Quando você se tornou heterossexual?
Neste curto ensaio gostaria de voltar meu olhar para outra rede de relações, qual seja: gênero/sexualidade/subjetividade, buscando responder como a relação entre gêneros inteligíveis e heterossexualidade se articulam na produção da heteronormatividade
Quais são os processos sociais e históricos que nos levam a acreditar que nascemos destinados à heterossexualidade? As interpretações da formação dos sujeitos tentam encontrar respostas no âmbito familiar e social mais amplo visando desnaturalizar uma suposta heterossexualidade inscrita nas estruturas biológicas. Podemos refazer a tessitura da história da relação entre sexualidade/heterossexualidade/relações de poder/Estado. A questão a ser respondida nesta complexa rede seria em que momento e por que o Estado passou a considerar a sexualidade uma questão importante e, como desdobramento, passou a normatizá-la estabelecendo como crime (em alguns países) as sexualidades dissidentes. Esta análise de caráter mais genealógico foi realizada por Michel Foucault (1985) e Jeffrey Weeks (1993) para se referir à Europa. No Brasil, há uma considerável produção científica voltada para entender as singularidades da relação entre Estado e sexualidade.
Quando se aprende a ser heterossexual?
O pressuposto que atravessa este ensaio é de que a heterossexualidade está vincula a relações de poder no âmbito familiar e em todas as instituições. Um dos pilares das estruturas sociais (ou seja, presente tanto na esfera privada quando na pública) está na reprodução da heterossexualidade como um dado da natureza.
Ao vincular heterossexualidade às relações poder nego, portanto, qualquer possibilidade de explicar os desejos e identidades sexuais pela presença de determinada estrutura biológica. Então, se a sexualidade não é da ordem biológica, poderíamos perguntar: quando você se percebeu heterossexual? Ou: Conte-me como foi tornar-se heterossexual. Mas aqui há uma impossibilidade narrativa do eu. O processo de produção de sujeitos heterossexuais acontece em uma fase de nossas vidas em que não nos pertencemos. Se o “eu” está, desde sempre, conforme apontou Butler, “implicado numa temporalidade social que excede suas próprias capacidades de narração” (Butler, 2015, p. 18), contar a história do “tornar-se heterossexual” é colocar em funcionamento algo que está, inicialmente, fora dos sujeitos, nas vozes de pais, mães e de outros cuidadores. Há um momento em que os sujeitos interiorizam este “fora”, transformando-o em algo que irá lhes conferir sentido para suas existências, agora não mais como algo “de fora”, mas como uma verdade estruturante da subjetividade. É neste momento que acontece “o milagre” da naturalização de uma norma social. Estamos nos movendo aqui no âmbito da heteronormatividade.
Este talvez seja o efeito mais eficaz das normas sociais vinculados às sexualidades e aos gêneros: fazer-nos perder a historicidade de uma parte considerável de nossas próprias existências. Seria nos primeiros anos de vida que as normas de gênero e a heterossexualidade são interiorizadas como verdades absolutas. Mas como acontece este “milagre” de fazer uma norma social ser interpretada como algo desprovida de história? Contar a história da interiorização de verdades refere-se antes de tudo a relatar como chegamos a ser o que somos, como nos tornamos sujeitos.
Para George Mead seria na passagem do “outro concreto” para o “outro generalizado” que se dá a produção do sujeito singular, diferenciado da mãe e do pai. Até um determinado momento de nossas vidas, os enunciados proferidos por terceiros são ainda identificáveis como exteriores. Há um momento, no entanto, que eles passam a me compor, a estruturar meu olhar sobre o mundo. Vejamos um exemplo banal sugerido no livro A construção social da realidade (Berger & Luckmann, 1987). Filho deduz: “mamãe fica zangada comigo toda vez que eu derramo a sopa”. O passo seguinte será transformar o enunciado da mãe, este outro concreto, em algo generalizado: “não se deve derramar a sopa”. E algum momento, a figura da mãe desaparece porque o enunciado já foi interiorizado como verdade generalizável, ou seja, como conjuntos de normas morais que servem para o “eu” atuar no mundo social. Nesta etapa já sou um sujeito prenhe de moralidade. Para que um enunciado se desloque do “outro concreto” (ou os outros significativos) e se transforme em “outro generalizado” é necessário que o sujeito que objetiva os enunciados seja reconhecido por mim como alguém que diz a verdade, ou seja, que tem uma posição de poder.
Vejamos outro exemplo. Quando os pais repetem para os/as filhos/as que eles/elas devem se comportar como um menino e uma menina, que tais brinquedos não são acessíveis aos seus gêneros, que determinadas demonstrações de carinho com colegas do mesmo sexo são interditadas, a criança certamente não alcança o sentido do que os seus pais estão anunciados, mas eles são seus pais, têm, portanto, poder de dizer a verdade. Algumas vezes, estas verdades são ditas de forma furiosa (comporte-se como menino! Isso é coisa de mulherzinha!!). Em outro momento, apontei como o processo de produção das identidades sexuais e de gênero são marcadas pelo medo e pelo terror, o que nomeei de “heteroterrorismo” (Bento, 2012)
Em algum momento, estes outros concretos desaparecem. Não há mais um rosto, uma biografia, mas a verdade: mulher é quem tem vagina. Todas mulher nasceu para ser mãe. Eu tenho vagina, logo, eu quero ser mãe. O sujeito que antes estava sendo produzido na e pelas engrenagens das normas, torna-se ele mesmo o reprodutor delas. Quais normas? As que produzem corpos-homem e corpos-mulher e que nos faz acreditar que ser homem é ter pênis e mulher, vagina.
As normas de gênero definem que a inteligibilidade de nós mesmos está inscrita em nossas genitálias. Para sermos reconhecidos como membros legítimos do gênero assignado quando nascemos, devemos atuar de acordo com as expectativas estruturadas socialmente para as masculinidades e feminilidades. Assim, reconhecimento recíproco e inteligibilidade são os termos que asseguram o sucesso da socialização primária (ou seja, a passagem o outro concreto para o outro generalizado).
As normas de gênero estão atreladas a outra verdade: há uma diferença irrelativizável entre a mulher e o homem. O encontro possível entre os dois estaria na sexualidade normal que tem no casamento e na família os lócus naturais para existirem. O discurso de que há uma complementaridade entre os sexos, onde cada um irá atuar de acordo os desígnios de sua natureza, passa a estruturar as expectativas em relação às performances dentro e fora das práticas sexuais.
A força regulatória da heterossexualidade enquanto uma norma está em regular o desejo não apenas das pessoas heterossexuais, mas de atravessar todas as relações, daí portanto, ser um equívoco vincular as heteronormas exclusivamente às pessoas heterossexuais. Talvez um dos lugares onde se possa notar com cores mais fortes a heteronormatividade operando na produção do desejo seja nos sites de relacionamento gay. Neste espaço o par dicotômico ativo/passivo está ali, produzindo hierarquias e economias do desejo.
Há uma vasta produção científica no Brasil, em diversas áreas do conhecimento, que apontam como a força regulatória da heteronormatividade atravessa as relações gays e lésbicas.
Teria alguma relação entre heteronormatividade e normas de gênero? O binarismo de gênero seria o organizador das posições que os corpos devem ocupar tendo como modelo o casal heterossexual reprodutivo. Para Miskolci, a heteronormatividade “(…) é a ordem sexual do presente, fundada no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo. Ela se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigidas principalmente a quem rompe normas de gênero” (Miskolci, 2012, 9. 43-44)
Nas pesquisas que Richard Miskolci vem realizando em aplicativos de relacionamento gay, principalmente no seu livro Desejos Digitais: uma análise sociológica por parceiros on-line pode-se notar como homens têm negociado a visibilidade/invisibilidade do desejo homossexual mediante o uso de meios tecnológicos. É nesta negociação que se observa a força regulatória da heterossexualidade.
A pesquisa teve como campo as cidades de São Paulo e San Francisco. No contexto de San Francisco, o sociólogo analisa a captura expressa na adesão a modelos tradicionais, a exemplo do casamento entre pessoas do mesmo sexo e uma aversão reiterada a performances de gênero que cruzem os marcos binários.
Leandro Colling (2013) pesquisou quais as estratégicas utilizadas pela Rede Globo para incorporar personagens gays em suas novelas. Para Colling, há um fio condutor entre eles: a discrição na demonstração de corpos desejantes. Onde estão as cenas de casais gays e lésbicas na cama se beijando? Segundo Colling, “(…) os gays e lésbicas parecem assexuados, os casais não se beijam, praticamente sequer trocam carícias, ou seja, sua vida sexual é nula. Isso ocorre certamente para não chocar ou afastar telespectadores e também atende aos interesses de um pensamento marcado pela heteronormatividade (p. 106-107).
Mas qual seria, então, a ruptura produzida pelas existências dos gêneros e sexualidade dissidentes? Estas novas identidades e práticas estariam apenas reiterando as normas, por outros caminhos? O caráter transversal da heteronormatividade significa que todos os sujeitos que se engajem na transformação das normas terão que acertar suas contas com estas mesmas normas. Somos seres de agência, mas nossa capacidade de atuar no mundo e sobre o mundo estão amarradas a valores que nos formam anteriormente. Como apontou Marx, fazemos nossa história, mas não fazemos como queremos. Nota-se nos últimos tempos, estruturação de discursos que se distanciam nas normas de gênero, a exemplo da demanda por reconhecimento como não pertencente a um gênero e a recusa por definir-se nos marcos de uma identidade de gênero que tem como fundamento de existência uma suposta coerência entre biologia/desejo/identidade. Na esfera da sexualidade, cresce o número de coletivos que se negam a performatizar o gay-heterossexual e que não estão dispostos a serem assimilados pelas engrenagens do casamento e da respeitabilidade hetero. São expressões políticas, portanto, que tem um potencial outro de ruptura com a heteronormatividade, porque suas lutas não se realizam na esfera da assimilação ao desejo da família, mas através de lutas por reconhecimento que colocam na esfera pública novas gramáticas morais.
Berenice Bento é do Departamento de Sociologia – UnB.
Referências
BUTLER, J. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. São Paulo: Autêntica, 2015.
BENTO, Berenice. O que é transexualidade. Coleção Primeiros Passos. São Paulo: Brasiliense, 2012.
BERGER, P. & LUCKMANN, T. A construção social da realidade: tratado de Sociologia do conhecimento. Petrópolis: Rio de Janeiro, 1987.
COLLING, Leandro. Mais visíveis e mais heteronormativos: a performatividade de gênero das personagens não-heterossexuais nas telenovelas da Rede Globo. In: Colling, Leandro & Thürler, Djalma (Orgs.). Estudos e políticas do CUS. Grupo de Pesquisa Cultura e Sexualidade. Salvador: EDUFBA, 2013.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, v.12, 1985
WEEKS, Jefrey. El malestar de la sexualidad, Madrid, 1993.
MISKOLCI, Richard. Desejos Digitais: uma análise sociológica por parceiros on-line. São Paulo: Autêntica, 2017.
_______________. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
MEAD, G.