A "psicose" da "vaca louca"
Pressionado por uma opinião pública enlouquecida e pelo medo de uma epidemia de encefalopatia espongiforme bovina (ESB), o governo francês decidiu proibir a utilização de farinhas animais para nutrir animais cuja carne chega à mesa dos consumidoresDenis Duclos
Os homens detestam ser surpreendidos pela natureza. Preferem prever as catástrofes mais apocalípticas do que serem vítimas de um desastre concreto, mas inesperado, ainda que seja limitado. Os europeus, portanto, decidiram organizar sua própria dramaturgia do horror. Para montar esse rito de exorcismo selecionaram um fenômeno: a chamada doença da vaca louca.
Se o caso da encefalopatia espongiforme bovina (ESB) e sua transmissão para o homem (numa variante da doença de Creutzfeldt-Jacob) ocupa espaço nos meios de comunicação europeus é porque se trata de um objeto manipulável por excelência no espaço da mídia: agora, mostram-se crianças agonizantes. Já há algum tempo vinham se mostrando animais enforcados, estripados, retalhados, pedaço por pedaço, numa dissecação científica que se aproxima bastante de um açougue industrial. Aprende-se a forma de destruir o cérebro de um animal vivo, inserindo-lhe um anel metálico na orelha ou injetando, se for o caso de uma vaca “louca”, uma dose mortal de curare (depois de tê-la adormecido, como se faz com os condenados à morte — que a Europa, ressaltemos, deixou de “produzir”).
Distraindo o povo
Em suma, propõe-se ao público uma ampla gama de prazeres impunes, apresentados com perfeita assepsia pela linguagem objetiva da informação, que, reprimidos, irão desencadear fobias alimentares ou súbitas paixões vegetarianas.
A força com que o tema da “vaca louca” é usado para desviar a atenção não deve ser negligenciada. Num momento em que, na França, o presidente e o primeiro-ministro estão atolados desde o verão por problemas, que vão do terrorismo na Córsega e do preço do petróleo à queda do euro, nada melhor que um pânico alimentar — amplamente imputável às exportações inglesas — para fazer o povo esquecer tudo isso… Aliás, quando as pessoas começam a fazer muitas perguntas, o “meio mais tradicional de manter a coesão de um corpo social”, como lembrava criteriosamente Henry-Pierre Jeudy, é integrar “proibições na vida cotidiana, apoiando-se num estado de alerta que incita à vigilância”. [1]
Sem bode expiatório definido
Apoiando-se numa “psicose” desencadeada artificialmente, a proibição do bife (que pune, sem critérios, tanto a carne boa como a ruim), por exemplo, entra para a lista cada vez mais extensa de medidas de controle público sobre a vida privada. Fazer aparecer e desaparecer da mesa o que apetece a cada pessoa em nome de imperativos “absolutos” de saúde pública, parece uma revanche de uma soberania do Estado, pouco tempo antes humilhada pela obrigação — exigida por “movimentos de base” que ela não inventou — de diminuir sua participação nos lucros das companhias petrolíferas.
Mas limitar a análise do fenômeno a isso não seria suficiente. O caso da “vaca louca” apresenta uma outra característica, implícita à sociedade, bastante útil: permite imputar a catástrofe aos humanos, embora sem atribuir a culpa a um bode expiatório definido. Cada governo atribui a responsabilidade pelo mau controle das farinhas animais (proibidas em alguns países, autorizadas em outros), à má coordenação européia, que por sua vez devolve a “batata quente” aos protagonistas: eles que se entendam.
Os cientistas “avançam”
Volta-se então aos criadores, que logo despertam compaixão pela sua evidente boa-fé, pela dureza de ver rebanhos inteiros serem mortos, e pela perspectiva de sua ruína. Mas ao se pensar em condenar os fornecedores de farinha, é fácil constatar a deficiência de exames que antecede o abate, em sua maioria testes que deveriam ser realizados antes da fase sintomática da doença. Sua função, tão criticada, revela toda a sua “importância” quando se pensa nas montanhas que agora será necessário incinerar, e na soja norte-americana, geneticamente modificada, que será necessário comprar a preço alto para a substituir. É claro que existe essa história de “produto não suficientemente quente” (que lembra estranhamente a questão do sangue contaminado pelo vírus da Aids), mas isso não justifica perder muito tempo. Muito técnico, sem dúvida…
Quanto aos cientistas, tardiamente envolvidos no trabalho, perderam-se por muito tempo em conjecturas sobre o funcionamento das prion [2] patológicas, sobre eventuais agentes virais associados e sobre outras possíveis vias de transmissão intra e inter-específicos, mas, a partir de agora apoiados e não mais criticados, eles “avançam.”
As categorias culturais do “ser”
Resumindo, eis aqui uma cena — apesar do sofrimento de alguns e das desgraças econômicas de outros (e, eventualmente, graças a eles) — em que toda uma sociedade humana se mobiliza para resolver um paradoxo produzido pelo “progresso”. Pois, aparentemente, o desafio que se coloca ultrapassa a urgência em se pôr fim a uma epizootia que parece uma epidemia (ainda infinitamente menos mortífera que a diabete, as doenças cardíacas, os acidentes de trânsito, o suicídio ou a Aids). Sabe-se que ultrapassar a “barreira das espécies” (que, aliás, vem sendo tentada em muitos domínios, entre os quais o do transplante de espécies distintas é o mais conhecido) coloca problemas de ordens diferentes, entre os quais — de maneira simbólica — saber onde começa o ser humano e o respeito “especial”que lhe é devido.
Há uma característica universal sempre discutida pela antropologia: a condição material do homem — sua sobrevida e seu destino — nunca se apresenta como um produto bruto, mas sempre através de categorias culturais nas quais ele se representa como “ser”. Sempre que uma questão material grave questiona sua existência, o ser humano não pode representá-la de forma direta sem que isso se traduza numa ameaça ao seu “próprio ser”, ou seja, por expressões pelas quais ele se define através de sua própria visão e a do outro. Mesmo que seres humanos pretendam às vezes matar outros como se fossem animais, carrascos e vítimas ainda são humanos (como lembra Robert Antelme), possuídos, queiram ou não, por representações que justificam amor ou ódio.
Um argumento frágil
Hoje, a espécie humana corre o risco de auto-destruição enquanto população vivendo na superfície de um planeta poluído, mas não consegue se imaginar destinada a ter a mesma sorte banal das populações de bactérias ou de insetos que tenham sidos eliminados do seu meio ambiente. Só consentiria em fazê-lo através de ficções, histórias míticas ou sonhos que lhe anunciassem a iminência de sua degradação. A história da “vaca louca” tem, portanto, além de incontestáveis manipulações políticas, uma “função” especial que explica por si só a impossibilidade de sua saturação: ela nos diz como podemos destruir-nos a nós mesmos, destruindo industrialmente outras formas de vida, exatamente como o boi é contaminado ao comer carne bovina…, que por sua vez é contaminada pela ingestão de carne de carneiro doente.
Note-se a estrutura da metáfora (a qual, diga-se de passagem, corresponde à fórmula canônica de todos os mitos, segundo Claude Lévi-Strauss): a origem da infecção é do exterior (o carneiro), mas uma vez “apropriada” pela espécie, nela irá repercutir. Em outras palavras: a qualquer mal vindo do exterior corresponde um mal interno.
Diante do poder sugestivo desta metáfora onírica, reconheçamos que o sistema de defesa dos profissionais da agro-alimentação — ao dizerem que os animais comem “somente” 4% de seus alimentos sob a forma de farinhas animais — é frágil. Será que se poderia dizer que uma tribo que come somente 4% do corpo de seus inimigos é canibal em 4%?
Uma loucura irrepresentável
Eis-nos, pelo contrário, diante da constatação do tudo ou nada (que não é mais irracional que qualquer outra, pois é o campo da informática). Portanto, é dificílimo resistir à sugestão de concluir inconscientemente a seguinte frase: se o boi ficou doente (autofágico) após ter comido carne de carneiro, o homem, comendo boi…vai tornar-se autofágico e doente de sua autofagia. Não estaríamos buscando misteriosas vias de contaminação entre doentes humanos morando uns próximos dos outros? Providência irracional, poderão dizer. Claro, mas explicável pela metáfora sub-jacente que se propaga entre todo mundo, responderá o antropólogo.
E prosseguindo: é possível que a chamada vaca “louca” sirva para nos representar, de maneira inesperada, a mudança climática e sua loucura propriamente irrepresentável, que é efetivamente a de uma auto-devoração da civilização humana.
Conseqüências do reaquecimento
De qualquer forma, não deixa de ser surpreendente, por antítese, observar como os Estados Unidos, depois de terem literalmente “inventado” a questão do buraco na camada de ozônio e do reaquecimento planetário, no final da década de 80 — num impulso de cooperação magistral entre cientistas e as políticas do meio ambiente (e alguns senadores, como Albert Gore…) —, tenham em seguida, ao longo de seus sucessivos ímpetos de febre “liberal”, renunciado de tal forma à liderança mundial nesta questão que se encontrem hoje alinhados à China para defender as políticas mais reacionárias do direito de poluir.
Não é possível explicar isso somente pelo poder dos lobbies do petróleo e do carvão, nem pelo anti-ambientalismo de Ronald Reagan ou Georges Bush, pois essa orientação foi ainda mais reforçada, da conferência do Rio à de Kioto, sob o governo Clinton. É preciso considerar também a hipótese de que o quadro das conseqüências de um reaquecimento, que a ciência revelou demasiado cedo perante o Congresso e o público norte-americanos, apareceu progressivamente assustador e difícil de exorcizar, apesar de uma mobilização científica sem precedentes, e mesmo no caso de se registrar uma diminuição drástica nos níveis de produção de gás para um futuro controle do efeito-estufa.
Culpabilizar o indivíduo
Entre a conservação do modelo de crescimento capitalista desenfreado, que sempre lhes permitiu estabilizar as crises internas de sua civilização (exportando-as para o resto do universo através da super-valorização do dólar), e a perspectiva de uma austeridade material radicalmente oposta ao “sonho americano”, a opção dos Estados Unidos foi feita, e com ela a de não mais querer ouvir o que quer que seja sobre o “fim do mundo”, desagradável contrapartida ao maravilhoso “fim da história”que lhes prometia o colapso da União Soviética.
Entretanto, sobrou um resquício a esta amnésia voluntária: a campanha anti-tabagista, da qual somente uma pequena parte foi dedicada ao aspecto sanitário real do problema, e uma enorme parte a garantir (como a “lei seca” de 60 anos antes e muitas outras febres puritanistas colaterais) mais uma vez a culpabilização pública dos comportamentos individuais.
A sociedade e a natureza
Na Europa, por outro lado, após o trauma provocado pelas chuvas ácidas, em decorrência da poluição industrial clássica, em 1983, e a presença das nuvens radioativas de Chernobil, em 1986, os alemães rapidamente constituíram um importante, sólido e durável centro de gravidade para uma ação ambiental politizada do mais alto nível (continuando, no entanto, a se submeterem a uma das poluições em linhite mais elevadas do mundo).
Várias orientações da União Européia foram tomadas sob essa influência, mas Londres e Paris têm, por diferentes razões, resistido a essa mobilização. Com a questão do sangue contaminado, que debilitou a tradicional impunidade dos altos escalões do governo e da classe política na França, é possível que tenha sido preparado um vínculo para “acolher” a epizootia inglesa, dando-lhe o sentido de um questionamento mais geral do funcionamento da sociedade.
Seria ainda necessário, para que esta “função” da psicose coletiva seja eficaz, que ninguém se contentasse com respostas em torno do estreito espectro de proibições e controles (sempre lembrados, paradoxalmente, para recair precisamente sobre as pessoas e atividades mais confiáveis — criações tradicionais, açougues artesanais tr
Denis Duclos é antropólogo e diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS, na França. Autor de Éloge de la pluralité – Conversion entre cultures et continuation de l’humanité, Bibliothéque de la Revue du Mass permanente, Paris, 2012