Pela justiça reprodutiva das mulheres lésbicas e bissexuais
O debate sobre justiça reprodutiva da população lésbica e bissexual é pouco difundido no país, e, consequentemente, o acesso a informações gera preocupação para a viabilidade de direitos e o cuidado integral com a saúde
Maria, uma mulher bissexual, negra e mãe solo, passou 20 anos se consultando com a ginecologista que havia atendido sua mãe durante toda a vida. Por esse motivo, não conseguia falar sobre a sua sexualidade com medo de represálias. A médica, por sua vez, nunca teve a curiosidade de perguntar a sua orientação sexual e, assim, todas as suas consultas eram em torno de uma suposta sexualidade heterossexual, presumida desde sempre.

Maria decidiu trocar de profissional e, assim, passou por mais três especialistas que também não se preocuparam em saber sobre a sua sexualidade. Na quarta ginecologista, Maria teve coragem e disse: sou bissexual! A médica, desconcertada, logo informou que nunca tinha estudado sobre essa particularidade; era a primeira vez que atendia uma mulher bissexual.
Lily era recente moradora de um bairro na periferia de João Pessoa (PB). Como parte da ação da Atenção Básica em Saúde, a agente comunitária foi em sua casa fazer o cadastro domiciliar, territorial e individual de todos os componentes da família. A agente comunitária de saúde (ACS) perguntou quantas pessoas viviam naquela casa e Lily respondeu: duas adultas e dois adolescentes. Logo em seguida, a ACS, então, afirmou: pai, mãe e dois filhos. Dentro do questionário, pergunta-se sobre a sexualidade de cada ente familiar e o grau de parentesco. Em nenhum momento foi perguntado à Lily sua orientação sexual e muito menos a ACS se atentou ao gênero feminino usado para se referir às pessoas responsáveis pela família. Lily é uma mulher lésbica, casada com outra mulher, também lésbica, mãe de uma filha bissexual, um filho panssexual e um heterossexual.
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Quantas histórias como essas se repetem cotidianamente? Várias! E nem citamos as histórias de violências físicas, verbais e obstétricas que mulheres lésbicas e bissexuais sofrem historicamente de uma política de saúde estruturalmente LBfóbica.
A política de saúde, no Brasil, traz em sua redação a perspectiva da integralidade, que se reforça ao passo que o direito à saúde está imbricado aos direitos sociais participantes do tripé da seguridade social. Assim, a saúde não é concebida apenas como indivíduo-doença. É necessário considerar as múltiplas dimensões das vidas, que perpassam estruturas de classe, raça, sexo (gênero) e sexualidade. Portanto, falar sobre saúde é falar sobre Justiça Reprodutiva.
Ratificando esse entendimento, em 2011, tivemos um marco importante na luta do movimento Lgbt brasileiro, com a instituição da Portaria nº 2.836, conhecida como Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (Política Nacional de Saúde Integral Lgbt). O questionamento é: o que tem sido feito para que a saúde seja de fato integral e atenta às particularidades diversas? Que se tenha, de fato, uma justiça reprodutiva! Quando adicionamos a essa discussão a dimensão do recorte de sexualidade, é aí que a “coisa” desanda!
O Grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais Maria Quitéria – Paraíba, entendendo isto, desde 2002, vem atuando também no campo da saúde das mulheres LB. Uma militância que partiu da inquietação individual e que encontrou fortalecimento coletivo e político quando as fundadoras do grupo entrelaçaram as histórias e as demandas por uma saúde de qualidade, gratuita e na defesa da informação.
A nossa luta compreende que o Estado e, consequentemente, as políticas públicas e sociais, reproduzem a perspectiva patriarcal-racista-classista-heterossexista-Lgbtfóbica. Nesse sentido, neste trilhar de 20 anos de resistência, desenvolvemos ações voltadas ao (auto)cuidado de mulheres LB, negras e periféricas. Vivemos, atuamos e militamos nas periferias de João Pessoa e regiões metropolitanas. Isto não se pauta apenas por reconhecermos que o nosso quadro de ativistas são em sua maioria periféricas, mas, articulado com isto, trata-se de uma posição estratégica por aprendermos que, nesses espaços, o acesso às informações é precário, sobretudo pela ausência do Estado em garantir os mínimos direitos sociais. Em contrapartida, nota-se uma forte influência fundamentalista e conservadora.
Assim, o que se percebe em nossas ações e acompanhamentos contínuos é que não se avançou muito. As mesmas demandas e inquietações, que se transformaram em bandeiras de luta das mais antigas do grupo, são atuais como nunca.
Sabemos que o debate sobre justiça reprodutiva da população LB é pouco difundido no país, com discussões incipientes até dentro do próprio movimento social e, consequentemente, a realidade de acesso a informações é de extrema preocupação para a viabilidade de direitos e o cuidado integral com a saúde.
Até nós que voltamos a nossa militância para o debate da saúde na perspectiva da justiça reprodutiva, encontramos dificuldades em acessar materiais, formações, cursos e projetos. É um esforço contínuo de pautar, nas instâncias de controle social, que a justiça reprodutiva de mulheres LB deve ser garantida, de fortalecer o debate interno, de acessar informações e redes para a construção de conhecimento e formação, com o objetivo de movimentar o saber nos espaços que construímos e constituímos.
Diante da necessidade de fortalecimento e de ser contra-hegemonia, nós pontuamos diariamente, no real, um dos nossos nortes: ser uma Quitéria é estar no mundo! E assim, em um esforço coletivo, ocupamos espaços sempre em busca de nos conectarmos com grupos e pessoas diversas, pois acreditamos que a transformação social se faz apenas no coletivo. Entendemos que o nosso ativismo não deve ser endógeno e isolado, mas que devemos promover e realizar intercâmbios com outras organizações e instituições. E é assim, em um esforço coletivo, que nos últimos anos temos avançado na defesa da luta pela justiça reprodutiva de mulheres LB, participando de espaços informativos e buscando endossar os nossos princípios: defesa da equidade e de uma sociedade justa.
Nesse sentido, alinhadas na defesa de acesso à informação e à formação de qualidade e democrática, na perspectiva de aquilombamento e com trocas de vivências e experiências, integrando saberes científicos com conhecimentos individuais, e valorizando a troca de forma horizontal, desenvolvemos a nossa incidência política.
Janine Oliveira é mulher negra e bissexual. Integrante do Grupo de Mulheres Lésbicas e Bissexuais Maria Quitéria. Assistente Social da Atenção Básica em Saúde. Pesquisadora e ativista dos direitos sexuais e reprodutivos, defesa do aborto legal e seguro e dos direitos Lgbtqiap+.
Texto publicado em parceria com o Radar Saúde Favela – Fiocruz.