a essas questões. Conscientizar as pessoas de que o racismo existe sim e a pesar de velado, continua sendo gerador de sofrimento e segregação.