A negação dos direitos das mulheres negras
A ausência de dados sobre as condições em que mulheres cis e trans (sobre)vivem no sistema prisional compõe um quadro de violações e caminha na contramão de legislações, princípios e jurisprudências que orientam a produção de dados e o enfrentamento ao superencarceramento
Pensar sobre as mulheres presas no Rio de Janeiro demanda, em primeiro plano, apontar para a dificuldade de se obter dados. Entendemos que existem pelo menos 14 unidades mistas em funcionamento, tendo em vista a presença de mulheres trans em unidades nomeadas enquanto masculinas e de homens trans em unidades femininas. Os dados referentes a estes números não são públicos e, tampouco, temos acesso constante a eles.
Em 08 de agosto de 2022 havia um total de 1.515 presas, mas nestes números do “efetivo geral” das unidades não há dados sobre a população Lgbtqia+. Esse número só é produzido pela Coordenação de Unidades Femininas e Cidadania Lgbt da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária (Seap), o qual tivemos acesso somente aos dados de janeiro, em que havia 147 mulheres trans e travestis. Não sabemos, assim, sequer quantas mulheres estão efetivamente sujeitas ao ambiente torturante do cárcere.
A ausência de dados quantitativos sobre as condições em que mulheres cis e trans (sobre)vivem no sistema prisional, tanto no Rio de Janeiro quanto no Brasil, corrobora um quadro de violações e caminha na contramão de legislações, princípios e jurisprudências que orientam a produção de dados e o enfrentamento ao superencarceramento, tais como a Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Prisional (Portaria Interministerial nº 210 de 2014), a Nota Técnica nº 17 da Divisão de Atenção às Mulheres e Grupos Específicos do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde das Pessoas Privadas de Liberdade no Sistema Prisional (Portaria Interministerial nº 1, de 2 de janeiro de 2014) e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 347), indo de encontro também ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no artigo 1º da Constituição Federal, além de afrontar as Regras de Bangkok das Nações Unidas.
A não produção de dados, apesar de todas as recomendações legais e pressões da luta anticárcere, demonstra que as instituições brasileiras temem produzir registro e memória sobre as torturas, violências, violações e o genocídio. A quem interessa que o silêncio se mantenha e se expanda como tecnologia social de controle e aniquilação também sobre aquelas que viabilizam a resistência, subsistência e sobrevivência de famílias e comunidades negras – mulheres negras cis e trans?
Segundo o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, 71% das mulheres encarceradas estão em regime de prisão provisória ou em regime fechado. Além disso, todas as unidades mistas chamadas de femininas possuem múltiplos regimes simultâneos. E até mesmo diante das informações desatualizadas e não aprofundadas produzidas pelo Departamento Penitenciário Nacional, o Brasil é o quarto país em encarceramento feminino no mundo, sendo a maior taxa de variação entre todos os quatro e com um aumento de 656% em 10 anos (2006 a 2016).
O Rio de Janeiro, nesse cenário, possui a quarta população carcerária do país, sendo que entre as mulheres, 65% são negras. Não é possível dizer quantas dessas são mães porque tal informação não foi prestada pela Seap, mas sabe-se que a proporção em nível nacional é a esmagadora porcentagem de 74%. Não é possível também dizer sobre o contingente de mulheres trans e homens trans encarcerades.
Ainda na mesma precária fonte de dados, cerca de 75% dessas mulheres respondem ou foram condenadas por crimes sem violência ou grave ameaça. Um levantamento de maio de 2020 (Depen, 2020) apontava haver 3.233 mulheres grávidas, lactantes, mães de crianças de até 12 anos e/ou responsáveis por pessoas com deficiência em estabelecimentos prisionais do país. Analisando os dados fica perceptível que o Estado brasileiro decide deliberadamente pela política de superencarcerar mulheres negras, trans e cis, mantendo-as sob controle e opressão reprodutiva ao negá-las o direito de serem mães e exercerem a maternidade com dignidade, bem como negá-las acesso à assistência social, saúde e justiça. Pelos poucos dados, continuamos a viver uma emergência humanitária de injustiças reprodutivas, que atualiza o racismo estrutural brasileiro. Agora, o mecanismo que impõem violência, solidão, adoecimento, tortura e terror para mulheres negras não é mais a senzala dos senhores e sinhás de engenho, mas as penitenciárias e cadeias do Estado.
Não que no extramuros as violências não estejam presentes no cotidiano, pois os direitos das mulheres estão constantemente sob ataque, especialmente quando tratamos de direitos sexuais e reprodutivos. Sim, tivemos importantes conquistas ao longo dos anos, tais como: direito à acompanhante da parturiente e à doula, prevalência de uma lógica de manutenção de laços afetivos entre famílias, impedimento à violência obstétrica, respeito à identidade de gênero e nome social de trans e travestis, à união estável de LgbtqiI+, e tantas outras conquistas dos movimentos sociais. Não obstante, as vitórias extramuros continuam tendo um gosto agridoce mediante o cotidiano de violências e avanços antidemocráticos/fundamentalistas, tais como o projeto de crescimento do Estado Penal e punitivista baseado na estrutura do racismo patriarcal cis-heteronormativo.
A prisão, sobretudo, parece impedir por completo que todos e quaisquer um desses direitos ultrapassem seus muros, mesmo que as mulheres presas possuam exatamente o mesmo direito que nós à saúde, o que termina por visibilizar que cárcere e tortura são sinônimos[1].

Solidão e cárcere: mulheres e negação de direitos sexuais e reprodutivos
O convívio familiar das mulheres presas é irrisório. Poderíamos afirmar que esse cenário se dá, em parte, pelo abandono familiar, estimulado pela cultura racista e misógina; mas, nos parece ainda mais grave, pois o abandono é potencializado pelo Estado[2]. No Rio de Janeiro, como exemplo, não há nenhuma unidade feminina com espaço para realização de visita íntima. Somado a isso, são incontáveis as denúncias de violência praticadas por policiais penais nas filas das unidades femininas, incluindo episódios de revista vexatória, que já foi reiteradamente indicada como tortura e violência sexual, sem que nada possa ser dito pelas vítimas a cada agressão para que não lhe tomem carteirinha e o direito de visita.
Não há também assistentes sociais do próprio sistema prisional em nenhuma unidade do estado; técnicas necessárias à manutenção e o estímulo ao vínculo familiar, inclusive entre mães e filhos. A cena mais comum em uma unidade prisional é de mulheres em sofrimento e angústia por incertezas acerca do paradeiro de seus filhos depois que foram presas.
Para as lactantes, um ano é o tempo máximo que ficarão com seus filhos. Há relatos de separações feitas da noite para o dia sem a preparação da mãe. Separação também imposta logo nas primeiras horas de vida do bebê e de maternagem, tendo em vista que o deslocamento entre as unidades impõe o retorno em carros separados. Essas cenas são a reprodução de um dos mais marcantes legados da escravidão, materializada na crueldade da separação de famílias negras.
Mas não é somente os afetos prévios à prisão que são impedidos, mas também aqueles forjados dentro do cárcere. Casais lésbicos e bissexuais constantemente sofrem episódios de lesbofobia, inclusive, a impossibilidade de visita entre unidades femininas e o impedimento de visitação daquelas que já cumpriram pena no Estado e chegaram à liberdade. O regime imposto é de isolamento e solidão forçados. Solidão imposta em um espaço que mais se assemelha a um porão de um navio negreiro. As unidades femininas, como as demais prisões fluminenses, tem como sua marca o esgoto a céu aberto, vasos e ralos entupidos ou cobertos com uma garrafa pet para tentar conter baratas, ratos, lacraias. Nesse cenário, soma-se o racionamento de água que cai de duas a três vezes por dia, por 30 minutos, e uma alimentação que é marcada pelo jejum forçado por quase 15 horas.
Obviamente, este cenário leva a uma única certeza que é o adoecimento. Mulheres relatam ter que gritar por ajuda horas e dias a fio para conseguirem entregar o bilhete para atendimento (“catuque”) ao policial penal que, por sua vez, tem a liberdade de entregá-lo ou não no ambulatório. Caso o entregue, quem sabe, a presa terá atendimento. Resumindo: não há pré-natal adequado, não há sequer exame preventivo para todas, não há acesso à saúde plena para bebês recém-nascidos. Não há comida. Não há nada, além de violência.
O direito às medidas cautelares menos gravosas do que a prisão
Todavia, devemos lembrar que em razão da luta de movimentos sociais anticárcere que incidiram para o Marco da Primeira Infância, também pela concessão do Habeas Corpus Coletivo 143.641/SP, durante o ano de 2018, foi promulgada a Lei 13.769/18, que busca garantir o direito às medidas cautelares e o cumprimento de pena por meios menos gravosos do que a prisão privativa de liberdade para a mulher gestante, mãe, responsável por crianças ou pessoas com deficiência, e outras pessoas nas mesmas condições. Essa legislação visa conter o avanço do “Estado de Coisas Inconstitucional” declarado na ADPF 347, que determina que sejam considerados o melhor interesse das crianças e pessoas com deficiência. Não obstante mais essa conquista legislativa, que advoga pelos direitos reprodutivos e por justiça reprodutiva, vigora oficiosamente no sistema de justiça um seletivismo e punitivismo que orientam decisões de juízes e juízas, levando à manutenção do aprisionamento provisório das mulheres com a finalidade de mantê-las, supostas “más influências”, longe do exercício da maternidade.
Por fim, deve-se destacar que o processo de encarceramento em massa que se verifica a partir dos índices da população carcerária encontra um terreno fértil no campo político. O populismo penal[3] que se caracteriza pela prevalência de respostas eleitorais descoladas de uma real efetividade penal acaba por sedimentar os discursos eleitoreiros que apostam no binômio: mais polícia e mais prisão. São discursos que tentam emplacar manobras baseadas no ódio, tendo como objetivo a eliminação de um suposto inimigo interno – a população negra, pobre, favelada e periférica. Tal discurso, mais visível em contexto eleitoral, orienta também as decisões políticas estruturais, institucionais e de gestão – da segurança pública/justiça criminal aos direitos sexuais e reprodutivos.
A não aplicação de alternativas penais para mulheres encarceradas com base na garantia de seus direitos reprodutivos expressa a convergência desse modelo autoritário e populista com o atual cenário capitalista e racista, cuja projeção de lucro máximo se efetiva com maior grau de mais-valia sobre os corpos negros. São esses corpos, historicamente construídos como não-seres, o principal alvo do controle social penal, da gestão do terror e da política de morte, que também é potencializada pelo encarceramento de mulheres negras cis e trans.
Fundada em janeiro de 2017, a Frente Estadual pelo Desencarceramento é um movimento social que articula organizações, coletivos, instituições, associações, ativistas de direitos humanos, familiares de pessoas privadas de liberdade ou cumprindo medidas socioeducativas e sobreviventes do cárcere. Somos um movimento liderado e construído cotidianamente por mulheres, em sua maioria negras e de origem favelada ou periférica. Protagonizado pelas pessoas diretamente mais impactadas pelo encarceramento em massa. Desenvolvemos atividades de incidência, advocacy, formação, mobilização social, acolhimento, recebimento e encaminhamento de denúncias de violações de direitos humanos nas prisões fluminenses. Essas ações são pautadas pelos princípios da Agenda Nacional pelo Desencarceramento e pela perspectiva do abolicionismo como um horizonte possível. Contato: [email protected] . Acesse: https://desencarceramento.org.br/
Texto publicado em parceria com o Radar Saúde Favela – Fiocruz.
Leia também:
Pela justiça reprodutiva das mulheres lésbicas e bissexuais
[1] Sobre as condições sub-humanas e a prática de tortura nos cárceres fluminenses, acesse os relatórios do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT RJ): http://mecanismorj.com.br/relatorios/ .
[2] Sobre os reiterados relatos de violências e isolamento gerados para mulheres negras ver o relatório https://padlet.com/criola/u205eg6whmqdyzg6/wish/2178225107 bem como a série #TôSolta do Criolapod http://spoti.fi/3Im6NyE, bem como os materiais de Campanha #ADignidadeNãoÉProvisória https://padlet.com/criolamulheresnegras/AdignidadeNaoeProvisoria
[3] DIDIER, Fassin. Punir – Uma paixão contemporânea. Belo Horizonte, Ayiné, 2021.