Mulheres negras afirmam o bem viver como superação do racismo
Desde a primeira edição, a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver afirma como horizonte transformador a superação do sistema de subordinação racial e de gênero que estrutura as relações sociais no Brasil
No dia 31 de julho, aconteceu a VIII Marcha das Mulheres Negras, no Posto 3, em Copacabana. O evento contou com a participação de milhares de mulheres negras, que vieram de todas as regiões do estado do Rio de Janeiro.
A marcha anual faz alusão ao Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, celebrado em 25 de julho. A data surgiu em 1992, durante o 1º Encontro de Mulheres Negras, na República Dominicana. No Brasil, a data celebra também o Dia Nacional de Tereza de Benguela, líder quilombola que resistiu à escravidão. Em 2022, após dois anos sendo realizada de modo virtual por conta da pandemia, a marcha voltou a ser presencial.
Mesmo com inúmeros desafios, voltamos a marchar por direito à vida plena, dignidade e direitos sociais. “Mais uma vez estamos em marcha, desta vez duas questões se sobrepõem a tantos outros pontos de nossas reivindicações. De forma alguma nos esquecemos que nós, mulheres negras, somos as principais vítimas do feminicídio, da violência doméstica, da mortalidade materna, do desemprego. Que seja nas áreas urbanas ou rurais, disputamos a vida nas cidades sob inúmeras injustiças, no entanto, definimos como algo que devemos evidenciar nesta marcha é que a nossa luta por direitos tem a ver com ocuparmos os espaços de poder e decisão na política representativa (partidária). Também retomamos o quanto continuamos a viver, em vários setores das nossas vidas, os impactos da pandemia do Coronavírus, que ainda não acabou, mas que não vemos aquelas questões que foram salientadas por deixar a comunidade negra em maior vulnerabilidade. Falamos sobre falta de comida, falta de acesso a água e outras urbanidades, falta de política habitacional, falta de acesso à internet, falta de política educacional com foco nas nossas crianças adolescentes e jovens adequadas a realidade vivida neste momento”, diz o manifesto oficial do evento.
A conjuntura do acesso à saúde pública no Brasil já estava em um processo difícil; a pandemia da Covid-19 agravou esse quadro. Por outro lado, coletivos liderados por mulheres negras construíram saídas e formas de enfrentamento a partir de apoio comunitário mútuo, devido às muitas consequências que atingiram a população negra.
Contudo, houveram muitas perdas e retrocessos, especialmente, no que tange aos direitos sexuais e reprodutivos. Sendo assim, a partir do conceito justiça reprodutiva, buscamos reconhecer a singularidade das mulheres, as especificidades e contextos que elas estão inseridas, além dos atravessamentos de raça, classe, gênero e opressões correlatas. Para contribuir com esse esforço político, temos como base a carta manifesto construída para a primeira marcha nacional das mulheres negras. “Racismo e sexismo são eixos extremos de diferenciação negativa. Portanto, a confluência desses dois elementos deve estar no cerne da ação política, exigindo enfrentamento simultâneo dessas variáveis por parte dos governos mundiais. Onde medir as desigualdades e discriminações? Em todos os campos por onde a vida se materializa: saúde, direitos sexuais e reprodutivos (as mulheres rurais possuem menos meios de conseguir certos tipos de assistência do que as que habitam a cidade, devido às distâncias dos equipamentos e serviços de saúde de suas residências; mulheres lésbicas e transexuais e transgênero, muitas vezes, têm que lidar com o preconceito acerca de sua orientação sexual e sexualidade e também com o despreparo do corpo médico com relação às suas especificidades; as mulheres negras enfrentam ainda violência institucional nos serviços médicos, principalmente no que diz respeito ao racismo e ao sexismo…).”
Assim, é necessário compreender que a justiça reprodutiva precisa promover um ambiente político comprometido e que englobe todas as questões relacionadas à justiça social e aos direitos humanos. No Brasil, foi por meio do movimento de mulheres, sobretudo do movimento de mulheres negras, que se reivindicou a liberdade reprodutiva, exigindo do Estado a garantia dos direitos reprodutivos, defendendo condições básicas para a manutenção da vida, imprescindíveis para que as mulheres negras pudessem exercer a sua sexualidade e seus direitos reprodutivos, controlando sua própria fecundidade e decidindo se desejam gerar ou não. Desse modo, defendiam também o quanto o Estado deveria garantir informações e o acesso a serviços de saúde para promover o direito à gravidez, ao parto e ao aborto legal seguros.
Apesar dessas reivindicações, as mulheres ainda são vítimas de morte materna, sobretudo as mulheres negras. Morrem ao parir na procura pelos serviços de saúde e morrem dentro da maternidade. E morrem ao abortar. Isso significa dizer que a morte materna é a face mais escancarada do racismo e de suas diversas manifestações.
A primeira marcha nacional organizada pelas mulheres negras ocorreu em 2015, em Brasília, quando 50 mil mulheres de todo o país ocuparam o espaço público anunciando novos valores à existência, à dinâmica da vida e da ação política, traduzidas, naquele momento, na concepção do bem viver: “Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver”.
Nós, mulheres negras, entendemos que a superação do racismo na sociedade atual exige um debate acerca dos padrões de relações sociais e de reprodução da vida. A luta antirracista liderada pelas mulheres negras conquista um lugar singular, no qual as lutas sociais representam o processo de construção em que uma nova forma de existir no mundo passa, principalmente, pela experiência de ser mulher negra. E tudo o que isso representa em uma sociedade racista, patriarcal e cisheteronormativa.
Desde a primeira edição, a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver afirma como horizonte transformador a superação do sistema de subordinação racial e de gênero, que estrutura as relações sociais no Brasil. Em seu primeiro manifesto, as ativistas apresentam uma proposta de transformação social que estão dispostas a construir. “Nós, mulheres negras do Brasil, irmanadas com as mulheres do mundo afetadas pelo racismo, sexismo, lesbofobia, transfobia e outras formas de discriminação, estamos em marcha. Inspiradas em nossa ancestralidade somos portadoras de um legado que afirma um novo pacto civilizatório. Somos meninas, adolescentes, jovens, adultas, idosas, heterossexuais, lésbicas, transexuais, transgêneros, quilombolas, rurais, mulheres negras das florestas e das águas, moradoras das favelas, dos bairros periféricos, das palafitas, sem teto, em situação de rua. Somos trabalhadoras domésticas, prostitutas/profissionais do sexo, artistas, profissionais liberais, trabalhadoras rurais, extrativistas do campo e da floresta, marisqueiras, pescadoras, ribeirinhas, empreendedoras, culinaristas, intelectuais, artesãs, catadoras de materiais recicláveis, yalorixás, pastoras, agentes de pastorais, estudantes, comunicadoras, ativistas, parlamentares, professoras, gestoras e muitas mais. A sabedoria milenar que herdamos de nossas ancestrais se traduz na concepção do Bem Viver, que funda e constitui as novas concepções de gestão do coletivo e do individual; da natureza, política e da cultura, que estabelecem sentido e valor à nossa existência, calcados na utopia de viver e construir o mundo de todas(os) e para todas(os)”.
A subordinação imposta às mulheres negras e a humanização incompleta proveniente dos lugares de dominação das opressões que as atravessam demanda compreender como raça, classe e outras opressões correlatas reconfiguram o modo como as mulheres negras vivenciam o gênero. Em nossa sociedade, o racismo estrutural se perpetua enquanto sistema de opressão, e ler as desigualdades sociais produzidas pelo racismo patriarcal cisheteronormativo é contestar o feminino universal, que tem como referência as vivências das mulheres brancas. É diante dessa grande questão que o conceito pontência de justiça reprodutiva é tão necessário e urgente, como uma lente para compreender o acesso e a garantia aos direitos sociais e saúde sexual e reprodutiva para todas as mulheres negras.
A tarefa das mulheres negras em marcha se coloca para além do reconhecimento das desigualdades e do racismo patriarcal cisheteronormativo enquanto elemento estrutural da sociedade. Nós compreendemos que construir soluções possíveis só poderá ocorrer de forma coletiva; é uma tarefa de toda a sociedade brasileira, contudo, só faremos juntes assumindo e reconhecendo a contribuição e a radicalidade histórica do movimento de mulheres negras.
Por fim, reafirmamos que “(…) Na condição de protagonistas da proposição de outra forma de ver e intervir no mundo, sintetizada nos fundamentos do bem viver, oferecemos ao Estado brasileiro nossas experiências historicamente acumuladas como forma de construirmos coletivamente uma outra dinâmica política. Pelo que se viu, essa outra dinâmica é impossível sem a superação do racismo, do sexismo e de todas as formas de discriminação, responsáveis por subtrair a humanidade de mulheres e homens negros. Postulamos que a construção desse processo deve ser iniciada aqui e agora. Desse modo, assinalamos alguns pontos inegociáveis (…)”.
E destacamos, assim, um dos pontos inegociáveis o “direito à seguridade social (saúde, assistência social e previdência social). Assegurar às mulheres negras as políticas de seguridade social, por meio do acesso a serviços essenciais de saúde, assistência e previdência social; Erradicar o racismo institucional nas organizações públicas e privadas e em suas diferentes políticas, planos e programas de ação; Implantar a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra no Sistema Único de Saúde; Ampliar a Política Nacional de Atenção Integral à pessoa com Doença Falciforme para todo o território nacional, a partir de um conjunto de medidas, como o fomento a pesquisas e técnicas de atenção e assistência; Descriminalizar o aborto e garantir o atendimento ao aborto legal na rede pública, bem como os procedimentos de profilaxia às mulheres em situação de violência, incluindo também o acesso à pílula do dia seguinte; Assegurar a estruturação e o aparelhamento dos equipamentos de saúde da rede pública, especialmente daqueles voltados para o atendimento à saúde da mulher, incluindo recursos humanos especializados e outros insumos necessários; Erradicar a mortalidade materna de mulheres negras, aprimorando as políticas em curso e incluindo o quesito cor na avaliação de risco; Implantar políticas de Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos nas áreas da educação, da saúde e da segurança, garantindo o respeito à livre orientação sexual, as identidades de gênero, a autonomia do corpo da mulher ao direito ao aborto, bem como promover ações voltadas para a saúde sexual e saúde reprodutiva”.
Marina Ribeiro faz parte do Coletiva Popular de Mulheres Zona Oeste/Teia de Solidariedade Zona Oeste do Rio de Janeiro. Larissa França integra o Coletivo Piracema/Teia de Solidariedade Zona Oeste. Ambas compõem a equipe do projeto Radar Saúde Favela (Fiocruz), juntamente com Fábio Araújo, Fábio Mallart, Raimundo Carrapa, Emerson Baré, Mariane Martins, Luciene Silva e Paulo Roberto Ribeiro.
Texto publicado em parceria com o Radar Saúde Favela – Fiocruz.
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