A protagonista da história é a ausência
Resenha crítica do romance Todo mundo tem mãe, Catarina, da autora Carla Guerson
Embora a voz narrativa pertença à Catarina, penso que a maior protagonista da história é a ausência, pois é a partir dela que o romance se desdobra e nos permite conhecer e acompanhar a evolução da narradora. Durante a leitura, quanto mais me aproximava do fim, mais meus pensamentos iam em direção aos Fragmentos de um discurso amoroso, do crítico francês Roland Barthes, em que, ao escrever sobre a ausência, concluiu ser via de mão única, uma vez que só pode ser dita a partir daquele que fica ou que foi abandonado. No romance, a personagem Catarina, aos 5 anos de idade, por causa de uma atividade escolar, sofre a epifania de que não tem mãe e, a partir desse evento, a busca por essa mulher se torna sua força motriz. No entanto, em vários episódios, Catarina suporta bem o abandono, até por instinto de sobrevivência, para não sucumbir à tristeza ou à loucura. Dessa maneira, Catarina passa alguns dias afastada de suas perturbações e experimenta dias de gerúndio: estudando, conversando, namorando, descobrindo-se, amadurecendo… Ou seja, como na teoria winnicottiana, em certos momentos da trama, a narradora age feito um sujeito bem desmamado, sabendo se nutrir de outras realidades. Ou, como bem escreveu Barthes em seus Fragmentos, ela é “momentaneamente infiel” à figura da genitora para não morrer por excesso de cansaço e tensão de memórias.
Assim, Susana, a mãe-genitora de Catarina, torna-se, ao longo das páginas, personagem alocutória da filha, isto é, um eu duplo da narradora, a qual, numa manobra perspicaz, sustenta sua angústia de separação e triunfa ao recuperar a presença da mãe duas vezes: ao se queixar de sua partida e quando se dirige a ela, numa cristalina manipulação de sentimentos que deságua em movimentos de vaivém de memórias, as quais se misturam ao presente sempre questionador. Com essa estratégia, Carla Guerson surge abrindo “o palco da linguagem”, uma vez que, como bem descreve Barthes sobre o abandono, “a linguagem nasce da ausência: a criança faz um carretel, que ela lança e retoma, simulando a partida e a volta da mãe, criando um paradigma”.
Portanto, a autora, com total segurança, constrói para o leitor uma narrativa que se desenha através da falta, a qual se transforma em prática ativa, de modo que a protagonista pode afastar o abandono da mãe-genitora. Tanto isso é verdade que quando Catarina se vê diante do provável reencontro com Susana, cede à frustração, pois é na falta que a menina se reconhece. Ou seja, a presença da mãe abriria uma fresta para o desconhecido, algo que Catarina não deseja. Até porque, nunca lhe faltou amor, tendo em vista que a avó Amélia esteve sempre presente, dedicando-se exclusivamente aos cuidados da casa e da neta.
Por tudo isso, penso ser este romance revolucionário ao nos oferecer uma história cuja protagonista não está em busca de abrigo na figura masculina, mas nas suas ancestrais e, sobretudo, em si mesma. É revolucionário, especialmente, uma protagonista enxergar seu homem apenas como objeto de desejo e descobertas do próprio corpo e nunca como salvação. Catarina, assim, converte-se na prova de que, na contemporaneidade, não há mais espaço para a personagem submissa. Há muito que já nos sabemos, apenas precisávamos desse espaço, ainda insuficiente, mas que já representa avanço na literatura brasileira. Obrigada, Carla Guerson, por esse romance convidativo para tão boas e necessárias reflexões.
Myriam Scotti nasceu em 1981, em Manaus (AM). É escritora, crítica literária e mestre em Literatura pela PUC-SP. Seu romance Terra úmida foi vencedor do Prêmio Literário de Manaus 2020. Em 2021, seu romance juvenil Quem chamarei de lar? (editora Pantograf) foi aprovado no PNLD literário e escolhido pelo edital Biblioteca de São Paulo. Em 2023, lançou o livro de poemas Receita para explodir bolos (editora Patuá). Foi finalista do prêmio Pena de Ouro 2021 na categoria Conto. No ano passado, ficou em segundo lugar na categoria conto do prêmio Off Flip.