O declínio do “sexo” como categoria identitária
Brasil juntou-se a certos países que vêm reconhecendo a possibilidade de oficialização de um gênero não binário, ou então uma “sexualidade intermediária”, sobretudo para bebês hermafroditas, que nascem fisicamente com ambos os sexos
Recente notícia veiculada na grande imprensa relata que uma criança que nasceu com dois sexos no estado do Acre obteve autorização judicial para a mudança do nome na certidão de nascimento. A criança nasceu com os dois sexos, mas a genitora descobriu a ambiguidade genital após ter procedido ao seu registro com um nome feminino. Com isso, a criança foi submetida a um exame cariótipo, que revelou que a quantidade e a estrutura de seus cromossomos levariam à conclusão de tratar-se geneticamente de um menino. Com base no resultado do exame, no dia 9 de abril de 2018, o Judiciário brasileiro reconheceu à criança o direito de alterar o nome e o gênero em seu assento de nascimento.
Assim, o Brasil juntou-se a certos países que vêm reconhecendo a possibilidade de oficialização de um gênero não binário, ou então uma “sexualidade intermediária”, sobretudo para bebês hermafroditas, que nascem fisicamente com ambos os sexos. Vale referir, em 2013, o Tribunal Constitucional Alemão reconheceu o gênero “neutro” a uma criança, permitindo aos pais optar por não registrar o seu sexo nos primeiros dias de vida, para que a criança pudesse se identificar com algum gênero após bem definido fisicamente seu sexo. Com efeito, o Congresso Alemão editou uma lei que oferece aos pais três opções para registrar seus filhos, “masculino”, “feminino” e “indefinido”, e que abre a possibilidade de a criança, ao se tornar adulta, escolher posteriormente se prefere definir-se como homem ou mulher; ou mesmo seguir com o sexo indefinido pelo resto da vida. Já o Supremo Tribunal da Índia foi além e, em 2014, reconheceu legalmente a existência de um “terceiro gênero”, numa decisão histórica que abriu caminho à aprovação de leis de proteção social à comunidade transgênero do país. De maneira mais tímida, a Corte Francesa, em 2015, reconheceu o direito de uma pessoa intersexual de 64 anos ter seus documentos registrados com gênero neutro. Enquanto, na Austrália, enfrentando caso semelhante, a Suprema Corte garantiu o direito de ser “neutro”, no caso em que uma pessoa, que na adolescência havia ingerido hormônios para adquirir características femininas, estava insatisfeita com o tratamento e o interrompeu. Desde então, não se identificava nem com o gênero masculino nem com o feminino, postulando, por isso, o direito – reconhecido – à neutralidade sexual.
Já que estamos falando em um caso ocorrido em território amazônico, vale lembrar que neste, as regras Tikuna sempre respeitaram casais do mesmo sexo, sendo o casamento algo necessariamente entre pessoas de diferentes clãs, não importando se são, ou não, de sexos diferentes. Na realidade, como dizem Manuela Lavinas Picq e Josi Tikuna (2018), “a diversidade sexual é intrinsecamente indígena, enquanto a discriminação sexual foi trazida pelas igrejas evangélicas”. Simetricamente, os Navajo localizados próximos à fronteira entre o México e os Estados Unidos, reconhecem quatro gêneros: mulher feminina, mulher masculina, homem masculino, homem feminino. Entre os Dakota, povo originário do centro-norte dos Estados Unidos, há a expressão “winté” que é utilizada para se referir a alguém do sexo masculino que se comporta como mulher. Os Ojibwe, que viviam ao redor da região dos Grandes Lagos no sudoeste do Canadá, têm o termo “Hemaneh”, que significa metade homem, metade mulher. Isso para não falar nos “Fa’afafine”, da Polinésia, que apesar de conservarem trejeitos e vestes femininas, por vezes casam-se com mulheres e constituem famílias. Vale referir, finalmente, que há uma tradição de diversos povos nativo-americanos de pessoas “two-spirit” – “dois espíritos” –, termo adotado a partir de 1990 pelos membros da comunidade LGBT indígena norte-americana para se referir àqueles que não se encaixam nas identidades de gênero masculina ou feminina. Como observa Estevão R. Fernandes (2015, p.14): “eles não seriam ‘gays’, mas pessoas com dois espíritos (de homem e de mulher), estando em transição entre dois mundos: masculino e feminino, espiritual e terreno, indígena e não-indígena, o que lhes garantiria um papel de destaque em seus povos”. Chamando a atenção para como as sexualidades indígenas dizem respeito a elementos de sua cosmologia e ontologia, o autor demonstra que os índios americanos antes de colonizados adotavam sistemas de identificação de gênero maior que o binário. A sexualidade para esses povos, diz o antropólogo (2015, p.290), “é um meio pelo qual aqueles indígenas exercem seu papel sagrado em suas culturas”.
Com que roupa eu vou?
De acordo com o G1, até os 2 anos de idade, a criança foi chamada pelo nome feminino, manteve cabelos longos e vestimenta de menina. Diante do diagnóstico deu-se a possibilidade de mudar o registro da criança, o que, por sua vez, implica uma melhor compreensão de seu corpo sexuado. Vale lembrar, “o gênero adquire vida a partir das roupas que compõe o corpo, dos gestos, dos olhares, ou seja, de uma estilística definida como apropriada” (Bento, 2006, p.92). Nesse sentido, na década de 1940, Simone de Beauvoir (1970, p.26) afirmou: “a gente não nasce mulher, torna-se mulher”. Muita coisa mudou desde o final dos anos 1940 para cá e a frase foi esticada para fazer caber nela também o “tornar-se masculino”. Aos poucos, o problema passa a ser mais sútil, mais delicado – quase indiscreto –, como coloca José Garcia y Gasset (1979, p. 255): “trata-se de filiar o sexo de uma época”.
Outrossim, de um ponto de vista jurídico, a sexualidade representa fundamental perspectiva do livre desenvolvimento da personalidade, como bem observou Maria Berenice Dias (2009, p.103). Para a desembargadora, “o Estado democrático de direito promete aos indivíduos muito mais que abstenção de invasões ilegítimas de suas esferas pessoais, promete a promoção positiva de suas liberdades” (2009, p.104). Ademais, a identidade de gênero é questão complexa e independente do sexo biológico. Transpondo esse achado de pesquisa ao campo do direito, coloca Katherine M. Franke (1995, p.4): “essa concepção de identidade sexual no fundo fornece as bases para um direito fundamental à determinação de identidade de gênero independentemente do sexo biológico”. Afinal, para fins de proteção dos direitos humanos, entendido como simplesmente “homem”, este referencial é noção vazia, essencialmente inconfigurável, permeada de pluralidades, heterogeneidades, desvios, a ser progressivamente preenchida (Lefort, 1983, p. 68), e que a cada dia toma novas formas, resultantes do agenciamento de novas possibilidades subjetivas de coletivos sociais, implicados com os processos de produção da vida – ou então – de libido social. O homem torna-se, no bojo deste processo, noção simbólica, porosa, que não pode ser preenchida historicamente. Isto é, o homem protegido pelas declarações de direitos humanos pode integrar qualquer coisa menos um bloco homogêneo.
Ecoando as lutas de movimentos por direitos humanos, a fim de acomodar em sua gramática jurídico-política uma diversidade, para não dizer, uma multiplicidade de sexos e gêneros, diferentes países têm mobilizado áreas do direito e da política, que se desenvolvem em várias direções, com alguns desenvolvimentos reconhecendo um “terceiro sexo”, outros reconhecendo um sexo “indefinido”, e outras deixando de enfatizar o uso do sexo como uma categoria identitária. Em conclusão, como disse Deleuze (2015, p. 202): “nosso corpo sexuado é primeiro um traje de Arlequim”. Resta saber quais serão os adornos aceitos por nossa legislação.
Referências
BEAVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos – a experiência vivida. 2ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
BENNETT, Theodore. ‘Non Man’s Land’: Non-binary Sex Identification in Australian Law and Policy. Australia: The University of New South Wales Law Journal (UNSW Law Journal), vol. 37 (3), p. 872.
BENTO. Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual Coleção Sexualidade, gênero e sociedade. Rio de Janeiro: Ed. Garamond Universitária, 2006.
DIAS, Maria Berenice. União Homoafetiva. O preconceito e a justiça. 4ª ed. ver. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009.
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2015.
FERNANDES, Estevão Rafael. Decolonizando sexualidades: Enquadramentos coloniais e homossexualidade indígena no Brasil e nos Estados Unidos. Brasília: Universidade de Brasília – UNB, 2015.
FRANKE, Katherine M. The Central Mistake of Sex Discrimination Law: the disaggregation of sex from gender. Pennsylvania: University of Pennysilvania Law Review, 1995.
LEFORT, Claude. A Invenção Democrática – Os limites da dominação totalitária. Trad. Isabel Marva Loureiro. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. 2ª Ed. Madrid: Espasa-Calpe, 1979.
PICQ, Manuela Lavinas; TIKUNA, Josi. “Sexual modernity in Amazônia”. Einternational relations. Disponível em http://www.e-ir.info/2015/07/02/sexual-modernity-in-amazonia/ acessado em abril de 2018.
*João Vitor Cardoso é mestrando na Universidade de São Paulo (USP), especialista pelo Centro de Estudios de Justicia de las Americas (Ceja – Chile), pesquisador visitante na Université Paris Descartes (França) e coordenador do Observatório de Conflitualidade Civil e Acesso à Justiça (Occa); e José Eduardo Parlato Fonseca Vaz é doutor em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito (Fadisp), especialista pela Universidad Castilha de La Mancha (Espanha), especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Presbiteriana Mackenzie-SP, coordenador do Curso de Direito da Faculdade Aldeia de Carapicuiba (Falc-SP), professor de Direito na Universidade UniFMU-SP e membro da União Brasileira de Escritores (UBE).